Graça Machel em entrevista à Televisão de Moçambique.
Graça Machel diz que falar em combater a pobreza é nivelar por baixo os objectivos a alcançar. Na entrevista conduzida pelo jornalista Simeão Ponguana da TVM, a viúva de Samora Machel refere que adoptámos.
um modelo económico que, mundialmente, provoca graves desequilíbrios sociais, sem, contudo, introduzir os mecanismos de balanceamento necessários para evitar a exclusão. Leia, a seguir, trechos da referida entrevista
Depois da independência, como é que a Frelimo não conseguiu gerir o descontentamento de alguns moçambicanos a ponto de haver um movimento que, depois, se chamou Renamo?
És capaz de me dizer quando, onde e como a Renamo apresentou o seu descontentamento ao Estado? Nós, na pessoa do camarada Mondlane, para ir falar e explicar ao governo português que queremos independência, antes de pegar em armas, sabíamos o que queríamos. O meu problema não é dizer se as pessoas não tinham oposição ou não, o meu problema é que, quando nós temos exigência, é preciso colocar as coisas de uma maneira clara em cima da mesa. Eu não tenho conhecimento, não sei se tu tens, de um momento em que esses moçambicanos colocaram em cima da mesa, um: vamos a isto; dois: vamos àquilo, etc., etc. Se tu tiveres essa informação, diz-me onde e como.
Havia espaço para essas pessoas aparecerem?
Estou a dizer que o espaço se conquista. Teria entendido muito bem se tivesse havido esse diálogo e a Frelimo tivesse dito não. Mas eu não tenho conhecimento ou registo que isso tenha acontecido. Por exemplo, a Frelimo fez exigência da independência, falando com o governo português, depois com as Nações Unidas, OUA, para uma independência por meios pacíficos. Só e só quando os meios pacíficos não resultaram, nós pegámos em armas. Não tenho conhecimento de que esses opositores usaram a via pacífica primeiro para, depois, recorrerem à via armada.
Nós, a Frelimo, respondíamos perante o povo moçambicano. O nosso mandato vinha de lá e voltava para lá. Essas outras organizações, até pode ser motivo de um grande debate, recebiam salário de alguém, recebiam comandantes, instrutores de alguém. O comando, em termos de planificação de operações, de alguém. Mesmo em situação de crise profunda em que nós estivemos mergulhados por causa da guerra, o governo, a unidade do país permaneceram intactos. as Nações Unidas só vieram gerir questões de emergência, mas a transição foi dirigida pelo governo de Moçambique, o que não acontece em muitos países. E esse era o governo da Frelimo.
Também o argumento usado por estes outros teve algum eco por falta de uma abertura política inclusiva e abrangente para os que tinham uma visão diferente da Frelimo. É verdade ou não?
Em termos de abertura e participação popular, eu acho que, na altura, tínhamos maior abertura do que temos agora. Tu te lembras que, em cada aldeia, tínhamos grupo dinamizador, depois, assembleia da aldeia em que se discutia os problemas da aldeia. foi daí que começou a haver a participação das mulheres e dos jovens. O único grupo que não foi integrado foi dos régulos e líderes tradicionais. Ao discutir os problemas do país, tínhamos uma discussão que ia muito mais abaixo do que temos agora.
Hoje, há uma percepção de que há alguns membros da Frelimo que são intocáveis e que podem dizer o que querem.
Há camaradas como nós, eu tenho liberdade para dizer o que penso. Eu penso que o sistema está demasiado centralizado nesta discussão interna. É que, depois da discussão interna, só os órgãos é que podem se pronunciar. E, aqueles que são um pouco liberais, como eu, para além da discussão interna, falam fora, essa é a diferença. Na minha idade, eu gosto de falar, e falar aquilo que a minha cabeça diz. E quando as posições não são exactamente como está no comunicado, há essa tensão.
Teria dito, numa entrevista num canal de televisão, que a agenda de pobreza abraçada pela Frelimo já não é mobilizadora. Foi mal citada?
Não fui mal citada. Posso voltar a dizer. Nós devemos ter uma agenda de desenvolvimento e não de pobreza. Eu posso repetir. Eu não estou a dizer que a Frelimo está errada, estou a dizer que é mais mobilizador lutar pelo desenvolvimento do que apenas lutar contra a pobreza.
Não é a mesma coisa?
Não é. Eu não digo isso a meu filho ou minha filha ou ao meu neto. a maneira como apregoar os sonhos dos meus netos é pelo desenvolvimento e não pela pobreza. A agenda pode ser a mesma, mas projecta para aquilo que queremos ser e não aquilo que somos.
Sendo membro sénior da Frelimo, teria participado da aprovação dessa estratégia?
Eu estou a dizer que estou a aproveitar o privilégio de ser velhinha para dizer o que eu penso e que, naturalmente, pelo facto de eu dizer isso, haverá camaradas que me vão torcer a cabeça e dizer ‘por que é que ela diz isso se é membro do Comité Central’. É ai onde eu digo existir essa tensão. Nos próximos anos, uma mensagem mais mobilizadora será falar do desenvolvimento, daquilo que nós queremos ser, onde queremos chegar, que é para desafiar os jovens que é isto que tens que fazer... é puxá-los para cima e não para baixo. A agenda é a mesma, mas a maneira como a apresentas e maneira como queres tirar o melhor da energia das pessoas é projectá-las para frente e não para trás.
O governo da Frelimo introduziu o capitalismo. E está a pensar-se que há um grupo de moçambicanos que está a acumular mais riqueza do que os outros!
Não está a pensar-se, é verdade. Estamos entre os países com maiores índices de desigualdade social, isso não é segredo. O modelo em que estamos favorece isso. quer dizer, há já pessoas que acumulam mais riqueza, mas isso não é só problema nosso. É o modelo de desenvolvimento, esse de economia de mercado. O problema é que o mercado é que dita as regras e não as pessoas, e o mercado é cego. Mas se eu falar de pessoas, hei-de olhar para as caras das pessoas e vou saber o que o senhor recebe, porque são pessoas que estão à nossa frente. Esse modelo que prioriza o mercado e o dinheiro é que está errado. Esse é que é o problema.
Não é política do governo da Frelimo?
Não. Nós adoptámos um modelo que, mundialmente, está a ser provado que provoca essas profundas desigualdades sociais. Olha para a África do Sul, Brasil, etc. Há países que adoptaram este modelo, mas com cautelas que permitem nivelar as desigualdades sociais. os países nórdicos são exemplo disso.
Graça Machel, viúva de Samora Machel, é empresária?
Eu não me defino como empresária, embora eu tenha uma actividade empresarial, que é mais feita pelos meus filhos. Eu sou um animal social, sou mais do social, eu reconheço que é preciso fazer alguma actividade comercial para o nosso bem-estar, da família. mas por aquilo que me caracteriza neste país, as pessoas não me vão reconhecer como empresária, mas, sim, como activista social.
Não está a trair a memória de Samora Machel?
De maneira nenhuma. Samora nunca disse que nós nunca devíamos fazer alguma actividade social. Se se lembra, quando disse que o Estado não deve vender isto ou aquilo, abriu a economia para que os moçambicanos pudessem gerir negócios privados. É ali que começou. Eu não sou contra o capitalismo como tal, estou por um capitalismo com forte componente social, equilíbrio social. Capitalismo em que todos devessem ter uma vida com dignidade, é o que gostaria que fosse aqui em Moçambique.
O Presidente Samora morreu e, depois de onze anos no poder, não se pode indicar alguma empresa que tenha sido dele ou da família...
Ele não tinha, se for por aí. Vai a Chilembene e irá verificar que a casa onde ele me deixou é uma casinha pré-fabricada com uma sala, um quarto, uma cozinha pequena e uma despensa. Eu é que tive que construir uma casa para os meus filhos. Samora nem isso fez. Em relação aos meus filhos, posso dizer que eles têm um sítio para viver com dignidade, mas eu é que fiquei a fazer isso. Porque por Samora, eu havia de continuar muito, muito, muito, pobre.
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