Para melhor compreender a "guerra" com o Malawi:
Mbuzini
Não escrever a história a partir dos restos do apartheid!
Por Paul Fauvet*
Duvidar sobre a versão oficial de acontecimentos dum passado recente pode ser uma atitude saudável para um jornalista. Mas o artigo sobre a tragédia de Mbuzini de Luís Nhachote (nas páginas centrais do Savana de 21.10.05) rejeita a versão “oficial” moçambicana, só para abraçar a versão oficial do regime do “apartheid”!
É espantoso que não só Nhachote, mas, também, o jornal Zambeze e mesmo a televisão STV declaram que o livro do propagandista pró-Renamo João Cabrita, com o título “A Morte de Samora Machel”, é alguma coisa nova, espectacular, nunca vista antes.
A obra de Cardoso e Mbuzini
Na realidade, Cabrita simplesmente re-edita as alegações de 1986/87 do regime então vigente em Pretória. Essas alegações, incluindo o suposto plano para invadir o Malawi, tiveram na altura a resposta das autoridades e da imprensa moçambicanas.
E Luís Nhachote deve saber que o jornalista que mais escreveu sobre Mbuzini foi o nosso colega Carlos Cardoso, na altura director da AIM.
Em vez de escutar fontes moçambicanas, em vez de ler, por exemplo, os artigos que Cardoso escreveu em 1986/87, Nhachote preferiu fazer a sua história a partir da lata de lixo do apartheid.
Para os seus artigos sobre Mbuzini Cardoso ganhou o prémio sobre o jornalismo investigativo da Organização Nacional de Jornalistas (ONJ). É pena que nos dias de hoje esses artigos tenham caído no esquecimento.
É indicativo da baixa qualidade do livro de Cabrita que Carlos Cardoso e a AIM não sejam citados como fontes — embora sejam, de longe, as fontes mais importantes devido à sua tese de que o desastre foi provocado pelos militares do apartheid.
Para preencher essa lacuna, nada melhor que voltar ao ano distante de 1986, voltar ao trabalho de Cardoso. Na recente biografia de Cardoso, da minha autoria, conjuntamente com Marcelo Mosse, nos capítulos sobre Mbuzini, consta o seguinte:
“A primeira indicação de que poderia ter sido uma sabotagem electrónica veio de onde menos se esperava. Sérgio Vieira recorda que, quando chegou a Komatipoort, a caminho de Mbuzini, a 20 de Outubro, o Comissário Johann Coetzee, da Polícia sul-africana, depois de apresentar condolências, soltou esta informação: ‘Ministro, sabe o que diz a minha tripulação? Tem de se procurar um emissor de radio por ali’. E apontou na direcção das montanhas. Assim, os pilotos de helicóptero da polícia, menos de 24 horas após o desastre, acreditavam que o Tupolev tinha sido induzido a sair da rota por um rádio-farol pirata....”
As manobras sul-africanas
A 21 de Outubro recebi uma chamada do escritório da UPI (agência noticiosa americana) de Joanesburgo. O correspondente da UPI achava que a AIM devia saber que ele tinha recebido uma chamada anónima de um homem identificando-se como oficial da força aérea sul-africana que alegava saber que a Força Aérea sul-africana tinha colocado um falso rádio-farol algures na região da fronteira e que isso causara a queda do avião.
Fernando Lima ligou dos Estados Unidos. Disse que um oficial da força aérea americana afirmava que isso era possível, usando equipamento electrónico em terra, de modo a desviar um avião da sua rota estando o piloto convencido que seguia a rota certa.
Este oficial disse que conhecia bem o Tupolev 134 e sabia que os militares sul-africanos tinham a tecnologia para interferir no sistema de navegação do Tupolev. Usando esta tecnologia podiam criar uma falsa rota que podia induzir o piloto em erro.
Assim, diferentes fontes, a milhares de quilómetros de distância, tinham tido a mesma suspeita de que não se tratava de um simples caso de erro do piloto, mas que o avião tinha sido deliberadamente atraído para fora da sua rota.
O Governo sul-africano sem dúvida que se comportou como alguém que tinha algo a esconder. A dada altura, Pik Botha anunciou que havia álcool nos corpos dos membros da tripulação soviética. Tecnicamente, a afirmação era correcta, uma vez que o álcool é um dos subprodutos da decomposição dos corpos. Mas o que Botha queria sugerir é que o avião se despenhara porque os pilotos estavam bêbados....
Mas a manobra de diversão mais efectiva foi a súbita divulgação de um documento alegadamente retirado do local do desastre. Pik Botha convocou uma conferência de imprensa, afirmando que o documento era a prova de uma conspiração de Moçambique e do Zimbabwe para derrubar o governo do Malawi.
Quando as notícias desta conferência de imprensa chegaram à AIM, Cardoso telefonou imediatamente a Teodato Hunguana (o então ministro de informação). Esta era a primeira vez que Hunguana ouvia falar das afirmações de Botha.
“É uma tentativa grosseira de transformar a vítima em réu, fazer do agredido agressor, fazer do invadido invasor, apresentar o desestabilizado como desestabilizador”, exclamou para Cardoso. Não tinha a menor ideia sobre se o documento apresentado vinha ou não do avião e declarou: “Alertámos a comunidade internacional para um facto extremamente grave – a África do Sul está a fazer tudo para impedir o normal procedimento da investigação às causas da morte do Presidente Samora Machel”.
Pouco depois as palavras de Hunguana percorriam o mundo através de um despacho da AIM. Hunguana recordou este incidente como um dos exemplos do profissionalismo de Cardoso: a pronta reacção de Cardoso à conferência de imprensa “ajudou a neutralizar os planos da África do Sul”.
Investigações da AIM
De facto, em cada estágio a AIM estava em cima da notícia, e Pretória concluiu que não podia fazer declarações sem a resposta de Maputo...
Uma das áreas-chave investigada pela AIM foi o sistema de radar sul-africano. Porque a pergunta óbvia era: porque é que não foi usado o sistema de controlo aéreo para avisar o piloto que o Tupolev estava fora da rota e em risco de entrar no espaço aéreo sul-africano? Os sul- -africanos menosprezaram isto dizendo que o avião estava a voar a tão baixa altitude que saiu dos monitores do radar e os controladores aéreos assumiram portanto que tinha aterrado em Maputo.
Pik Botha afirmou a 1 de Novembro que o Tupolev “simplesmente desapareceu dos monitores. Ninguém em controlo do radar podia ou teria imaginado que houvesse alguma coisa anormal nisso”. Botha pintou um quadro que dava o sistema de radar como primitivo ou ineficiente, monitorado por pessoal desatento. Mas uma investigaçãozinha da AIM, usando fontes sul-africanas publicadas, demonstrou que Pik Botha estava a mentir. Mais de dez anos antes, a África do Sul tinha resolvido o problema de “aviões desaparecidos” dos monitores do radar. Em Mariepskop, junto das montanhas do Drakensberg, foi montado um sistema de aviso concebido para alertar sobre “aviões hostis aproximando--se da África do Sul”.
O regime do apartheid vangloriou-se disso. O “Star” de Joanesburgo, em Fevereiro de 1975, escreveu sobre este sistema que “pode detectar a maior parte dos movimentos numa vasta circunferência entre o oeste do Botswana, o norte da Rodésia, o sul de Moçambique e o leste do Natal. Calculadores de altitude são posicionados perto e podem calcular a altura de qualquer aeronave detectada pelo scaner. Este material era transmitido por computador ao quartel-general do sistema de defesa radar sul-africano, em Devon, que avaliava se a aeronave que se aproximava era amiga ou inimiga.
Em 1982, o sistema sofisticou-se com a aquisição do sistema de radar computorizado Plessey AR-3D. A própria empresa Plessey publicitou que o sistema dá “um quadro completo da situação no ar ao pessoal do comando central”.
Um quadro completo, não um quadro parcial, donde um objecto do tamanho do Tupolev-134 podia desaparecer misteriosamente.
Além disso, em Março de 1985, uma nova rede de radar de baixa altitude foi tornada operacional ao longo da fronteira com Moçambique. Pik Botha tinha-se vangloriado do novo sistema e as suas palavras podiam encontrar-se na imprensa sul-africana da altura, 19 meses apenas antes do desastre de Mbuzini....
Também em Março de 1985, toda a fronteira do Transvaal ocidental foi declarada um “espaço aéreo especialmente restrito” e Malan (ministro de Defesa sul-africano) anunciou que “todas as ajudas tecnológicas possíveis estão a ser usadas para garantir a sua eficácia”. Para obter autorização para entrar nesta área restrita, os pilotos deviam contactar o quartel-general da força aérea. Mas o Tupolev entrou directamente na área restrita e não houve nenhuma tentativa para o dissuadir disso.
Em Novembro de 1986, Botha tinha convenientemente esquecido as suas tiradas anteriores sobre as capacidades do radar da África do Sul...
Uma vez saído o relatório factual (da comissão de inquérito tripartida), a cooperação da África do Sul na investigação do desastre terminou. Pretória tinha feito o mínimo requerido pelas normas da ICAO. Passou então a rejeitar os pedidos de Moçambique para uma investigação do VOR que o avião tinha seguido.
A controversa Comissão Margo
Em vez disso, os sul-africanos organizaram a sua própria audição pública sobre o acidente, dirigida pelo juiz Cecil Margo, que conseguiu ter êxito em desviar as críticas ao governo.
A Comissão Margo nem remotamente foi imparcial. De fontes em Pretória Cardoso soube que um dos seus membros era também administrador da COMAIR, uma companhia aérea usada como frente pelas forças armadas sul-africanas para o reabastecimento da Renamo e da Unita.
Mas, apesar de nem Moçambique nem a URSS estarem representados na Comissão Margo, surgiam de vez em quando perguntas inconvenientes da parte dos advogados sul-africanos. Foi assim que perguntaram a Pik Botha porquê teria ele feito falsas acusações de que a tripulação do Tupolev estava embriagada. Margo interveio para impedir mais interrogatórios desta natureza.
Como se previa, a comissão de inquérito Margo atirou as culpas para a tripulação soviética e tanto as autoridades moçambicanas como as soviéticas rejeitaram as conclusões. O relatório Margo saiu a 9 de Julho de 1987, mas Armando Guebuza (na altura ministro dos Transportes e Comunicações) reiterou que o trabalho da comissão internacional de inquérito estava longe de ter terminado. “Só se pode chegar a conclusões depois de todos os factos terem sido investigados”, disse, “e particularmente este novo elemento vital – onde estava este VOR, era uma armadilha ou não? Mas os sul- africanos, na sua maneira arrogante e intransigente do costume, continuaram com o seu próprio inquérito e mandaram-nos o relatório”...
Nos finais de Junho de 1987, Magnus Malan declarou que não toleraria “a exportação da revolução” não só no sentido de sublevação violenta, mas, também, na forma de propaganda anti-apartheid. Num artigo de 30 de Junho, Cardoso escreveu: “Esta é a primeira vez que um dirigente do regime do apartheid tenta tão abertamente impor a jornalistas e políticos nos estados da linha da frente o mesmo nível de censura que impõe aos jornalistas dentro da própria África do Sul”.
A propaganda da SABC e o seguidismo cabritista
A 9 de Julho a SABC celebrava a conclusão do inquérito Margo com um ataque à AIM e a Carlos Cardoso em particular. Éramos todos descritos como “agentes soviéticos”.
“Pouco depois do desastre, os doutrinadores soviéticos começaram a conceber e efectivar uma intrincada estratégia de desinformação”, clamava a SABC. “Moscovo cooptava a assistência de agentes soviéticos de influência dentro das agências do governo de Moçambique. Os meios de comunicação de Moçambique participaram em pleno nesta campanha e serviram para dar ímpeto à operação inteira”.
“Dias antes da morte de Machel, Carlos Cardoso, o director do instrumento de propaganda da Frelimo, AIM, um marxista ortodoxo, especulou que a África do Sul ia possivelmente retaliar pela explosão da mina que matou seis soldados sul-africanos. Num artigo, Cardoso declarou explicitamente que o Presidente Machel era um alvo provável de uma tentativa de assassínio”. Neste ponto a peça da SABC mostrava a fotografia de Cardoso no ecrã.
“Cardoso emergiu mais tarde como figura-chave na estratégia de desinformação soviética”, continuava a SABC. “Na sua capacidade de director da AIM, ele esteve na origem de uma grande percentagem da produção total de desinformação”...
A isto seguiu-se, dias mais tarde, uma carta formal ao governo enviada por Colin Patterson, chefe da missão comercial sul-africana em Maputo, protestando contra os artigos de Cardoso. Hunguana mostrou a carta a Cardoso.
Patterson escreveu: “Considero decepcionante que Moçambique tenha seguido tão servilmente a linha de Moscovo sobre Mbuzini. O que torna o assunto mais triste é que Moscovo conhece a verdade e tenta defender a sua reputação e posição em África, ao passo que Moçambique aparentemente permite que o empurrem para assumir um ponto de vista totalmente desmentido pela evidência e as conclusões de peritos mundiais, para promover a sua própria inexplicável campanha de difamação contra a África do Sul”.
Segue-se a ameaça velada: “Deste modo, lamento dizê-lo, Moçambique já foi perigosamente longe na via da desconfiança e suspeição, no que diz respeito ao povo e governo da África do Sul”.
À distância de 15 anos, as invectivas da SABC e de Patterson sobre a conspiração soviética dão vontade de rir. Mas na altura pareciam carregadas de ameaça.
Finalmente, a questão de sucessão. A ideia de que Chissano “golpeou” Marcelino dos Santos só pode convencer alguém que não estava em Moçambique (Cabrita) ou era jovem demais para recordar o ambiente daquela altura (Nhachote). Na realidade, Chissano era o sucessor evidente. Eu me lembro bem de discussões informais entre jornalistas, anos antes de Mbuzini: ninguém duvidava: Chissano seria o próximo presidente. Assim, a decisão rápida da Frelimo depois da morte de Samora de eleger Chissano presidente não tomou ninguém de surpresa (em Maputo pelo menos, embora talvez não nas hostes de apartheid).
Falcões de ontem e de hoje
Como Mbuzini contribuiu para a paz
Por Luís Nhachote
O nosso colega mediaFAX (edição de 24 de Outubro) noticiou que proeminentes figuras políticas nacionais afectas ao partido Frelimo puseram em causa o livro do investigador moçambicano João Cabrita – “A Morte de Samora Machel”, no tocante à versão do autor sobre a forma como perdeu a vida o fundador da República Popular de Moçambique e também sobre o alegado plano de guerra que visava a invasão da República do Malawi, deposição do presidente Banda e instalação de um novo regime no país vizinho.
O veterano e histórico da Frelimo Marcelino dos Santos disse ao mediaFAX que “quem é moçambicano não duvida que Machel foi morto pelo apartheid”.
O conceituado escritor e intelectual Luís Bernardo Honwana, tal como Sérgio Vieira, na sua qualidade de co-fundador do Centro de Documentação Samora Machel, também desmentiu que Samora tivesse morrido numa missão de guerra.
Ambos insistem que o primeiro presidente moçambicano morreu no cumprimento de uma missão de paz. Minutas de uma reunião realizada no dia 16 de Outubro, três dias antes da morte de Samora Machel, na posse do SAVANA, ilustram que este morreu em missão de guerra.
O que diz o livro de Cabrita
O livro de Cabrita, de facto, faz referência e cita documentos sobre um plano militar que terá sido fabricado por Moçambique e pelo Zimbabwe para o derrube do regime do Presidente Kamuzu Banda, da República do Malawi, tido então como retaguarda da RENAMO-Resistência Nacional Moçambicana.
Desenvolvendo a sua tese sobre o aproveitamento político do desastre de Mbuzini, Cabrita trás dados novos afirmando que houve um aproveitamento “generalizado”, quer por parte dos Estados da então Linha da Frente e da sua aliada e extinta União Soviética comunista, quer da própria África do Sul, quer ainda dos partidos da oposição que se viriam a estabelecer em Moçambique depois de 1992 quando é assinado o Acordo Geral de Paz em Roma.
O autor de “A Morte de Samora Machel” escreve a dado passo: “A própria África do Sul, como que numa tentativa de desviar as atenções do seu alegado envolvimento na morte de Samora Machel, fez uso de um documento da Presidência da República moçambicana descoberto entre os destroços do Tupolev em Mbuzini, o qual dava conta de um plano concebido pelos Governos de Moçambique e do Zimbabwe para se invadir o Malawi e depor o regime de Kamuzu Banda.”
O investigador João Cabrita, que em “A morte de Samora Machel” trouxe ao público peças do inquérito ao acidente de Mbuzini – peças essas de que o nosso governo sempre dispôs, mas manteve sempre, inexplicavelmente, em segredo –, a dada altura refere que “o documento (da reunião de 16 de Outubro de 1986) deixa transparecer a relutância do então presidente zambiano, Kenneth Kaunda, em apoiar o plano (de Samora), cuja fase inicial incluía o encerramento de todas as fronteiras com o Malawi”.
E acrescenta, voltando a citar o documento, que Machel “pretendia assegurar, com carácter de urgência, o desdobramento na província da Zambézia de 1500 homens idos de Maputo e Nacala, assim como a transferência de aviões MiG-17 e helicópteros de combate da Beira para aquela província. Aviões MiG-21 seriam transferidos de Maputo para Beira, de onde operariam.”
As minutas de Maputo
O documento a que nos temos estado a referir são as minutas de um encontro entre delegações de alto nível de Moçambique e do Zimbabwe realizado em Maputo a 16 de Outubro de 1986, portanto 3 dias antes do Tupolev de Samora Machel se despenhar em Mbuzini, na África do Sul, a poucos metros da fronteira moçambicana.
O SAVANA conseguiu obter algumas dessas minutas e de uma leitura atenta do documento se pode constatar o ambiente de grande tensão militar então reinante na zona da África Austral. A linguagem utilizada nessa reunião é reveladora do agudizar do conflito armado em Moçambique e das posições extremadas que o nosso país, assim como o Zimbabwe pareciam estar dispostos a adoptar para se pôr cobro à instabilidade político-militar no nosso País.
Dizia Samora Machel na abertura do encontro de 16 de Outubro de 1986, em Maputo: “A atmosfera da nossa região em relação aos bandidos armados está muito elevada. Parece que pela primeira vez sentiram o perigo que representa o banditismo armado na nossa região.”
Em suma, era uma linguagem de homens de guerra, temperados na guerra, dispostos a continuar a fazer a guerra com o fito de acabar com a guerra. Na sua ordem de ideias, o alcance da paz seria, sem dúvida, o seu objectivo final. Mas o preço em vidas e infra-estruturas teria sido enorme para Moçambique e para a região, mais ainda sem garantias de sucesso, depreende-se da leitura das minutas de Maputo. A busca da paz com outra estratégia provou-se ser um caminho mais acertado. Hoje todos beneficiamos dela se a linguagem belicosa não voltar ao léxico político nacional pela voz de quem parece precisar dela para regressar à ribalta...
Antes do início do encontro de 16 de Outubro de 1986 (3 dias antes da fatalidade aeronáutica que pôs termo à vida do primeiro Comandante-em-Chefe das FPLM) que contou com a participação dos ministros de estado da Segurança e da Defesa do Zimbabwe, respectivamente Emerson Munangagwa e Ernest Kadangure, para além dos comandantes do Exército e da Força Aérea de Robert Mugabe, nomeadamente o General Rex Nhongo e o Marechal Tungamiray, entre outros, o Presidente Samora Machel fez questão de ordenar que o embaixador do Zimbabwe acreditado em Maputo, senhor Mvundura, abandonasse a sala de reuniões.
As minutas do encontro citam Samora Machel como tendo dito a-propósito: “Os embaixadores são complicados. Quando me reúno com o Primeiro-Ministro estão presentes e quando me reuno com os militares querem também” estar presentes. (NB: Robert Mugabe ainda não era presidente, o PR do Zimbabwe era Canan Banana)
Referindo-se ao Malawi, o falecido presidente Machel é citado nas minutas a dizer que “neste momento o que nos interessa é o foco do banditismo armado no Malawi. E, neste momento, a África do Sul está a fazer força, a 80 quilómetros daqui, acusando Moçambique de várias coisas, que é para não atacarmos o centro e eles continuarem a fazer do Malawi a sua base.”
O plano de guerra de Samora
Virando-se para o General Rex Nhono, o presidente Machel começou por dizer: “Rex, vamos dar tarefa aos políticos. Primeiro-Ministro (Mário Machungo, de Moçambique, hoje PCA do BIM) e Emerson consigam que:
1. Malawi aceite que as forças de Moçambique atravessem Zambézia/Tete/Zambézia através do seu território [...] assim como dê autorização para tropas zimbabweanas passem de Tete/Zambézia/Tete.
2. Zimbabwe proponha ao Malawi que utilizemos o porto da Beira... Esta é a parte política e só pode ser feita por gente da segurança e contra-inteligência.
3. Moçambique e o Zimbabwe descubram nova força no Malawi. Banda está gasto. Não deixemos a África do Sul colocar a direcção no Malawi. Não deixemos os ingleses, os americanos, a RFA escolher líderes para o Malawi. Os militares sabem como devem fazer as coisas.
4. Ganhemos o povo inteiro do Malawi. Nas nossas declarações sempre afirmemos que o povo do Malawi é nosso amigo, as autoridades é que são más, a sua acção é que prejudica as nossas relações. Ganhemos a maioria. Aqui estamos a seguir a teoria de Mao Tsé Tung: ganhar a maioria, isolar a minoria e aniquilar um por um. Nós podemos também organizar uma frente de libertação do Malawi, equipar e infiltrar no Malawi para liquidar os bandidos lá. Podemos também definir os alvos para essa frente de libertação do Malawi. O melhor combate é transferir a guerra da tua zona para a do inimigo e fazer dela carreira de tiro.”
Kaunda contra a guerra
No prosseguimento da sua alocução na reunião de 16 de Outubro de 1986, o Presidente Samora ordenou que os militares colocassem “todos os meios na Zambézia o mais urgente possível” acrescentando: “Nós fecharemos a fronteira com o Malawi. Sem armas e meios nada podemos fazer. Seria suicídio. Se não fazemos isso o Malawi vai continuar a meter bandidos armados. Temos algumas forças especiais para cumprir operações especiais. E temos cerca de 41 MiGs21. A vitória prepara-se. A vitória organiza-se. Exige sangue frio.”
De acordo com Samora Machel, “o Presidente Kenneth Kaunda não garantiu fechar a fronteira com o Malawi. Fizeram-lhe a pergunta e não deu resposta satisfatória.”
Tanzânia também era alvo
Ainda segundo Machel, “quando fecharmos a fronteira devemos ter a certeza de que se o Malawi desviar as suas mercadorias para a Tanzânia nós vamos partir as pontes que o ligam à Tanzânia. Mas terão de ser pontes que levarão 4 a 5 anos a construir. Se desviar a rota através da Zâmbia, não vamos partir as pontes da Zâmbia, mas partiremos as do Malawi que dão saída para a rota Kasangulo/Botswana e entrar para a África do Sul. Se partirmos as pontes que os levam à Tanzânia e à Zâmbia temos o Malawi nas mãos.”
Virando-se para o vice-ministro da defesa moçambicano, Armando Panguene (hoje embaixador nos Estados Unidos da América), e o ministro de estado zimbabweano para a Defesa, Kadangure, Samora Machel afirmou:
“Já defini o meu pensamento. Ponham lá a funcionar”.
Ao que Kadangure, de acordo com as minutas, respondeu: “Sim, pode ser feito”.
O antigo presidente moçambicano informou os seus interlocutores que a 10 de Outubro, isto é, 6 dias antes da reunião de Maputo, ele reunira-se “nesta mesa com moçambicanos, cubanos e soviéticos,” tendo ficado decidido que Sebastião Marcos Mabote (então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Moçambique - FAM-FPLM) “devia seguir imediatamente para a Zambézia” a fim de “reconhecer o efectivo dos bandidos armados em cada distrito e preparar um campo para receber 1.500 homens que sairão de Maputo e de Nacala.”
Segundo as suas próprias palavras, o presidente Machel queria: “transferir os MIGs21 para a Beira e a partir de lá vão operar. Os Migs17 e helicópteros de combate irão para a Zambézia que é perto do Malawi e de todos os distritos que os bandidos armados ocuparam no nosso país.”
E a finalizar, as minutas citam Machel como tendo dito: “Assim vemos friamente a situação. Esta é a nossa estratégia. O ponto é: como participa o Zimbabwe nisto tudo?”
SAVANA – 04.11.2005
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