O dia 24 de Junho de 1975, em Moçambique, estava magnífico. O sol africano brilhava num céu azul, esfarrapado, aqui e ali, por nuvens suaves e brancas. O mar, também ele muito azul, confundia-se, nas lonjuras, com o céu. Uma brisa tépida e a temperatura agradável tornavam a vida confortável. No dia seguinte era a independência de Moçambique e o primeiro dia do Banco de Moçambique (BM), enquanto banco central. Tinha-se feito um óptimo acordo e Moçambique recebia o activo e passivo do BNU no território da antiga colónia. Mas, no início, as coisas não começaram tão bem, porque a delegação do BNU vinha com a peregrina ideia que os trabalhadores do banco em Moçambique se transferiam para o BM e se desvinculavam do BNU. Um tal sistema, num período conturbado como aquele, em que as pessoas tinham escolhas gravíssimas a fazer, quer quanto à nacionalidade quer quanto a continuarem a viver em Moçambique, determinaria o êxodo dos funcionários do banco, a começar pelos mais qualificados; além do que era uma violência pouco democrática transferir o pessoal, sem a sua anuência. Assim, rapidamente, eu, o Dr. Pereira Leite e o governador do BM, Dr. Alberto Cassimo definimos uma contraproposta que o Cassimo verbalizou no dia seguinte: não queríamos ninguém obrigado no BM; queríamos um acordo de cooperação, pelo qual o pessoal, que não quisesse integrar-se no BM, ficaria a prestar serviço por tempo determinado, findo o qual teria direito a ingressar nos quadros do BNU, em Portugal. Diga-se, em abono da verdade, que muitos dos elementos da delegação do BNU apoiaram a nossa posição e no-lo fizeram saber.
Acontece que um auto intitulado delegado sindical do BNU, integrado na sua delegação, veio ter comigo e me interpelou dizendo: “Como é que, você, um democrata, se põe a defender colonos exploradores? “ Olhei o homenzinho com algum desprezo e perguntei-lhe: -“ Quantos são os trabalhadores do BNU, em Portugal?”. Três mil e tal, respondeu. Pois aqui, em Moçambique, são pouco mais de dois mil, respondi, e os lucros do banco são todos gerados em Moçambique. Já vê que a contabilidade de quem explora quem não pode ser feita com a simplicidade do seu raciocínio! O homem calou-se, mas o problema continuava, porque a delegação do BNU insistia na sua posição.
Decidimos pôr o presidente Samora Machel ao corrente da situação e fazer-lhe ver que assim não teria um banco central mas uma manta de retalhos. O pessoal do banco era extremamente competente, mas não tinha experiência do exercício das funções de banco central, porque as que o BNU podia exercer, não o fazia pela delegação de Moçambique, mas pela sede, em Lisboa, ou Moçambique não fosse uma colónia. Todavia tínhamos a certeza que, com aquele pessoal, mobilizado e competente, facilmente colmataríamos quaisquer dificuldades que surgissem. Por outro lado o pessoal tinha-nos feito saber que estava connosco e apoiava a nossa posição. Tudo isto o Cassimo e o Pereira Leite expuseram ao presidente que rapidamente percebeu a situação e prometeu resolve-la; ele considerava fundamental ter um banco central a funcionar bem e, tanto quanto possível, com a prata da casa. Por isso, no dia seguinte, telefonou ao PM de Portugal, Vasco Gonçalves, e, dois dias depois, a delegação do BNU estava a negociar o acordo de cooperação. Este acordo possibilitou que Moçambique tivesse um banco central forte e eficiente que não só permitiu ultrapassar as grandes dificuldades de uma independência obtida em condições económicas difíceis como desenvolver outros laços de cooperação com Portugal, como adiante veremos. Por outro lado o pessoal ficou mobilizado com a nossa atitude e viu que podia confiar no futuro governo do BM.
Como dissemos, o dia 24 de Junho estava magnífico, prometia um 25 glorioso e eu, o Cassimo e o restante pessoal do banco passámos o santo dia a cuidar de pormenores, para que tudo corresse bem. Lembro-me que a última coisa que fizemos foi verificar o funcionamento do anúncio luminoso onde Banco de Moçambique substituía Banco Nacional Ultramarino. Depois senti fome e disse ao Cassimo que ia jantar a casa; ele respondeu-me que também tinha fome, mas não sabia onde ia jantar; naturalmente convidei-o para jantar comigo e avisei a minha mulher que teríamos companhia de luxo: o governador do banco de Moçambique.
Pelas 19 horas partimos os dois. O caminho para minha casa podia fazer-se pela marginal, e foi o que escolhemos. Ao chegarmos à rotunda junto à doca dos pescadores, demos com um espectáculo insólito: um soldado da Frelimo, de kalache em punho, impedia a continuação da marcha dos veículos, fazendo-os voltar para trás, nem sequer os deixando fazer a manobra pela rotunda, pelo que tinham que fazer a inversão de marcha no meio da avenida, o que causava forte confusão. O Cassimo foi falar com ele e voltou pouco depois, dizendo-me que o soldado alegava, como justificação, que tinha por ali passado, num carro e aos tiros um branco e perguntava-me se eu achava aquilo possível; respondi-lhe que só se o homem fosse louco e que provavelmente o soldado confundira tiros com algum escape roto; mas que ele devia dizer ao soldado que deixasse os carros darem a volta pela rotunda, quando não tudo continuaria complicado. O soldado assim fez e, a nós, deixou-nos passar. Pelo caminho passávamos pelo quartel-general e o Cassimo deu ordem ao motorista para pararmos ali, explicando-me que ia sugerir que substituíssem o guerrilheiro que estava a criar aquela confusão na rotunda que, segundo ele ainda daria sarilhos. Concordei e lá fomos os dois. Mas quando chegámos ao portão, a sentinela não percebeu nada do que o Cassimo lhe disse, sucessivamente, em diversas línguas. Ele não falava nem português, nem inglês, nem a língua nativa do Cassimo. Ficámos ali, naquele impasse de incomunicabilidade, que a sentinela resolveu rapidamente. Vendo um negro a falar e um branco calado, concluiu que o branco ia preso, de modo que pegou-me pelo braço e preparava-se para me levar preso para dentro do edifício. O Cassimo percebeu logo e começou aos gritos a gesticular, para o demover das intenções; a sentinela não fez mais nada: prendeu também o Cassimo e levou-nos os dois, pelos braços, por um corredor fora, ao encontro de um comandante. Este era amigo do Cassimo e a nossa detenção acabou ali. Mas não acabou o problema comunicacional em Moçambique, ilustrado com este incidente caricato.
Mas como a minha mulher tinha feito um óptimo jantar, acabámos bem dispostos a noite, confiados num futuro brilhante para aquele fabuloso país.
E OS DIAS SEGUINTES
Mas o futuro não se apresentava fácil. O BM abria as suas portas com a obrigação de gerir as disponibilidades externas do país e estas eram de 150.000 contos (€750.000), o que equivalia, mais ou menos a uma dona de casa ter cerca de 25 escudos (€ 0,13) para sustentar uma família de 4 pessoas durante uma semana (estas equivalências não são “cientificas”, mas dão uma ideia, em termos actuais das dificuldades que sentíamos) Portanto a nossa mais urgente tarefa era desencantar divisas para sustentar as necessárias importações. Tínhamos ainda nos cofres do banco uma partida de pouco mais de 1 tonelada de ouro, proveniente de vendas antigas dos garimpeiros ao BNU, quando a exploração das areias auríferas, dos rios do norte de Moçambique, era rentável e que tinha ficado para o BM, nos termos do acordo celebrado; mas não queríamos começar a vende-la.
Felizmente o governo provisório de Moçambique (o que se seguiu ao 25 de Abril de 1974 e que se não deve confundir com o de transição, que foi o que se seguiu ao acordo de Lusaca, em 7 de Setembro do mesmo ano), que teve uma gestão muito vantajosa para Moçambique, nem sempre reconhecida, conseguira travar o envio do ouro dos mineiros moçambicanos para a “Metrópole”, obtido nos termos de um acordo entre Portugal e a África do Sul. Este acordo estipulava que, do salário dos mineiros, metade lhes era pago na África do Sul e a outra metade era enviada, em rands, para Moçambique, cujas autoridades pagavam o seu contravalor, em escudos, à pessoa que o mineiro indicava. Estipulava mais que quando o envio de rands atingia um determinado montante, Moçambique tinha a opção de trocar esse montante por ouro, primeiro a 28 dólares, depois a 32 a onça. Simplesmente, Moçambique vivia uma constante fome de divisas e quando atingia, contabilisticamente, o montante de rands provenientes dos salários dos mineiros necessário para comprar uma partida de ouro, já tinha gasto esses rands em outras importações e não tinha disponibilidades para pagar à África do Sul o ouro que podíamos comprar. Salazar resolveu o problema, dando ordem ao Banco de Portugal (BP) para fornecer os rands necessários e o ouro seguia direitinho para os cofres do BP. Foi uma partida desse ouro que o governo provisório impediu que viesse para Lisboa. Mas grande parte do ouro detido por Portugal teve esta origem, foi comprado a $28 e 32 e tem hoje o valor que tem, mesmo assim inferior à cotação de mercado.
Em Dezembro de 1971,na sequência da desvalorização constante do dólar e do progressivo aumento do deficit comercial americano, o Presidente Nixon, dos Estados Unidos, determina a inconvertibilidade total do dólar em ouro, pondo assim termo ao sistema de Bretton Woods. Sublinhe-se, todavia, que, desde 1968 o dólar já era inconvertível, excepto para operações entre bancos centrais. O ouro passa a ser uma mercadoria como qualquer outra, sujeita às flutuações do mercado, mas um mercado altamente controlado, tanto pela República da África do Sul como pela União Soviética, como por países detentores de grandes reservas de ouro, embora menores produtores, como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França. Em 1973 começa a primeira crise petrolífera e o preço do crude multiplica-se por 4.
Daqui e de outras condicionantes que não vêm ao caso, o ouro subiu rapidamente no mercado livre, e, no segundo semestre de 1975 já estava bem acima dos $100 a onça.
Havia, portanto, uma proposta a fazer aos sul-africanos: que eles vendessem a partida de ouro a que tínhamos direito, se cobrassem do seu valor a $28 a onça e depositassem a diferença, em dólares, a nosso favor. Não acreditámos muito que o governo sul-africano aceitasse a proposta, mas a verdade é que recebemos uma comunicação do “Reserve Bank of South Africa” dando a sua anuência e propondo-se fazer a operação. Eu e o Cassimo discutimos o assunto e concluímos que não era altura para desconfianças e que devíamos dar o nosso acordo à proposta sul-africana e encarregar o Reserve Bank da operação, que ele concluiu rapidamente, vendendo o ouro ao melhor preço, cobrando-se estritamente do que lhe era devido nos termos do acordo, não levando qualquer comissão pela sua actuação e depositando, à ordem do BM alguns milhões de dólares.Na sequencia deste processo,de acordo com a cotação do ouro no mercado internacional, chegámos a vender ouro a mais de 700 dólares a onça, que nos custava32 dólares tambem a onça.
O CAMINHO DE N'KOMATI
Samora Machel não se apercebeu, de imediato, que estes comportamentos de boa vontade da África do Sul para com Moçambique independente (já se tinham manifestado anteriormente com a recusa da África do Sul em intervir a favor da tentativa de golpe de estado do 7 de Setembro), tinha muito a ver com a transformação da sociedade “bóer” que evoluía de uma comunidade basicamente agrícola para uma comunidade de base industrial e que começava a mostrar fracturas entre os “verligts” (iluminados) e os “verkampts” (conservadores), fracturas essas que atingiam já o coração do “Brotherbond” e iriam ter uma forte influência na futura evolução da África austral, no fim do “apartheid” e na transformação da África do Sul numa república democrática, com governo de maioria.
Mas a atitude sul-africana causou alguma curiosidade a Samora Machel, que numa primeira impressão a atribuiu ao medo dos sul-africanos da independência de Moçambique, mas resolveu averiguar melhor as razões daquele comportamento. Entretanto o governo sul-africano fazia saber ao BM e ao governo de Moçambique que o acordo sobre os mineiros era com Portugal e, portanto, tinha que ser dado como terminado ou renegociado com Moçambique.
Em face disto, Samora entendeu que havia que realizar um encontro secreto, na Suazilândia, entre os governos sul-africano e moçambicano, a nível ministerial. O encontro realizou-se, cada uma das delegações era chefiada pelo ministro dos negócios estrangeiros (da parte moçambicana o Joaquim Chissano) e composta de vários ministros e dos governadores dos bancos centrais dos dois países
Fazia parte da delegação moçambicana o ministro da indústria ( Mário Machungo ?), que no tempo colonial tinha sido funcionário do Banco de Fomento em Moçambique; no período pós-25 de Abril. Tinha tentado encaixar-se nos quadros metropolitanos do referido banco, mas como o não tivesse conseguido se converteu num ultra-marxista militante. Como tal usou da palavra para dar barraca e acusou o Reserve Bank sul-africano de, na operação ouro atrás descrita ter vendido o ouro abaixo do preço de mercado, ter prejudicado Moçambique e feito um proveitoso negócio. Isto deu origem a uma violenta réplica do presidente do Reserve Bank, que demonstrou com documentos a falsidade do que o ministro afirmara e dizendo que não lhe admitia aquele tipo de insinuações. O Chissano, aflito com a situação, pediu uma interrupção, reuniu-se com o Cassimo e por ele soube que os sul-africanos tinham razão e mandou o ministro da indústria de imediata volta a Maputo, dando, no recomeço da reunião uma desculpa para a sua ausência, que todos perceberam ser diplomática e pouco verdadeira. Mas a questão do ouro ficou inquinada e a delegação sul-africana fez saber que havia que, em curto prazo, revogar o acordo ou que, senão, a África do Sul o faria unilateralmente.
As coisas ficaram assim em suspenso, mas, entretanto venceu-se o direito de Moçambique a mais uma partida de ouro, a operação decorreu normalmente, por intermédio do Reserve Bank, e as reservas de Moçambique aumentaram em mais uns largos milhões de contos.
Assim foi possível assumir compromissos internacionais e cumpri-los pontualmente e a confiança no BM aumentou, começando nós a receber propostas de concessão de créditos e de níveis de descobertos de grandes bancos internacionais que, como o City Bank, nos ofereceram taxas mais favoráveis. Moçambique se conseguisse, pelo menos, manter os seus níveis de produção interna, poderia ter passado o período pós-independência sem grandes dificuldades e sem a escassez de bens de consumo que se veio a verificar.
Em 24 de Julho de 1974, Samora Machel, cheio de pressa em cumprir os seus compromissos com os apoiastes da Frelimo na sua luta, tinha nacionalizado as casas, extinto os advogados e feito mais uma série de disparates que só serviram para destabilizar as pessoas e a situação. Eu assisti ao discurso, no estádio da Machava, na companhia de um sobrinho, mas não percebi nada do que disse Samora Machel, porque a aparelhagem sonora, herdada do colonialismo, era péssima. Quando chegámos a casa, íamos, eu e o sobrinho, sorridentes. - Vens muito bem disposto, disse a minha mulher. – Sim, aquilo esteve giro, retorqui. – Podia ter estado giro, respondeu minha mulher, mas acabaram-te com a profissão. Advogados acabaram, ponto final!
Ela tinha ouvido o discurso pela rádio e estava certa do que dizia. Fiquei estupefacto, mas pensei que era medida anunciada que todavia levaria algum tempo a ser executada. Também era medida que me não afectava muito, porque estava no banco, já não advogava, mas mantinha o escritório aberto para atender os clientes que vinham saber notícias dos processos, receber improváveis substabelecimentos e, os mais sérios, pagar algumas contas atrasadas. De tudo tratava o meu fiel e inteligente secretário, Simião Obadias Sitoe que todos os dias me dava conta do que se passava e recebia instruções sobre como resolver casos mais complicados; o contacto era fácil, visto que o meu escritório era no Prédio Coimbra, mesmo ao lado do BM.
Mas enganei-me. No dia seguinte, às 8 horas da manhã, telefonava-me o Simião a dizer que tinha lá três guerrilheiros, de kalache em punho, a exigir-lhe a entrega das chaves do escritório, ao que respondeu que só entregava com minha autorização e pareceu-me disposto a resistir pela força caso eu não lha desse. Disse-lhe que tivesse juízo, entregasse um jogo (tínhamos vários, claro) de chaves e ao fim da tarde o pessoal passasse por minha casa para discutirmos o futuro deles.
Por essa altura eu era juiz substituto numa vara do tribunal, pelo que resolvi passar por lá para ver os efeitos do discurso de Machel. Quando cheguei estava um mulato aos berros, chamando corrupta a toda a gente, juízes incluídos, e exigindo que o seu processo fosse ali mesmo resolvido, a seu favor, claro, e sem contraditório. Era um processo-crime, de pequena importância, ainda sem julgamento marcado. Disse-lhe que tivesse calma, que o julgamento aguardava umas diligências para ser marcado e que fosse para casa. Mas o homem insistia na sua absolvição imediata e sem formalidades e em insultar toda a gente. De modo que fiz uma coisa que nunca tinha feito a ninguém, nem voltei a fazer: prendi o homem e mandei telefonar para a policia para o ir buscar e marcando logo um julgamento sumário. Medida muito bem recebida pelo pessoal, que imediatamente o prendeu numa sala e o mandou calar o bico ao que ele obedeceu prontamente. Veio a polícia que o levou. No dia seguinte telefonou-me o Raposo Pereira, meu antigo colega e então chefe da policia, perguntando-me se eu aceitava desculpas do homem. Disse-lhe que sim desde que fossem directas, sem adversativas e na frente de todo o pessoal do tribunal. Assim se fez e o homem foi em paz. Devia ser um esbirro, encarregado de testar os efeitos do discurso.
Voltemos, porém, ao que interessa, isto é, as negociações com a RSA sobre o acordo dos mineiros.
Rapidamente, suponho que por insistência dos sul-africanos, se marcou nova reunião, desta vez em Maputo, na sede do banco. A delegação de Moçambique era liderada pelo próprio Samora Machel e a da RSA pelo governador do “ Reserve Bank “, em representação do PR da RSA.
Cerca de um mês antes da reunião tanto a Frelimo como Samora Machel, que se tinha apercebido bem da importância daquelas negociações, tanto a nível das necessidades imediatas de divisas como ao de abrir, sem compromissos políticos fundamentais, um corredor de negociações com os sul-africanos, começaram a preparar a reunião; nesse contexto, o Cassimo, a sugestão de Samora Machel, contactou-me pedindo-me que elaborasse um parecer jurídico que resolvesse o problema do tratado Portugal/RSA, de modo favorável a Moçambique, mas sem compromissos. Eu tinha já pensado no assunto e tinha uma ideia sobre como resolve-lo; de modo que respondi ao Cassimo que tinha muito gosto, mas que precisava de ter acesso aos meus livros, fechados pela Frelimo no escritório. O Cassimo disse-me que isso devia ser impossível, porque aquilo tinha sido uma medida de princípio do governo e que eles não deviam querer abrir excepções. Disse-lhe que tinha muita pena, mas que sem livros, não podia haver parecer. No dia seguinte apareceu-me com uma autorização do governo para ter acesso ao escritório, dizendo que devia contactar a polícia para colher as chaves; respondi-lhe que não era necessário porque tinha diversos jogos de chaves e só tinha entregue um. O Cassimo riu-se e disse: -Vocês são tramados! E desatámos os dois a rir!
Lá fui buscar os livros à minha vasta e bem fornecida biblioteca e comecei a fazer o parecer, que me deu bastante trabalho porque sobre o assunto (a sucessão nos tratados internacionais) havia as mais díspares e variadas opiniões de autores portugueses e estrangeiros. Baseei-me muito num livro, sobre o assunto, do então negregado Silva Cunha, meu ex-professor e ministro caído no 25 de Abril, que citava uma vasta bibliografia e transcrevia muitos autores, mas ainda me vali de vários tratados e monografias que possuía e encomendei mais dois ou três através da nossa direcção de documentação (CDI – Centro de Documentação e Informação), chefiada pelo Ilídio Rocha os quais, todavia, chegaram atrasados dado o pouco tempo disponível, apesar de o Ilídio ser de uma eficiência e rapidez notáveis na obtenção de documentos e livros. Digo isto, porque considero que a transformação da biblioteca do banco em Centro de Documentação e a promoção do Ilídio a director, com meios e independência substancialmente aumentados foi obra do Cassimo e minha, que ambos considerámos como uma das mais importantes para Moçambique, o seu governo, o BM e todas as instituições governamentais. Os dossiers elaborados pelo Ilídio e seu pessoal ficaram célebres e permitiram aos ministros fazerem autênticos brilharetes nas reuniões internacionais a que tinham de ir. O Aquino de Bragança, que se auto intitulava o Kissinger de Samora Machel, ficou espantado de em Moçambique haver um serviço daquela qualidade e passou a ser uma carraça do Centro e do Ilídio. Uma vez em que o Aquino me elogiava o serviço tive ocasião de lhe dizer que nada seria assim se não tivéssemos o homem certo para o lugar certo – o Ilídio Rocha; daí, e de outras coisas, como em geral, o bom funcionamento do banco, se concluía que a cooperação com a antiga potência colonial podia ser útil aos novos países.
Voltemos, porém, ao parecer. Elaborei-o, baseando-o, fundamentalmente, nas diversas posições que Moçambique podia tomar, como país descolonizado, em relação a tratados celebrados pela ex-potencia colonial e que se lhe aplicassem: unilateralmente, rejeitá-los ou absorve-los, na totalidade e neste último caso declarando que sucedia no tratado; ou alterá-lo, neste caso só por negociação, mas mantendo o tratado em vigor, unilateralmente, enquanto as negociações não fossem concluídas por acordo ou em fracasso. Sublinhava que neste último caso, fracassadas as negociações, não era possível voltar atrás e qualquer das partes podia denunciar o tratado. Havia um ponto obscuro, que era a existência de um outro acordo, paralelo e secreto, entre Portugal e a África do Sul respeitante ao apoio desta ao exército português na luta contra a Frelimo. A posição quanto a este ponto não podia obviamente ser aceite por Moçambique, nem devia ser mencionada no parecer, mas aconselhei, verbalmente, que a delegação moçambicana, visto que o que estava sobre a mesa era o tratado sobre os mineiros, nem falasse no assunto e só tomasse posição, caso a África do Sul mencionasse a questão durante as negociações.
O parecer foi discutido numa reunião do comité central da Frelimo, que teve lugar no próprio banco, e deu origem a um Charivari dos diabos. Começou tudo aos berros, a maioria dizendo que Moçambique nunca podia subscrever a sucessão no tratado. O Mariano Matsinhe, todavia homem cordato e ponderado, declarou que se nós assinássemos aquilo, no outro dia vinha publicado no “Finantial Times”, de Londres, Só Samora Machel se mantinha calado. Acalmada a vozearia, pronunciou-se e disse: nós não vamos subscrever papel nenhum; vamos entregar o parecer aos sul-africanos dizendo que se trata de um parecer técnico sobre o qual ainda não tomámos posição, mas que é nesse quadro que o assunto deve ser discutido, a não ser que a delegação sul-africana tenha outro que queira apresentar. Samora abria uma janela para a possibilidade de ter um tratado com a África do Sul mas não dava quaisquer garantias e esperava pela reacção para perceber bem a intenção deles em relação à África austral e para saber se quanto a isto havia divergências. Por outro lado ganhava tempo, o que, não sendo essencial, era importantíssimo para a situação económico-financeira de Moçambique. Estou certo que, depois do que a seguir se passou, Samora ficou convencido que outro caminho era possível para a África austral que não o banho de sangue que todos previam.
Dias depois teve lugar a reunião com os sul-africanos, liderados pelo governador do “Reserve Bank” Samora entregou o parecer traduzido, com as referencias atrás expressas. O Governador sul-africano leu-o atentamente, circulou-o pelos elementos da delegação, conferenciou com eles e, depois, declarou: este documento ultrapassa a esfera da minha competência. Antes de me pronunciar, devo reportá-lo ao meu presidente da República; só ele pode decidir o que devemos fazer a seguir. Até lá, espero concordem em suspender esta reunião. Todos concordaram.
No dia seguinte o Ilídio Rocha recebeu, da presidência da República de Moçambique inúmeros pedidos de “dossiers” sobre a África do Sul e a sua política.
Creio que foi ali, com a estratégia e diplomacia de Samora Machel, que se começou a abrir o caminho para N’Komati e para a solução dos problemas do sul da África.
Quando me vim embora de Moçambique, cerca de dois anos depois, o tratado continuava em vigor, Moçambique tinha as suas contas em dia e, nas suas reservas à ordem do BM, quatro milhões de contos em divisas fortes e 45 toneladas de ouro. Não era muito, mas era totalmente diferente da situação que tínhamos encontrado em 1975;e permitia recuperar a produtividade das empresas, estimular a actividade económica e lançar Moçambique na senda daquele pequeno paraíso na terra, que sempre foi o seu caminho, independentemente de colonialismo, capitalismos, imperialismos ou socialismos. Na verdade, mais do que as ideologias, são os povos que determinam o seu futuro e, ali, naquele canto da África Oriental, deus ou o diabo, ou ambos, tinham semeado um conjunto de populações, raças e credos que acabaram por se entender e fundaram esse pequeno paraíso, cheio de defeitos e de fundadas esperanças, que é Moçambique.
Primeiro foram os nativos, africanos negros, espíritos ciosos das suas prerrogativas e dos seus direitos mas abertos às inovações e compromissos para as obter e com um grande espírito de solidariedade, amantes da paz mas facilmente estimuláveis à violência. Vasco da Gama, um grande senhor da história e não propriamente um modelo de virtudes, pelo que sabia do que falava, chamou àquelas terras “TERRA DA BOA GENTE “
Depois vieram outros povos, árabes, brancos, asiáticos e as magnificas misturas que tudo isto originou e, apesar de injustiças e prepotência, todos acharam que o melhor era arranjar um modus vivendi, que, apesar das injustiças sociais com forte conotação rácica, permitisse uma convivência civilizada. Para tal muito contribuiu o movimento de libertação – a Frelimo de Simango, Mondlane e Machel, que nunca fizeram da raça, mas sim da libertação, a razão da guerra. Por isso escolheram a guerrilha, mas não o terrorismo.
A ESTRATÉGIA DO BM
Resolvido o problema imediato da carência de disponibilidades sobre o exterior, havia outros problemas a resolver, qual deles o mais urgente: o apoio à economia real, a luta contra a fuga de capitais, a emissão de nova moeda, a reestruturação da banca e a confiança na mesma. Deixemos para o fim o apoio à economia real e vejamos primeiro os outros pontos.
EMISSÃO DE NOVA MOEDA
A Frelimo vinha com a ideia formada de emitir nova moeda. Vinha mesmo com a emissão já pronta, fabricada na Checoslováquia; as moedas eram bonitas, sextavadas com motivos moçambicanos, as notas de muito má qualidade e sem segurança nenhuma. Chamava-se metical e a ideia era trocar um metical por 10 escudos. Aquilo foi uma surpresa para nós, Cassimo incluído, e toda a administração do banco começou a pensar no assunto. E só encontrámos razões para não fazer, de imediato, a troca de moeda. Em primeiro lugar, a operação exigia uma absoluta confiança nos agentes encarregados da troca e não eram tempos para ter confianças exageradas, sendo de prever a possibilidade de muito dinheiro ir parar a mãos indevidas; depois a especulação aproveitaria a ocasião para inflacionar os preços de bens e serviços; depois a Frelimo vinha aconselhada a fazer a operação num prazo curto, um mês, no máximo, findo o qual a moeda antiga deixaria de ter valor e não podia ser trocada pela nova; ora a economia de Moçambique, graças às cantinas, estava razoavelmente monetarizada, pelo que havia muita pequena poupança guardada pelas mulheres nas palhotas e nos lenços e não era possível contactá-las num período tão curto, o que daria como resultado ficar muito dinheiro sem valor e o consequente descontentamento popular. Tudo isto foi exposto ao governo com a opinião do BM de que não era oportuna a substituição da moeda nos tempos mais próximos. A estes argumentos veio juntar-se um outro: a rádio Xiconhoca (uma rádio da futura Renamo, que ainda não actuava como guerrilha mas tinha já uma estação a transmitir da ainda Rodésia) anunciou que na nota de 10 meticais, com a efígie de Machel no verso e uma pakassa no anverso, os cornos do bicho saíam da testa de Machel, vista a nota à transparência. Fosse qual fosse a razão, a troca da moeda ficou sem efeito, por muitos anos. Mas a rádio Xiconhoca, neste ponto, falava verdade.
Outros assuntos eram de especial importância, como o da estrutura do crédito a conceder. O país definia-se como socialista e privilegiava a propriedade pública. Mas as nacionalizações de 24 de Julho de 1975 não tinham tido grande sucesso. A justiça estava um caos e a medicina pior. Um médico fora preso por ter assistido a um indivíduo, negro, que tinha tido um colapso e desmaiara no meio da rua, à sua frente, sob a alegação de que estava a exercer medicina privada. Os consultórios médicos privados foram todos encerrados, grande parte deles com equipamentos sofisticadíssimos, que ficaram lá dentro, a deteriorar-se, deixando de ser utilizados e ninguém os foi remover para continuarem a ser utilizados. Claro que o povo de Moçambique não era muito beneficiado no campo da assistência médica, mas os hospitais públicos e os hospitais das missões prestavam já muitos serviços à população; a assistência na maternidade estava em franco desenvolvimento e, por exemplo, a taxa de mortalidade da maternidade de Lourenço Marques do Hospital Miguel Bombarda, dirigida por um grande médico, moçambicano e branco, era das mais baixas de toda a África e era utilizada maioritariamente por mulheres africanas. Isto era devido não ao governo colonial, mas sim ao espírito reivindicativo do pessoal, sobretudo médicos e enfermeiros, tanto negros como brancos.
Mas, dado os maus resultados das mal preparadas nacionalizações, o governo não fez muitas mais, mas passou a intervir nas empresas que eram abandonadas pelos seus proprietários, nomeando administradores. O pessoal, em risco de perder o emprego, organizava-se em grupos dinamizadores e exigia do governo a nomeação de administradores. Chegaram a ser publicados no Boletim da República despachos de intervenção em tabacarias de escada, sem a menor viabilidade económica.
O resultado disto era que os bens da empresa eram distribuídos pelos novos administradores ou por estes e pelo pessoal, quando este estava atento e não deixava os administradores ficarem com tudo e as empresas fechavam. Claro que já antes os primitivos proprietários, que saíam de Moçambique, tinham descapitalizado a empresa tanto quanto podiam. Este fenómeno aconteceu apenas com pequenas empresas industriais e comerciais, porque as maiores e de organização mais sofisticada, aguentaram-se, intervencionadas ou não. Todavia este fenómeno causou desemprego e empobrecimento da população e podia ter sido evitado, se outra fosse a politica.
O BM, dada a forma como tinha sido negociada a transferência do BNU, mantinha toda a sua operacionalidade e tinha uma informação actualizada do estado da economia moçambicana, com dados muito concretos sobre o estado das culturas e da produção industrial que era fornecida à administração do banco pelos diversos e inúmeros balcões espalhados por todo o país e que se mantinham ao corrente da actividade económica. Demos ordem aos diversos directores e gerentes para que mantivessem o fluxo de crédito e, para o efeito aumentámos as suas competências, mas dando-lhes instruções para que sempre que tivessem dúvidas, quer pelo súbito aumento do crédito solicitado em relação ao histórico quer por outras informações que tivessem sobre as empresas, da aplicação das importâncias solicitadas aos fins propostos, que ou negassem os créditos ou os submetessem à apreciação da administração ou do governo do banco. Tratava-se de uma medida cautelar, destinada a evitar excesso de liquidez na mão dos agentes económicos e a aplicação desse excesso a fins ilegais, como a exportação de capitais ou financiamento de actividades especulativas; estas medidas eram completadas com outras, já praticadas no tempo do BNU, de informação sobre a evolução e comportamento das empresas e estrito controle sobre as garantias oferecidas (penhores, hipotecas, fianças etc.). O pessoal do banco, tanto o cooperante como o directamente vinculado ao banco, foi inexcedível de competência e de seriedade e conseguiu evitar tanto a fuga de capitais como o descalabro financeiro que a súbita existência de disponibilidades externas podia ter originado. Mas não conseguimos evitar algumas operações sobre que não tínhamos controle e que relatarei mais adiante, como sejam a fuga de aviões de carros, de barcos, de gado ou recebimento directo no destino do valor de exportações por razão de procedimentos habituais e que foram de imediato colmatados, mas que se reduziram a importâncias insignificantes que não puseram em causa as finanças de Moçambique e que só num caso foram determinadas por uma insuficiência regulamentar do BM.
Esta acção do banco não foi muito popular, sobretudo para os abutres que se perfilavam no horizonte, desejosos de entrar na senda dos empréstimos nunca pagos para enriquecerem quer em moeda moçambicana quer em dólares, através das comissões que recebiam pelo controle do comércio externo. A primeira batalha foi a de quererem que o BM fosse apenas um banco central e se autonomizasse a parte de banco comercial noutro banco. Claro que nisso tinham o apoio do FMI.
Sempre achei que, pelo menos em países subdesenvolvidos, é de toda a conveniência que o banco central tenha uma forte componente comercial, para não perder o contacto com a economia real, que é o que mais importa. Por outro lado, a visão da economia real estimula e condiciona, em função dos interesses macroeconómicos do país, a concorrência a fazer à banca comercial e para ela ser eficaz é muito conveniente a autoridade e os poderes do banco central. Assim defendi que, na altura a criação de um banco comercial era contrário aos interesses de Moçambique; mas nunca vi tanto marxista-leninista preconizar esta separação. O que foi mais tarde essa separação e a corrupção a que deu origem, só deram razão à minha tese que aliás o governador do banco, Alberto Cassimo, também perfilhava. Mas a clarividência de Samora Machel, a quem tive ocasião de expor a minha opinião e que não morria de amores pelas opiniões do FMI, abortou a tentativa dando uma resposta negativa à proposta. Tudo isto veio a propósito da organização da banca, em Moçambique que, como sempre, da parte do governo, passava por uma nacionalização total. Ouvido o BM, explicámos que os dois principais bancos, o Montepio de Moçambique e o Instituto de Crédito já eram controlados pelo estado, bem como o BM; os outros eram todos delegações de bancos portugueses e um de Angola, já independente mas num caos O único com sede em Moçambique era o Standard-Totta, totalmente privado. Não tínhamos qualquer interesse em nacionalizar delegações, cujas actividades estavam perfeitamente controladas e só iríamos receber paredes e mobiliário, além de abrirmos um contencioso com Portugal e Angola. Quanto ao Standard-Totta era um pequeno banco, bem administrado e moçambicano, pelo que não o nacionalizar seria uma prova de que Moçambique estava aberto ao investimento privado e estrangeiro.
Por essa altura aconteceu uma situação anómala com uma delegação de um banco português, que resolvemos com bom senso. Havia uma empresa açucareira, a Maragra, que estava completamente falida, que tinha compromissos externos titulados por letras internacionais, a última das quais se ia vencer e era avalizada pelo Banco de Fomento (delegação em Moçambique e sede em Lisboa). Se a Maragra não pagasse, teria de ser o Banco de Fomento a pagar e teria de mobilizar as divisas em Lisboa, embora ficasse com um crédito em divisas sobre a Maragra. Mas esta estava falida e sem qualquer liquidez pelo que não tinha o contra valor em escudos moçambicanos para entregar ao BM, para este lhe disponibilizar as divisas necessárias ao pagamento. Mas a verdade é que apareceu no BM com os escudos moçambicanos necessários, a solicitar a emissão do cheque em dólares. Fomos apurar onde tinha a empresa arranjado o dinheiro e depressa descobrimos que lhe tinha sido emprestado pela delegação de outro banco português que não o de Fomento. Mas porque teria tal banco feito um empréstimo cujo montante sabia nunca mais ir receber. Averiguámos mais fundo e descobrimos. Por essa altura os portugueses que ainda estavam em Moçambique tinham em grande número, decidido depositar as suas poupanças no Consulado português. Este, posto ao corrente das dificuldades do Banco de Fomento, depositou esse dinheiro na delegação do banco português para este o emprestar à Maragra para esta poder entregar o contra-valor das divisas que ia solicitar ao BM. Ainda discutimos se devíamos fazer a operação, mas acabámos por decidir que sim. Afinal o pagamento era de equipamento valioso que estava na Maragra e que fosse qual fosse a solução para a Maragra, continuava a ser útil. Mas convocámos os directores das delegações do Banco de Fomento e do que fez o empréstimo e chamámos-lhe a atenção para que comportamentos daqueles não eram admitidos e que se repetissem algo de igual ou semelhante proporíamos ao governo que lhes encerrasse a loja. O Alberto Cassimo foi delicado mas duro na admoestação e o BM reforçou a fama que já estava adquirindo de se pautar por comportamentos éticos mas rigorosos.
Só o que nunca percebi foi porquê o governo português levou tanto tempo a decidir-se a pagar aos depositantes do consulado. Afinal foi com o dinheiro deles que o Banco de Fomento e o Banco de Portugal se livraram de dispender aquelas divisas, pelo que não tinha qualquer razão de ser o argumento de que tendo os depósitos sido feitos em escudos moçambicanos não tinham que o devolver em escudos portugueses. Deviam tê-lo devolvido com juros, porque dele se aproveitaram e tiraram vantagem.
PEQUENOS EPISÓDIOS SIGNIFICATIVOS
A política atrás referida do BM deu origem a diversos episódios que traduziam algum espanto dos agentes económicos por verem o banco a apoiar as empresas que se mantinham viáveis, apesar da conjuntura, quer interna quer externa, ser desfavorável. Internamente, o êxodo de muitos residentes, quer brancos quer negros, afectou gravemente as empresas, diminuindo a sua competitividade e rentabilidade; externamente, a crise económica degradara a cotação das matérias-primas e dos produtos agrícolas, enquanto aumentavam os custos dos factores de produção, tais como a energia, o que tudo prejudicava Moçambique. Por outro lado tínhamos a bonança do ouro dos mineiros que conjuntamente com as exportações e os serviços (portos e caminhos de ferro) talvez dessem para manter a economia em níveis aceitáveis capazes de não causar desgraças maiores para a população. Para tal era necessário estimular a auto-suficiência na produção alimentar, o que não era difícil, dada a abundância de terrenos agrícolas, a generosidade do mar e a existência de uma manada de gado capaz de satisfazer as necessidades internas. Era também necessário que o governo não fizesse muita asneira, perdesse a ideia fixa de colectivizar toda a produção e de desincentivar a produção familiar e artesanal. De imediato propusemo-nos apoiar as empresas com um futuro viável, apoiar as pequenas empresas agrícolas e de pesca e também os grandes empreendimentos industriais que o governo nos propusesse (mas destes pouco se viu).
A tudo isto metemos mão. É absolutamente falso, como quer um relatório anónimo sobre a banca em Moçambique, que o BM funcionasse como uma caixa do governo onde este fosse buscar dinheiro para os seus gastos sumptuários, sobretudo viagens de ministros e presidente. Claro que o banco era a caixa do estado e o governo sacava da sua conta as verbas de que necessitava de acordo com o orçamento. Mas dispendia as verbas do orçamento, não verbas do banco. Claro que o BM fazia empréstimos ao governo e, por vezes, antecipava lhe lucros. Só no primeiro ano de actividade o BM teve mais de 400.000 contos de lucros, depois de fazer fortes provisões. Mas os lucros do banco eram do estado e os adiantamentos e os empréstimos eram uma obrigação estatutária do BM, passando a administração dos seus montantes a ser responsabilidade do governo que não do banco.
Voltemos porém às nacionalizações do 24 de Julho de 1975. Mantive-me calado e não expressei qualquer opinião sobre as mesmas, até que o governador Cassimo, estranhando o meu silêncio, me perguntou, directamente, o que eu pensava; respondi-lhe que ele, se calhar não ia gostar da minha resposta, mas que se mesmo assim insistisse, eu lha daria; insistiu e eu respondi. Disse-lhe que, quanto à Justiça, não tardaria muito que o governo tivesse que engolir grande parte do que tinha feito e teria que recrear os advogados e nomear juízes credíveis. Quanto aos advogados já o D. Pedro 1º de Portugal e o Henrique 8º de Inglaterra tinham feito o mesmo e com pouco sucesso. Quanto a juízes não independentes e sem formação adequada, tal tornaria Moçambique num país incredivel como estado de direito, o que traria sérias e nefastas consequências a nível de investimentos e de comércio externo; finalmente se não fosse garantida a independência dos tribunais, ninguém mais teria confiança em Moçambique e sem confiança não há investimento.
Quanto aos médicos, a medida ia afastá-los de Moçambique e o país precisava era de mais, não de menos médicos; quanto às agências funerárias a sua nacionalização era ridícula; mais valia fixar preços; quanto às casas, os edifícios de maior porte estavam todos hipotecados aos bancos ou ao Montepio e, naquela conjuntura era fácil accionar as hipotecas e faze-los reverter para uma entidade pública; quanto aos imóveis pertencentes a entidades públicas distintas do Estado, como o próprio BM, ficava-se sem saber se também eram nacionalizadas ou não; quanto aos prédios de rendimento mais pequenos, eram resultado, normalmente de pequenas poupanças, de pessoas que queriam garantir um rendimento para o fim das suas vidas e as tinham investido, dando trabalho e pondo a economia a girar e eu não percebia porquê nós estávamos no banco a garantir a segurança dos depósitos e o governo punha em cheque estas poupanças; além disso nacionalização sem indemnização era puro esbulho. Mas a nacionalização dos prédios das companhias de seguros era o pior de tudo, porque eles faziam parte das reservas e com o desaparecimento destas, nenhuma companhia de Moçambique conseguia colocar um resseguro e, sem os resseguros, as companhias moçambicanas não tinham capacidade para cobrir os riscos cuja cobertura lhes era pedida. Moçambique era um país de transito de mercadorias e a sua indústria de seguros tinha interesse nacional, poupava divisas e era uma fonte de receitas, havia que protegê-la, fosse pública ou privada e não que condená-la a desaparecer.
O Cassimo abanou a cabeça e disse que eu estava sempre do contra, mas acho que foi relatar as minhas objecções para o governo, porque dias depois apareceu-me a pedir se eu não me importava de fazer uma portaria que excluísse os prédios das companhias de seguros das nacionalizações. Respondi-lhe que me estava a pedir que fizesse um disparate jurídico, porque com uma portaria não se podia alterar um decreto-lei, mas como estávamos em período revolucionário eu ia tentar fazer uma portaria revolucionária que fiz e consegui encaixar, um pouco à bruta, no articulado do Decreto-lei.In http://spesgaudium.blogspot.com/2010/11/o-primeiro-dia.html
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