Em 1975, ano da Independência de
Moçambique, o Fundo de Turismo, órgão do novo governo do país, fez publicar, para
difusão internacional da imagem das nações que se livravam do jugo colonial europeu
e que formavam um Estado soberano, o trabalho Pequena História de Moçambique
Pré-Colonial, produzido pelo escritor
moçambicano A. Rita-Ferreira.
Esse trabalho me
foi entregue – como a
outros jornalistas – quando
de uma de minhas estadas
já em Maputo, outrora Lourenço Marques, capital de
Moçambique. Impossível de publicar em jornal, na época, guardei-o e cumpro a
promessa antiga, divulgando-o quase trinta anos adiante, neste espaço cultural.
José Luiz Pereira da Costa,
2005
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1975, Ano da Independência
INTRODUÇÃO
Embora de diversa proveniência e
qualidade, é relativamente abundante a documentação ao dispor dos estudiosos que procuram dedicar-se à historiografia
de Moçambique. Mas para que possa ser convenientemente aproveitada torna-se indispensável
o seu
conhecimento com suficiente
pormenor. Como também exige cuidadosa ponderação e infinita paciência quer a identificação
dos elementos supérfluos e indignos de confiança quer a particularização das informações
respeitantes aos agrupamentos
étnico- linguísticos tradicionais.
O escopo e as limitações tipográficas desta pequena compilação não permitem que seja aqui incluída a numerosa
bibliografia em que se baseou. Por isso sugerimos aos leitores interessados a
consulta da nossa «Bibliografia Etnológica
de Moçambique»,
embora compreenda apenas os trabalhos editados até 1954. Poderão,
no entanto, encontrar referências mais modernas no final das «Memórias do Instituto
de Investigação Científica de Moçambique», série C, n.— 8 e 11, respectivamente
de 1.966 e 1974, onde se encontram publicadas duas monografias da nossa autoria. Também contêm referências bibliográficas
fundamentais outras duas obras nossas que se encontram já em fase de impressão:
«Moçambique e o Complexo Mutapa-Rozwi» e «Povos de Moçambique (História e Cultura)
».
Influenciados pela orientação
da moderna
historiografia africana, concedemos especial atenção aos
elementos até ao presente apurados sobre as circunstâncias em que, numa evolução
iniciada há cerca de dois mil anos, os bantos iniciaram o povoamento desta parcela
do continente africano e se diversificaram tanto cultural
como linguisticamente embora mantendo
um inegável substrato comum. Nesta tarefa
muito fomos auxiliados pelos escritos do já considerável número de eruditos, tanto
moçambicanos como estrangeiros, que, em épocas
mais recentes, vêm procurando, por métodos sistemáticos,
objectivos
e intensivos, reconstituir o passado dos povos africanos.
A dependência em relação à bibliografia publicada, deu como
resultado que as vicissitudes histórias sejam, de um para outro grupo étnico-linguístico,
desenvolvidas com desigual relevo. Pode, por conseguinte, acontecer que etnias de
somenos importância sejam tratadas mais desenvolvidamente do que outras de maior peso
demográfico. Mesmo assim,
no que concerne
àquelas cuja história é deficientemente conhecida, evitámos
dispersarmo-nos em pormenores irrelevantes. Mais útil e honesto nos pareceu evidenciar
a escassez e superficialidade das informações disponíveis e, dessa maneira, estimular
os futuros investigadores a concentrar nelas a sua atenção. Concomitantemente, os
relatos mais desenvolvidos respeitantes a etnias que hajam sido
objecto de estudos sérios e
profundos terão a vantagem de permitir que os potenciais pesquisadores efectuem
confrontos e melhor saibam reconhecer os aspectos que mereçam prioridade de esclarecimento.
Terminaremos com algumas informações
práticas:
a) Usamos a palavra «império» para
designar um aglomerado de etnias, cultural e linguisticamente diversificadas, compulsivamente
reunidas sob a égide de uma monarquia centralizada. Teremos assim «Império de Gaza»,
«Império Marave», «Império do Mwene
Mutapa», etc. Preferiremos o termo
«confederação»,
quando
nessas grandes unidades políticas diminuir o inicial grau de coesão, actuando com maior ou
menor independência os seus diversos componentes, embora continuando a
reconhecer a supremacia do original poder unificador. Quanto ao termo «nação» reserva-lo-emos
para os aglomerados políticos que unificaram tribos de idêntica língua e cultura
ou assimilaram efectivamente dentro da sua
orgânica numerosos elementos provenientes de outras etnias, como, por exemplo, a «Nação Swazi».
b) Dentro de cada subgrupo, a mudança de assunto é marcada
por um intervalo maior entre os parágrafos, assinalado no centro por um asterisco.
c) Na ortografia dos vocábulos africanos procurámos respeitar,
mutatis mutandis, as recomendações da reunião ecuménica realizada em Lourenço Marques
de 23 a 24 de Outubro de 1968,
com a presença
dos distintos
linguistas
Professores Baumbach e Marivate.
Embora se concentrasse
no Ronga, foi este, tanto quanto sabemos,
o primeiro esforço colectivo válido para resolver aquele problema complexo e até
então oficialmente ignorado.
As inovações mais importantes para os luso fofos dizem respeito à utilização
exclusiva do x para representar essa fricativa. O h fica reservado para os sons
aspirados e, dessa maneira, desaparece o ch. O som nasal nh passa a ser representado
por ny. Recorre-se também à consoante k e à semi-vogal w.
O AUTOR
CAPÍTULO I
O POVOAMENTO BANTO E A IDADE DO FERRO
Em Moçambique a arqueologia está longe de atingir desenvolvimento
científico tal que autorize a formulação de hipóteses sobre a cronologia da idade
do ferro e do povoamento banto a ela associado.
Entre os estudiosos locais é justo destacar O. Roza de Oliveira,
que tem investigado, mas, ao que supomos, sem conseguir obter datas pelo rádio-
carbono, numerosas jazidas contendo restos de olaria e de fundição de ferro, espalhadas
por vasta área da actual Província de Vila Pery.
Mais recentemente, em 1967, o Centro de Estudos de Arqueologia
da Associação Académica de Moçambique efectuou algumas escavações no litoral do
Sul do Save e nos vales dos rios Umbelúzi e Movene. Até ao seu encerramento, em
1970, foram publicados cinco números de um boletim policopiado, contendo os números
2 e 3 algumas referências à Idade do Ferro e ao povoamento ao longo do litoral.
Estas carências apenas permitem extrair ilações sem sólidos
fundamentos como as que se baseiam
nas pinturas
rupestres do tipo esquemático,
descritas por J. R. dos Santos Junior e outros autores, pinturas semelhantes às
existentes na Zâmbia, e que, como estas, se encontram provavelmente associadas a
povos da Idade Antiga do Ferro.
Para não deixarmos o público mergulhado em completa ignorância
sobre este assunto, temos, por conseguinte, que recorrer às investigações levadas
a efeito nos países vizinhos por qualificados arqueólogos.
Visando encurtar esta introdução, concentrar-nos-emos quase
exclusivamente na metalurgia e, em parte, na olaria, abstraindo - sem deixar aqui
de acentuar a sua importância-os dados relativos à dispersão da criação de gado,
à origem das plantas alimentares pré-gâmicas, etc. Também não desenvolveremos aqui
os obstáculos levantados a estas migrações humanas e animais por doenças terríveis
como as tripanosomíases.
ZÂMBIA
É em Machili, na parte zambiana do Kalahari, que foi encontrada a mais antiga
estação da Idade Antiga do Ferro em toda a Africa Austral, com a datação de 96 -
212 d. C. Revelou apenas armas e
utensílios simples: pontas para
flechas e lanças; algumas facas, machados e enxadas.
Um interessante sítio da Idade Antiga
do
Ferro foi descoberto na Província Oriental da Zâmbia, em Makwe, abrigo
rupestre perto da fronteira com Moçambique. A olaria a ele associada tem menos afinidades
com a sua contemporânea da restante Zãmbia do
que a típica da Africa Oriental e da cultura ziwa da Rodésia e de Moçambique.
J. O. Vogel obteve provas da Idade do Ferro, datadas do séc.
VIII, na camada mais antiga do sítio de Simbusenga, no Distrito de Kalomo, na Zâmbia
meridional.
Mais recentemente, D. W. Phillipson escavou, na mesma região, os sítios de
Thandwe, Kalamba e Kamnama. Principalmente neste último deparou com grande quantidade
de olaria semelhante à de Nkope, no Malawi, e, ainda, com provas de trabalho em
ferro datadas do III ao V séculos d. C.
Entre as três tradições cerâmicas da Idade Recente do Ferro definidas por
aquele autor, interessa-nos especialmente a de Luangwa, que se estende pelo Distrito
de Tete, ao norte do Zambeze. É uma tradição unificada, tanto em formato como em
decoração, com pequenas variações regionais, espalhada por vasta área e da exclusiva responsabilidade feminina. As datações de maior
confiança apontam o início do presente milénio. Tudo indica que está associada a
um substancial movimento populacional, envolvendo indivíduos de ambos os
sexos.
Nada revela que após aquela data
tenha ocorrido qualquer advento maciço de novos emigrantes. Parece provável
que as migrações ulteriores tradicionalmente atribuídas a povos
inteiros, se hajam,
em boa verdade,
restringido a um número relativamente
reduzido de aristocratas oriundos dos estados centralizados que se formaram no Sul do actual
Zaire, e que conseguiram
impor-se aos autoctones
constituindo unidades políticas mais
vastas
e complexas do que as do tipo clânico ou tribal. Neste processo de dominação e formação estadual, os Impérios de
Kalonga e Undi parecem ter sido fundados em data mais recuada do que os seus
congéneres Bemba, Bisa e Kazembe.
De todos os povos
de tradição luangwa, os Nsenga
foram os que retiveram
por mais tempo as características iniciais
de fragmentação política, posteriormente reduzidas pela dinastia dos Undis.
RODÉSIA
Deixando de lado a enigmática cerâmica de Bambata, não associada a actividades metalúrgicas, são pelos arqueólogos designadas por Ziwa e Gokomere
as mais antigas culturas da Idade do Ferro encontradas entre o Zambeze, o Save e
o Alto Limpopo. Ambas conheciam a mapira, a mexoeira, alguns amendoins e cucurbitáceas.
Possuíam rebanhos de ovinos, caprinos e bovinos. Podem considerar-se contemporâneas.
Os povos de cultura Ziwa estendiam-se pelo Barué, por Manica
e pela região oriental da actual Rodésia. Fabricavam uma cerâmica com bordos requintados
e com decoração em caneluras. Além do ferro exploravam o ouro, incitados decerto
pelos mercadores asiáticos e indonésios que já percorriam a costa oriental. Foi encontrado arame e
até um pedaço de lingote de cobre. Deparou-se numa dessas explorações com
uma moeda romana de António Pio (138-161 d. C.). Construíam nas encostas terraços
de cultivo. Os esqueletos são do tipo negroide com larga misceginação bosquimanoide.
Embora em Mabveni se haja obtido a data de 180:±-- 120 d. C.,
a cultura gokomere parece coincidir com o Período I do Zimbabwe (320 ± 150 d. C.).
Entre os seus achados arqueológicos (séc. VI e VII) aparecem, provenientes do litoral,
conchas marinhas e miçangas tubulares azuladas de origem indiana. Exploravam e trabalhavam,
embora sem carácter intensivo, o ferro para armas e utensílios, o cobre para confecção de ornamentos e o ouro
para efeitos de exportação. A sua
cerâmica era menos aperfeiçoada do que a que caracterizava os povos ziwas.
Em Malapati, no Rio Nwaneti, no extremo sudeste da
Rodésia, foi investigada por Robinson uma estação da Idade do Ferro que produziu
uma data do último quarto do primeiro milénio d. C. Olaria semelhante à de Malapati
foi descoberta no norte do Transvaal.
R. Summers interpreta as provas puramente arqueológicas como indicando
para estes proto-bantos da Idade Antiga do Ferro uma rota migratória comum vinda
do Sul do Malawi ou do Norte de Moçambique ou, ainda, da Tanzânia. Depois de subirem o vale do Zambeze,
ter-se-iam bipartido perto da actual Tete. Esses ramos meridional e setentrional
estariam na origem das diversas culturas rodesianas e zambianas da Idade Antiga do Ferro. A zona persistentemente
infectada de triponosomíases, alongando-se pela grande escarpa do Zambeze e tornando
impossível a intercomunicação, explicaria
a ulterior evolução independente dos dois ramos.
É curioso notar que outros arqueólogos, C. K. Cooke e A. R. Willcox, baseados
em parte nas pinturas rupestres, sugerem uma rota também de proveniência nordestina
e passando por Tete, para os pastores de ovinos que vieram a ser designados por
Hotentotes.
Na região ocidental da Rodésia atingindo
a Botswana e ultrapassando mesmo o Limpopo, instalaram-se, nos fins do 1.0 e princípios
do 2.° milénio novos imigrantes da Idade do Ferro, possivelmente xonas, que, misceginados
com o povo gokomere, deram origem à cultura de Leopard's Kopje. É a cultura mais
estreitamente associada à mineração: extraíam o ouro para exportação e o cobre para confecção de adornos. Na sua
olaria aparecem figuras
antropomórficas e zoomórficas e vasos
de bojo com
gargalos direitos ou concavos, decorados com cristas de barras onduladas
ou com linhas traçadas em ângulo. As suas povoações eram construídas quer em vales
bem irrigados quer em colinas rochosas de serranias. Em Tafuna Hill, P. Garlake
colocou nos séc. VIII ou IX um local associado à primitiva mineração aurífera. Também
conseguiu recentemente, em Leopard's Kopje, três datas da Idade Recente do Ferro,
que vão dos séc. IX a XI. Já das suas escavações nos amuralhados de Nhonguza e Ruanga
se inferem datas de construção situadas nos séc. XV e
XVI.
No grande Zimbabwe - depois
da falha de ocupação que se seguiu ao
desaparecimento
da cultura gokomere (Período I) - surge outro povo da idade do ferro, o xona, que
se espalhou por vasta área e que naquele local constituiu o Período II dos arqueólogos,
cujo estádio final foi datado de 1705 ± 150 d. C. Na sua cerâmica, irregular e
mal cozida, há vasos em forma de cabaça, sem decoração, bem como tigelas hemisféricas.
Desconheciam o polimento com grafite. Aparecem estatuetas humanas estilizadas e
modelações naturalistas do gado.
MALAWI
Quanto ao Malawi interessa-nos em especial o sítio de Nkope Bay, no extremo
sul do Lago Niassa, que acusa três datas assás recuadas 360:±- 120,
370 ±
60 e 775 ± 100 d. C. Mais recentemente restos da Idade do Ferro encontrados na confluência
dos rios Mitongwe e Liwadzi foram datados dos séc. II e III. Os ocupantes
fundiam o ferro
e conheciam o cobre.
Há evidência escassa mas suficiente de que praticavam
a agricultura, embora a caça e a pesca
constituíssem a principal actividade. A sua olaria
apresenta variações regionais com
alguma semelhança com o estilo gokomere. Não há provas de que dispusessem de gado,
mesmo caprino ou ovino. Em 1970 encontrou-se no local uma miçanga azul e parte de uma concha marinha, sinais seguros de contactos com o litoral, possivelmente por
via de tribos intermediárias. No Alto Chire, em Matope Court, fixaram-se duas datas
do séc. VII e IX.
Ainda no Sul do Lago Niassa a olaria encontrada nas colinas de Kapeni e Nkhombwa
foi datada, respectivamente, de 1235±75 e 1375 ± 75 d. C. Com raras excepções era
geralmente de argila impura e acabamento grosseiro. Em Matope Court dois locais
da Idade Recente do Ferro abrangem os séc. X-XI e XIII-XIV.
Os achados de Mawudzu e Mawuduzi, também no extremo sul do Lago Niassa,, já
se reportam ao séc. XV e pertencem ao período marave, mais propriamente ao ramo
nyanja. Estão claramente relacionados com a tradição
luangwa, da Zâmbia e do norte
da Província de Tete.
K. R. Robinson, com base
nas provas arqueológicas,
aventa que na actual
região do Malawi os primeiros imigrantes da Idade do Ferro vieram do norte, por
ambas as margens do Lago Niassa, utilizando alguns deles canoas como meio de transporte
e recorrendo à pesca para obter parte da sua alimentação.
O mesmo autor - baseado na tradição gokomere dos achados cerâmicos
de Nkope (Malawi) e de Dambwe (Zâmbia) -julga provável que variantes daquela cultura
se hajam espalhado pelo vale inferior do Chire e pelo Baixo Zambeze. Considera de
vital importância o estudo arqueológico da região entre o Lago Niassa e o Oceano.
A cerâmica Nkudzi, também no extremo meridional do Lago, acusa influências
bisas, do
longínquo Nordeste, sugerindo provável origem Luba-
Lunda. É
tentador imaginar que as relações estilísticas entre a arte destes
últimos povos e a dos Makondes tenham seguido esta rota. Recordemos que a tradição
destes últimos afirme serem os seus antepassados oriundos da citada região lacustrina,
tendo atingido o planalto pelo vale do Lugenda.
ÁFRICA DO SUL
As datações obtidas por Mason e Van der Merwe nas explorações de ferro e cobre
de Phaloborwa, no Transvaal Oriental, vão de 770±80 a 1000±60 d. C. Bambandyanalo,
importante centro do curso superior do Limpopo, acusou datas posteriores, 1050±65
d. C. Na mesma região transvaliana, P. Baumont e M. Schoonraad descobriram material
da Idade do Ferro de 1210±80 d. C. Con- tinha utensílios de ferro e cobre, conchas
cauris e ossos de bovinos.
Tudo leva a crer que muito antes dos meados do primeiro milénio
d. C. o actual território do Transvaal fosse já largamente ocupado por povos pastores
e agricultores da Idade do Ferro, conhecedores de olaria. Parece igualmente irrefutável
que a domesticação
de animais e
a fabricação de olarias
se espalharam entre os grupos bosquimanos
e hotentotes mais em contacto com os imigrantes bantos.
B. Fagan aventa que, junto daquele centro, na colina de Mapungubwe
de ocupação talvez mais tardia, a primitiva população do tipo físico khoisan adoptou
a cultura material e quiçá mesmo a língua dos primeiros invasores bantos, portadores
do ferro, de olaria, da agricultura e da criação de gado. Contudo, pelo seu reduzido
número, rapidamente se misceginaram com os autóctones.
Importante para apreciar as prováveis intrusões entre os Tsongas do Sul de
Moçambique é o facto do arqueólogo J. F. Schofield aventar a origem sotho da
olaria que designa por M 2., olaria que tem ligações com as regiões setentrionais
e
meridionais de cordilheira do Zoutspansberg,
nesta última decerto associada às actividades
mineiras e
às construções líticas daquele grupo étnico que lutava com falta de material
vegetal. De qualquer modo, os ocupantes que nos séc. XIV e XV passaram a explorar
as requizas do território atravessado pelo curso médio do Limpopo, sobrepuseram-se
a povos bantos mais primitivos, cuja cultura material apresenta afinidades com a dos povos meridionais. É fora de dúvidas
que os Sothos já ocupavam o Transvaal central no séc. XI.
No que concerne o Natal, O. Davies obteve finalmente uma datação da Idade
Antiga do Ferro: 1050±40 d. C. Afigura-se importante citar que J. F. Schofield atribui
aos Lalas o tipo de olaria que designa por NC-3 (radicalmente diferente da fabricada
pelo grupo Nguni). Tanto J. H. Soga, que aventa a origem Karanga desses Lalas, como
A. T. Bryant, que os considera como uma amál- gama Tsonga-Nguni, reconhecem a sua
directa proveniência setentrional.
Uma maçaroca de milho encontrada em Border Cave, no Natal, deu uma data surpreendente
recuada (1450±45).
Bustos de terracota descobertos
por R. Inskeep, em Lydenburg,
Transvaal, produziram uma data dos séc. V e VII.
SUAZILÂNDIA
Em Castle Peak, na Suazilândia Ocidental, Beaumont encontrou
uma estação com olaria de tipo distinto e alguns utensílios de ferro associados
com outros da Idade Recente da Pedra. Restos carbonizados permitiram remontar
estes achados
ao surpreendente período do IV ou V século d. C. Duas determinações mais recentes,
feitas pelo mesmo autor, confirmaram aquela data recuada.
Os linguistas são unânimes em admitir que os idiomas bantos
têm origem assás recente e que os povos que os empregaram se devem ter expandido
com celeridade, já que a sua larga dispersão geográfica coincide com um grau relativamente
reduzido de diferenciação. Supõe-se, por isso, que se registou, entre eles, uma
«explosão demográfica» que os teria levado a suplantar os aborígenes pré-bantos e que só pode sustentar-se
graças à introdução e cultivo de novas e variadas plantas alimentares.
Um desses linguistas, o Prof.
M. Guthrie, depois de comparar cerca de
200 línguas bantos, descobriu 2300
palavras com raízes comuns. Quinhentas dentre elas encontram-se distribuídas por
toda a África Banto, mas em percentagens diferentes
em cada língua. As mais
altas percentagens encontram-se numa região que forma uma elipse estreita
e longa desde a foz do Congo até à foz do Rovuma, com o centro no país Luba, ao
norte de Catanga. Esta elipse situa-se numa região não coberta de floresta tropical,
mas com predominância de arvoredo aberto, dispondo de 500 a 1000 mm de chuva,
percorrida por bastantes cursos de água, região ideal para a cultura da mapira e
mexoeira, com abundante caça e pescado e com um centro invulgarmente rico em minerais,
especialmente ferro e cobre.
Qual a causa desta explosão demográfica que deu origem à expansão banto? Tudo indica
que seria a chegada à África
Oriental dos Indonésios,
durante o início da Era Cristã, após colonizarem
Madagascar. Além dos
xilofones, da «mbira», das canoas de balanceiro e de outras invenções, foram com
todas as probalidades os introdutores de certas culturas alimentares de origem asiática como a bananeira, os inhames, o arroz
de sequeiro e, pro- vavelmente, o
coqueiro e a cana de açúcar. Podemos ter como certo que, por essa época, o litoral
era já ocupado por povos cultivadores em número suficiente para absorver os estrangeiros
e capazes de tirar
proveito daquelas novas
plantas
alimentares. Esses aborígenas eram já os antepassados dos Bantos, que, graças a
esses novos recursos, se expandiram rapidamente no sentido norte-sul. A região dos Grandes Lagos
ofereceu-lhes condições excepcionais para a cultura da bananeira.
Assim, a expansão banto seria um
processo cumulativo e repetitivo em que excessos
populacionais gerados pelas condições
excepcionalmente favoráveis da região luba tivessem sido constantemente centrifugados, numa sequência infindável de migrações, conquistas
e absorções.
Em 1971, outro linguista, o Prof. A. T. Cope, depois de comparar as hipóteses de C. M. Doke
e
de M. Guthrie, propos uma
«classificação consolidada das línguas bantos»
em que procurou traçar um paralelo entre os centros históricos de origem e os centros
geográficos da classificação. Recorreu, para o efeito, às diferentes percentagens
de «raízes gerais» encontradas em vinte e oito línguas de prova, das quais apenas
as seguintes interessam directamente a Moçambique:
Bemba
..................................................... 54% Swahili .....................................................
44% Zezuru (Xona) ......................................... 37% Nyanja .....................................................
35% Ajaua (Yao) ............................................. 35% Venda ......................................................
30% Zulo ......................................................... 29%
Transformou estas percentagens nos índices
de
expansão que se seguem:
• + 50%=
0
• + 45%=
1
• + 40%=
2
• + 35%=
3
• + 30%=
4
• + 25%=
5
• + 20%=6
• + 15% =
7
CAPITULO II COMERCIANTES E NAVEGADORES ASIÁTICOS NO OCEANO
ÍNDICO
Complexos são os
problemas que levanta o estudo
do secular intercâmbio comercial mantido pela África
Oriental com a Indonésia, a índia, a China, a Arábia e a Pérsia. Apenas modernamente
foi possível esboçar, em bases científicas,
a historiografia desse fenómeno. Para tal contribuíram a etno- botânica, a etno-musicologia,
as escavações arqueológicas,
a revisão sistemática dos escritos persas, árabes e chineses, e ,
enfim, outros métodos de rigor incontestável.
O início da extracção aurífera no
planalto interior e a fundação de Sofala, possivelmente no séc. VI, tanto podem
relacionar-se com a grande expansão persa dirigida pelos Sassanidas (226 a 640 d. C.), durante a qual
a arte da ourivesaria atingiu admirável
desenvolvimento, como
com o progressivo esgotamento das minas de ouro de Mysore,
no sol da índia, iniciado no séc. IV. Mas foi em 570 d. C., com a ocupação do Iemen,
desde há séculos familiarizado com a costa oriental africana, que os Sassanidas
passaram a beneficiar, em regime quase exclusivo, dos bens dali provenientes (escravos,
ouro, marfim, madeiras aromáticas, etc.).
Foi com a ascensão dos Califas Abassidas em 750 d. C. e a transferência
da soa capital para Bagdad que se acelerou o comércio marítimo propriamente islâmico.
A revelação do segredo
das monções e a difusão das invenções
técnicas dos chineses, sobretodo da bússola, contribuíram para a intensificação
do tráfego marítimo no Oceano
indico. Difundem-se pela costa
oriental as plantas de origem asiática: bananeira, inhames,
coqueiro, mangueira, cafezeiro, citrinos, cana de açúcar e diversas variedades de
arroz. A esta expansão se deve o regresso aos circuitos comerciais do ouro acumulado
pela índia durante o domínio romano, ouro que os Sassanidas converteram em moeda.
Posteriormente, os Árabes de Oman, já desligados do Califado no Séc.
VIII,
empreenderam uma expansão política e mercantil, apoiada por feitorias nos litorais
africano e industânico. Al-Massudi descreveu a rota de alto mar seguida pelos pilotos
persas para atingirem Zanzibar e Sofala, sem dúvida utilizando já a orientação pelas
estrelas. Foi o primeiro a fazer referência às navegações dos Indonésios para Madagáscar
e para a costa oriental africana, navegações que parece terem tido o seu início
nos primeiros séculos da Era Cristã. Visitou Sofala em 926 d. C.
A emigração, para Quilua, do príncipe Ali bin Sultan el
Hassan, filho do Sultão de Xiraz e de uma
escrava negra, parece
ter tido lugar
em 975. Começam a abundar as referências escritas
aos povos sitos ao Sul de Cabo Delgado. Al-Baruni alude a Sofala, no princípio do
Séc. XI. Al-Idrisi presta interessantes informações cerca de 1154 d. C.
Mogadiscio, grande entreposto
omanita na costa da Somália,
monopolizou durante séculos a vasta produção aurífera escoada por Sofala. No Séc.
XIII veio este cobiçado monopólio a cair em poder dos Sultões de Quilua. A ele se
deve, sem dúvida, a época de grande prosperidade comprovada pela arqueologia. Recentemente
foi encontrada no Grande Zimbabwe uma moeda cunhada em Quilua, provavelmente no
início do Séc. XIV. A independência de Sofala, proclamada talvez no séc. XV,
contribuiu decisivamente para o declino daquela cidade árabo-persa.
Os Chineses parece haverem reatado a frequência regular do
Oceano indico no período do terceiro imperador Ming (1403-1424). Teve lugar na década
de 1430 o último dos grandes comboios anuais de juncos que passavam seis meses na
costa oriental africana adquirindo escravos, ouro, marfim, holutúrias, peles de
leopardo, carapaças de tartaruga, chifres de rinoceronte, etc. De importante significado
e apreciadas pelo próprio imperador seriam as girafas, consideradas como animais
celestiais.
Por seu lado, os
Sultões abastados e belicosos da dinastia Nabhani, então reinando em Oman, lançaram-se em
acelerada expansão territorial, sendo o limite meridional dos seus domínios constituído
pelas minas de Quirimba. A sua supremacia
estendeu-se de 1350
a 1500. Kitab-al-Raude
(1461 d. C.)
refere-se às
exportações de Sofala e ao facto dos Omanitas, fixados em Madagáscar, terem transportado
para ali largo número de escravos de origem macua.
O período que se seguiu deve a
sua importância política e económica ao facto dos
Portugueses haverem dominado os
Sultanatos do litoral e monopolizado o
tráfego comercial do Oceano indico. Este período coincidiu com uma longa série de
movimentos migratórios (Zimba Nyika, Seguejo, Gala) que modificaram por completo
o facies do «interland». Foram responsáveis não só pela destruição de Quílua e outros
estabelecimentos, mas também pelo corte de relações comerciais com o interior, corte
que arruinou os entrepostos costeiros e os colocou sob maior influência islamita.
O crescente poder marítimo
dos Árabes de Oman deve considerar-se responsável pelo rumo tomado pelos acontecimentos e pelo lançamento das fundações da cultura litoral tal como existe
presentemente. É que, após a conquista persa de Ormuz, em 1632, seguida da expulsão
das pequenas guarnições portuguesas da costa de Mascate, os Omanitas conseguiram
transformar-se numa potência naval de primeira ordem só ultrapassada, no Oceano
indico, pela Inglaterra e pela Holanda. Os estabelecimentos costeiros colonizados pelos «antigos árabes» foram ocupados ou submetidos por esta vaga de «novos árabes». O predomínio
dos Omanitas prolongou-se por mais de dois séculos, acentuando-se depois de 1832
quando o Sultão Seyid Said mudou a sua capital de Mascate para Zanzibar.
Por todo o litoral e interior do sudeste africano há incontestáveis provas
desse intenso comércio milenário com os asiáticos. Em Ingombe Ilede, perto da confluência do Zambeze com o Kafuè, os
arqueólogos depararam com abundantes
testemunhos desse tráfego,
que deu origem
a
uma época de invulgar prosperidade nos Séc. XIV a XVI e
que culminou com a importação de tecidos de Cambraia e o fabrico e obtenção de jóias
e ornamentos de ouro. No vale do Limpopo, outro grande centro de comércio com o
litoral, Mapungubwe, revelou opulência não inferior à de Ingombe Ilede.
Inúmeros são os vestígios deixados também entre
as populações de
Moçambique por
esta milenária actividade asiática. Os Persas e sobretudo os Árabes deixaram, naturalmente,
mais profundas marcas. Além da islamização dos habitantes do litoral norte e de
parte dos Ajauas (Yao) - a eles se deve a importância considerável assumida pelas
actividades mercantis e marítimas. As plantas alimentares introduzidas pelos asiáticos,
além de evidentes benefícios nutritivos, vieram incrementar as trocas comerciais.
Mas foi em relação às embarcações que a sua tecnologia forneceu maior contributo,
como revelam os estudos de A. Vieira e A. R. Moura.
A dispersão pelo interior
das inovações tecnológicas trazidas pelos asiáticos devem as doenças tropicais ter oposto
grandes obstáculos. É de atribuir,
por exemplo, à presença das tripanosomíases o facto de não haverem conseguido introduzir
na costa oriental africana alguns dos milhões de cavalos que, durante séculos, exportaram
através de Siraf para os territórios banhados pelo Oceano indico.
Pode aventar-se, como hipótese de trabalho, que, para o sucesso da colonização dos Omanitas na África Oriental,
contribuiu o facto da malária ser doença endémica no seu país de origem, como tal
lhes conferindo acentuada imunidade natural.
CAPÍTULO III
OS POVOS DO SUL DO SAVE
Os povos hoje chamados Tsonga, Chopi e (Bi)-Tonga, são produto
de diferentes experiências históricas, essenciais para a compreensão da presente
distribuição étnica no sul de Moçambique. Os Portugueses cedo distinguiram três
grupos totalmente diferenciados no Sul do Save. Também os Holandeses que ocuparam
a Baía do Espírito Santo, de 1721
a 1730, teriam relatado que os Rongas se consideravam distintos
tanto dos «(Bi)-Tongas de Inhambane» como os «Okarangue» termo claramente derivado
de Karanga, donde, como veremos, os Chopes são em parte oriundos. Especialmente
valiosa é a obra de Augusto Cabral sobre os povos do distrito de Inhambane, que
também singulariza os três grupos referidos. Realça, igualmente, as referências
históricas contidas na introdução do Pe. L. Feliciano dos Santos à sua gramática
da língua chope.
A propósito do Sul do Save
é
conveniente relembrar também as
conclusões atingidas pelos arqueólogos que se têm debruçado sobre o
fenómeno do povoamento humano na África Austral. Esses proto-bantos, da Idade do Ferro A, atravessaram o Limpopo, no
planalto central, no início da Era Cristã. É pois lícito fixar a chegada dessa população
primitiva, que temos designado por Khokha, em data
ligeiramente posterior. Recordemos que os povos
da Idade do Ferro e da Cultura Gokomene, ocuparam o local do Grande Zimbabwe nos
séculos iniciais da nossa era e que já então usavam miçangas importadas. Por outro
lado as investigações serológicas do Dr. Elsdon-Dew também permitem defender a antiguidade
dos nossos proto-bantos.
É de supor que deles sejam directamente derivados todos os clãs da região chope que conservam,
como «donos do país», funções rituais ligadas às preces pela chuva: Mrori, Marane,
Bhila, Buke, Ndengo, Lwe e talvez Nyapure. Todos eles admitindo a superioridade
dos invasores Loyi em matéria de metalurgia, embora seja duvidoso que se tratasse
de caçadores-colectores bosquimanos, desconhecedores do ferro, já que nos seus rituais
e nas suas tra- dições há específicas referências à mexoeira e a galináceos.
Os povos que participaram nessa migração primordialformando ao que parece a
primeira vaga de bantos
- ficaram em relativo
isolamento durante alguns séculos. É aqui que se insere um
outro factor, sem dúvida importante no desenvolvimento da Cultura Khokha: a influência
perso-árabe e anteriormente a esta as influências indiana e sobretudo indonésia,
que se fizeram sentir após a colonização de Madagáscar.
Que estes Khokhas continuaram a manter relações comerciais
com os povos mineiros do interior, se infere do relato do cronista da histórica
circum- navegação de Vasco da Gama. Não deixou de referir os braceletes, as anilhas
e os ornamentos de cobre nos penteados, do mesmo modo que o estanho e o ferro usados,
respectivamente, nos punhos e nas lâminas dos punhais. A abundância do primeiro
metal levou os navegantes a dar ao Inharrime o nome de «Rio do Cobre». Provinha
decerto das famosas minas de Messina e Phalaborwa, no Transvaal Norte, onde já no
séc. VII se extraía e se fundia cobre quase puro
Sabemos que entre o Limpopo e o Save, no interior, se estabeleceram povos
de origem Nyai, isto e, Karanga.
E. Mucambe e A. Mukhombo afirmam que os Hlengwes surgiram posteriormente vindos
da região do Zimbabwe, possivelmente nos fins do séc. XV, sob o comando de Xigomba.
Este posteriormente dividiu o reino e entregou à chefia do ramo designado por Mhandla,
a seu genro, Xivilele, que ocupou a região de Homoíne.
A influência asiática acelerou indubitavelmente, o carácter distinto da Cultura
Khokha, mais tarde designada por (Bi)-Tonga, mas nunca fez emergir unidades políticas
vastas e estratificadas, com nível de organização superior ao das simples comunidades
de tipo clânico. Apenas evoluíram de modo diferente os Khokhas meridionais que vieram
a
ser inflenciados pelos primeiros
imi- grantes.
Aí, nesse litoral de Inhambane, parece fornecer prova da primeira vaga de
origem Xona-Karanga a tradição acerca do termo Va-Loyi. Este seria apenas o epíteto
laudatório do clã Gwambe, étnicamente descendente dos Va-Nyayi, de
extrato Karanga.
O chefe migrante Hwambi, seria bisneto de um dos monarcas (Xangamires) do Império
Rozwi, rival do Mwene Mutapa. A genealogia indicara com seu antecessor depois desse
monarca, Golokhulu. O referido Hwambi teria cometido imperdoável incesto com uma
sua tia, hahani, e, por tal motivo, teria sido expulso por seu irmão mais velho
Xirimbi, com este insulto: «Vai-te embora mu-loyi!» (feiticeiro).
No tempo de André Fernandes o chefe reinante era filho desse
Gwambe vindo do distante império planáltico, famoso pela sua produção aurífera.
Pode ser que o incidente tenha ocorrido durante o próprio reinado do Xangamire I.
Nos fins do séc. XVI Fr. João dos Santos informa-nos que o Reino de Sedanda
se prolongava «pelas terras a que chamam Botonga, que vão correndo para o rio de
Inhambane.
M. L. C. Matos considera oriundos dos primeiros invasores Va-Loyi
os regulados que dispõe pela seguinte ordem hierárquica: Bande, Zandamela, Nyantumbu,
Mangue e Mavila. Mas o primeiro destes régulos, ainda que possuindo prorrogativas
de senioridade, pagava tributos a Kambane, do clã Nwanati.
Junod é de opinião que os clãs hoje considerados chopes e tsongas
mas que se dizem de origem Nyai - isto é, provenientes de um ramo dos Karangas -
incluiriam os Loyis, os Nwanatis, os Khambanes e os Makwakwas.
Por seu lado os Tsongas mantiveram contactos directos com povos imigrantes
provenientes do interior, sobretudo Sothos e Xonas que, pela sua organização mais avançada,
vieram a dar origem a comunidades políticas maiores do que as formadas pelos clãs tradicionais. A propósito desta mais remota formação de autênticos reinos
entre os nativos que ocupavam o litoral entre os rios Tugela e Limpopo, tenham-se
em mente os valiosos testemunhos dos náufragos portugueses do «San Bento» (1554), «San Thomé» (1589) e
«San
Alberto» (1593), tal como foram relatados por Perestrelo, Diogo do Couto e Lavanha.
Ao passo que nessa extensa área os chefes eram «reis» dispondo cada qual de quinhentos
e mais guerreiros, os nativos da «caffraria» (actuais Zulos, Pondos e Khosas) estruturavam-se
em pequenos grupos de povoações,
sob a
chefia de «ancosses» (amakosi). Idêntica observação fizeram os Holandeses no séc.
XVIII. E tanto assim era que entre o Incomáti e o Inharrime, Diogo do Couto
menciona apenas três
chefes cujo
território foi atravessado pelos náufragos
do séc. XVI:
Inhampule ou Inhapura - na margem direita do Limpopo, identificado por H.
A. Junod como sendo o clã Nyapure, nome por que aquela região continua a ser conhecida;
Manussa - na margem esquerda do mesmo rio, designação regional que ainda sobrevive;
Inhapoze - até ao rio Inharrime,, possivelmente o antigo clã Nyaposi de origem
asiática.
Nos séc. XVII e XVIII acentuou-se a expansão, em direcção ao
litoral, dos povos de língua sotho e tsonga. É então que se movem ao norte os Hlengwes.
No centro, seguindo o vale Limpopo, mais uma vez avançam os Va-Loyis estabelecidos
entre os rios dos Elefantes e Limpopo.
Posteriormente surgiu
uma nova invasão sotho que, bipartindo
os Va- Loyis deu origem aos povos que mais tarde se veriam a denominar Nwalungu
e Makwakwa. Foram esses invasores sothos que originaram os chefes Xiburi, Netimano,
Kossa e Rixoto, entre o Incomáti e o Limpopo. Uma confirmação deste movimento é dada por Aron
S.
Mukhombo. Menciona ximbhutsu (o moderno Chibuto) como o lugar onde se instalaram
os imigrantes ascendentes dos Makwakwas vindo de Nkomati. Morreram ali os seus chefes
Makumbani e Xilatani, talvez no séc. XVIII.
Deve acentuar-se, contudo, que não é unanimemente aceite essa filiação presumivelmente
tsonga e sotho dos invasores referidos por Alan Smith.
Half Helgesson é de parecer que, a despeito das semelhanças
em matéria de língua
e de alguns
costumes, a cultura
tswa é distinta
e
revela maiores analogias com a dos Karangas, Vendas e Va-Ndaus, do Grupo
Xona. Parece ter sido bastante intensa a influência nyayi, isto é, Karanga, entre
os Hlengwes. Ainda em 1882. A .
M. Cardoso observou que os «achengues e os munhais» respectivamente do Sul e Norte
do Save falavam uma língua idêntica
e que
não era compreendida por «bitongas» «landins» (Changanas e Tswas) e
«mindongues
» (Chopes).
Segundo E. Mucambe e A. Mukhombo, na segunda metade do século XVII também penetraram
na região os
Dzivis, sob o comando de Ingwane,
vindos do Transvaal Este ou da Suazilândia.
Devidamente autorizados e obrigados
a tributo fixarem-se
entre os Mhandlas, ramo meridional
dos Hlengwes. Posteriormente vieram a
revoltar-se, conseguindo escorraçar os
«donos da terra»
para a região de Vilanculos. Componentes daqueles povos conseguiram impor-se como
aristocracia aos misceginados Karangas-Khokhas, levando-os a adoptar a circuncisão.
De qualquer modo as
trocas comerciais com o Império Rozwi e
a utilização do ouro para efeitos de adorno
e não simplesmente para exportação (utilização atestada
pelos arqueólogos no Grande
Zimbabwe e em
Mapungubwe) repercutiram-se no litoral. José Cabreira, narrador do naufrágio da
«Nossa Senhora de Belém», em 1635, afirma que as nativas (a par de outros confeccionados
com cobre) já usavam braceletes daquele precioso metal. É
esta, provavelmente, a razão por que o Limpopo era denominado Rio do Ouro.
Segundo M. L. C. Matos, os
«Cuambes» descritos pelos missionários em
1560
proviriam directamente do país Karanga. Já os antepassados dos actuais
Gwambes teriam partido
da terra dos
Vendas. Daí se dizerem de origem
«venda,
vecha ou vasuto». A sua partida para o litoral teria ocorrido em época mais recente.
Deles derivariam os régulos Guambe Grande e Guambe Pequeno. O régulo Zavala também
se diz da mesma origem e descendente de «Mujaju wa Thovela».
Gumundu Matone Zavala, criança quando ocorreu a morte de Manukusse
em 1859, forneceu a H. Ph. Junod
a sua genealogia,
remontando a seis gerações
até Gwambe. Segundo afirmou, esse antepassado seria chefe do clã Thovela dos Lovedos
de
Mujaji. Teria vindo em
companhia de
Mhindzu e Xilundzu. Seu filho
Tsuvawura e seu neto
Zavala teriam submetido os autóctones
Mrori. Sendo assim, a emigração dos segundos Gwambes teria ocorrido em fins do séc.
XVII. É que se sabe hoje que a linguagem real dos
Lovedos
do Transval Norte descendia de uma das três grandes dinastias rozwis, tendo atravessado
o Limpopo provavelmente entre 1550 e 1625. Tornou-se famosa por ser detentora da
mais potente magia pluvial de toda a Africa Austral. No início do séc. XIX ascendeu
ao trono a rainha Mujaji que, graças aos seus poderes sobrenaturais, foi sempre
respeitada e consultada pelos diversos monarcas vangunes.
Dois factores que se afiguram determinantes para compreender estes movimentos migratórios em direcção ao
litoral seriam as tripanossomíases e a aridez do interior, com cerca de 400 mm de chuva por ano aumentando
a pluviosidade com a aproximação do oceano.
A escassês de gado bovino entre
a generalidade dos Chopes
• a reduzida importância social e ritual que lhe era concebida,
também levam a suspeitar que os antepassados de origem langa que entraram na composição
étnica
daquele povo tenham sido profundamente afectados pela temível cintura de mosca tsé-tsé que, ao longo
do curso médio do Limpopo, se estendia entre
os seus afluentes
Marica e dos Elefantes e que, a crer na hipótese de B. H. Dicke, pode também estar na
origem da sua migração em direcção ao litoral.
Na expansão tsonga - povo com toda a evidência composto por
clãs de origem sotho, langa e nguni - desempenhou papel fundamental a existência
de unidades políticas relativamente poderosas cujos dirigentes, ultrapassando as
limitações clânicas, manifestaram acentuada tendência para a conquista de novos domínios, de modo a proporcionar poder
e prestígio aos seus parentes, descendentes e favoritos.
Pode também ter
acontecido que os movimentos sothos e
tsongas dos fins do
séc. XVII fossem
reflexo do expansionismo
militarista e predatório do Xangamire Dombo, que, na década de 1680, alargou o Império
Rozwi de modo a abranger grande parte da região compreendida entre o Limpopo, o
Save,
• Zambeze e o Oceano
indico. Foram as suas conquistas que deram
origem à migração dos Vendas para a margem direita do Limpopo.
Nesta migração de povos
tsongas em direcção
ao litoral se devem
integrar as
pressões sofridas pelos Khokhas-(Bi)Tongas entre 1730 e 1760, descritas em documentos
portugueses.
Dispondo de mais poderosas unidades políticas, conseguiram, em parte, os antepassados
dos Chopes resistir ao expansionismo
• à superioridade quantitativa, militar e política
dos Tsongas. Já os Khokhas-(Bi)Tongas estavam condenados a perder a sua identidade étnica
e linguística e a serem inexoravelmente absorvidos,
• medida que os habitantes do hinterland prosseguiam lenta mas seguramente
em direcção ao litoral. O factor exógeno que os salvou de desaparecerem como povo
distinto foi a ocupação portuguesa de Inhambane e das regiões circunvizinhas. Muito anteriormente
ao célebre João Loforte,
o
«Nhafoco», que
de 1869 a
1877 conseguiu que os (Bi)-Tongas resistissem denodadamente aos regimentos comandados
pelos Vangunes de Muzila, já os Portugueses de
Inhambane os defendiam contra o expansionismo tsonga e
sotho e contra as investidas das tribos posteriormente designadas por Chopes.
São estas circunstâncias históricas que justificam
a classificação dos povos do Sul do Save em três grupos étnicos
distintos: O Tsonga, o Chope e o Khokha-(Bi)Tonga.
GRUPO TSONGA
Devido ao carácter pejorativo da primeira e à aceitação internacional da segunda,
abandonámos a designação
de Thonga para
a
substituirmos por Tsonga.
Eram povos patrilineares, virilocais, com compensação nupcial e vivendo em
clãs ou tribos sob a hegemonia de chefes hereditários dispondo de fortes poderes
políticos, jurídicos, económicos, militares e religiosos.
Dividi-los-emos nos seguintes
sub-grupos:
Ronga
Compreende os habitantes da região entre o mar e os Montes
Libombo, e entre os rios Incomáti e Pongola.
Mantiveram contactos com europeus desde o início da frequência
da Baía do Espírito Santo. Trocavam marfim, ambar, etc. por produtos manufacturados,
sobretudo tecidos, miçangas, ferro e anilhas de latão. A adopção de armas de fogo
permitiu-lhes lançar-se em grande escala na caça aos elefantes que abundavam na
região. Além disso, organizaram grandes expedições mercantis ao interior. Esta posição
privilegiada facilitou o enriquecimento de chefes tribais como o Tembe, o Nyaka
e mais tarde o Maputo.
A luta pelo monopólio das rotas comerciais com a baía parece ter contribuído
para o processo de expansão armada em que se lançaram quase simultaneamente as tribos
vangunes de Ngwana, Mthethwa e Ndwandwe.
De 1820 a
1827 ocupou o território ronga o grupo comandado por Sochangana que, depois da derrota
de Zwide, seu parente e aliado, abandonou a terra natal.
Depois da partida de Sochangana para o vale do Limpopo, em 1827, os chefes
rongas submeteram-se aos Portugueses procurando protecção contra as incursões dos
regimentos vangunes. Mas em 1833 foi de novo o território ronga invadido e ocupado
por Vangunes, desta vez enviados por Dingana, os quais destruíram a fortaleza e
executaram o governador.
Apesar da curta ocupação, a cultura angune influenciou os Rongas como se pode verificar
pela adopção da coroa
de cera e do sistema
regimental baseado em grupos de idade. Foram
os chefes rongas de Mazwaia e Zilhalha que em 1894 se revoltaram contra os Portugueses
e que pediram asilo a Gungunyane depois de derrotados
em Marracuene e Magul.
Foi a recusa
daquele em entregar os revoltosos que deu origem à campanha que levou à derrocada
do Império de Gaza e à deportação do seu último monarca.
Changana
Este sub-grupo ocupa uma larga faixa de território que tem no seu eixo o rio
Limpopo.
Depois de Sochangana decidir instalar a capital no vale do Limpopo, em Chaimite,
altura em que mudou o seu nome para Manukusse,, diversos grupos tsongas emigraram
para o Tranval Norte, entre 1835 e 1840. Pertenciam aos clãs Nkuna, Hlangano, Loyi
e Mavundja. Depois da prisão do último monarca em
1895, outros grupos
de Vangunes de Gaza
e de Tsongas
angunizados buscaram refúgio no Transval.
Eram chefiados por diversos membros da família
real.
Embora a sua cultura tradicional não tenha sido objecto de estudos profundos
e sistemáticos, pode afirmar-se a grande
influência exercida pelos invasores vangunes, apesar da capital do Império de Gaza
ter permanecido no vale do Limpopo apenas de 1840 a 1858. Só mais tarde, de
1889 a 1895,
o último monarca, Gungunyane, voltou a fixar-se no Sul.
Tswa-Hlengwe
Dada a possível origem xona dos povos que, originariamente, se estenderam
do vale do Limpopo ao vale do Save, pode merecer discordância a sua classificação
como um sub-grupo dos Tsongas.
Segundo três autores tswas E.
S. Mucambe, N. J. Mbanze e A. Mukhombo, os Hlengwe vieram do país Xona, possivelmente
nos fins do séc. XV. Dividiram-se, posteriormente, tendo um
ramo conhecido por Mhandla
ocupado a parte sul. Na segunda metade do séc. XVII, os Dzivis, de origem tsonga
ou swazi instalaram-se, pacificamente, no território dos Mhandla mas vieram mais tarde
a expulsar estes últimos para a região de Vilanculos. As invasões Nwanati e Makwakwa, povos hoje classificados
como Tswas, mas de origem tsonga,verificaram-se mais recentemente.
Todos os relatos permitem afirmar o extremo primitivismo em que caíram os
Hlengwes, que viviam
sobretudo da caça
e da colecta
e
não possuíam animais domésticos. As palhotas
eram rudimentares. Utilizavam a água da
chuva
retida nos troncos dos embondeiros. Do mesmo
modo que os Tswas praticavam a circuncisão, mesmo no seu limite norte com os povos
de origem xona. Cobriam-se de profusas escarificações.
No sul, entre
os Tswas, o
gado bovino desempenhava
insignificante
papel.
Os Makwakwas foram, dentre
todos, os que mais assimilaram a cultura
angune, como a organização regimental,
as danças e trajos guerreiros, a coroa de cera
e a
perfuração dos lóbulos
auriculares. Pelo mesmo
motivo abandonaram a circuncisão
e as escarificações.
GRUPO CHOPE
Convincentes são as provas da origem xona-langa de parte das
características culturais dos Chopes.
Na sua carta datada de 25 de Julho de 1560, o missionário André
Fernandes é assás preciso quanto a tais influências entre a população do litoral
de Inhambane: tecelagem de algodão; penteados ornamentados com ouro; arco e flecha
como arma principal; xilofone recurso do tipo karanga; juramentos junto do
grande tambor sagrado, prerrogativa do chefe; certos termos como muzimo (antepassado-deus),
ngombe (bovino), phongo (caprino) ; a descoberta de espíritos possessivos por meio
de fustigação com a da cauda felpuda de animais e da sua subsequente aspiração pelo
adivinho; etc.
Caetano Montês e o Pe. Feliciano dos Santos
reconheceram aquelas origens, tomando
como base, respectivamente, os dados históricos e linguísticos que estudaram. Por
seu lado, L. F. Maingard demonstrou que, entre todos os grupos étnicos da África
Austral, apenas Langas, Vendas e Chopes usaram o arco como arma principal.
Os musicólogos J. Kirby e H. Tracey esclarecem que os xilofones
dos Chopes e Vendas são afinados na escala heptatónica, ao paço que as canções tsongas
e vangunes usam a escala pentatónica.
O segundo assimilou sem
dificuldade
os termos musicais chopes devido à sua semelhança com os dos Langas. Afirma, também,
que a afinação média das orquestras chopes é quase idêntica à do lamelofone langa
de teclas de aço recurvadas.
A forma de cumprimentar, com bater de palmas, também era semenhante à dos
Xonas-Langas.
É de admitir que tenha a mesma origem o costume da extinção geral dos fogos,
no início das sementeiras, durante o dia ritual do mutilo.
Os Chopes foram, durante muito tempo, conhecidos por mindongues.
Segundo Junod (filho) o verbo ku-txopa, «atirar setas», é de origem tsonga, não
se encontrando mencionado nos dicionários da língua zulu. É, pois, de aceitar que
o
termo Mu-chope (pl. Va-chope)
tenha sido aplicado
pelos guerreiros tsongas incorporados nos regimentos
vangunes.
No seu século passado, Binguane,
um dos netos do grande chefe Dzowo, do vale do Limpopo, conseguiu dominar e unificar
parte dos régulos chopes, mobilizando-os numa
resistência denodada contra Mawewe, Muzila
e Gungunyane.
Sem dúvida que essa resistência colectiva contribuiu para desenvolver entre os Chopes
um sentimento de identidade.
Fugindo aos invasores,
parte dos Chopes
partiram para o Norte, buscando refúgio
nas Terras da Coroa, sujeitas ao Governo de Inhambane. Armados e organizados, juntamente com os
(Bi)-Tongas, pelo célebre
«Nhofoco», o coronel
honorário das forças irregulares, João Loforte, conseguiram
manter os vangunes em respeito.
Na sua defesa recorreram os Chopes a várias tácticas: concentração
em aglomerados protegidos por paliçadas, Khokholo; construção de povoações lacustres
para tirar proveito dos tabos aquáticos observados pelos vangunes; ocupação de pequenas
ilhas e das dunas que se estendem entre as lagoas e o mar; etc.
Em 1871 Erskine passou pelas seguintes grandes povoações fortificadas: Hlambangati,
Singabagapa, Mangorbi, Matshunkulo. Esta última possuía cerca de 1500 habitantes.
Eis como Longle descreveu o
khokholo Tuijane que visitou em 1885:
«Basta vê-la para nos convencermos da dificuldade de se apoderarem dela pela
força, já pela sua situação no meio de matas espessas e difíceis, já pela sua estacaria.
Imagine-se uma linha de defesa formada por
troncos de árvores altas e grossas do lado exterior e reforçadas interiormente por
outros troncos de árvores, colocados horizontalmente, até uma altura que não será inferior a 2,50 m . As estacas exteriores
são muito altas e não deixam lugar senão para, de distância em distância, se passar
o cano duma espingarda.»
Longle, que atravessou a região Chope em 1885, afirma que as terras de Binguane
se estendiam do Inharrime ao Limpopo. Entre os Khokholo que visitou cita, além de
Tuijane, os de Kambane, Kavanyane, Bogotane, Xixala, Mativane, Xanguaniane e Xexelese.
Cinco anos decorridos os regimentos de Gungunyane, recém-vindo da sua longínqua capital no Mossurize,
já semeavam a morte e a destruição. Em Janeiro de 1890,
Maguiguane, comandante-em-chefe do exército
de
Gaza, atacou Binguane e seu filho Xipenanyane, no khokholo Xirrime, depois
de lhes cortar o acesso à água. Este último conseguiu refugiar-se em Inhambane.
Mas seu pai perdeu a vida, com milhares de súbditos.
Serrano, viajando em 1890,
narra:
«Entre as povoações destruídas por onde hoje passámos sobressaía
a do Binguane... ; apenas algumas
enormes vigas isoladas... denotavam a forma circular da aringa, que fechava uma área
não inferior a 80000 metros
quadrados: neste recinto todo plantado de bananeiras, palmeiras, alguns limoeiros
e quatro laranjeiras é que estava
a
residência do Binguane e dos seus grandes.
A enorme extensão de terreno que a população
agricultava... mostra a riqueza destes povos;
as plantações de mandioca, tabaco e ananás eram feitas com regularidade, ou circundando os caminhos,
ou em linhas perfeitamente
paralelas; os terrenos eram cercados para evitar a invasão dos gados».
«,..a povoação de Zabute... era muito importante por ser nela que o Binguane
tinha as suas mulheres; as palhotas, que ainda se conservam de pé, são grandes,
circulares e todas revestidas de barro interior e exteriormente; as portas têm relevos
curiosos e pinturas extravagantes»;
Mais adiante aludindo à região
atravessada pelo rio Chicomo:
«Este país foi muito povoado, tanto quanto se pode julgar pela extensão
em que existem sinais
de agricultura
e pelas grandes plantações de ananases, mandioca,
cana sacarina,
tabaco e
feijão...» Os chefes que habitavam
nas
margens do Inharrime
estavam nominalmente sob
a protecção da
Coroa Portuguesa à excepção
do Zavala que se não
considerava sujeito ao
próprio Gungunyane. Por exemplo, M. Serrano passou
pela povoação
Konkoane, nas margens do mesmo
rio, que continha 180 palhotas formadas
em quatro linhas paralelas e voltadas para
o centro, onde havia,
como em muitas outras, laranjeiras, limoeiros
e plantações de mandioca.
GRUPO KHOKHA -(BI)TONGA
Como afirmámos, a primitiva
população khokha foi submetida a multissecular influência asiática e portuguesa, adquirindo,
com o decorrer do tempo, uma cultura e uma língua de características específicas.
Contudo, não emergiram ali unidades políticas
vastas e
estratificadas, com nível de organização superior
ao das simples comunidades de tipo clânico.
Aos asiáticos se deve a introdução, nas cercanias da Baía de
Inhambane, de costumes como a circuncisão e, sobretudo, de novas plantas alimentares
nomeadamente o arroz, os citrinos, o coqueiro, a mangueira, a cana de açúcar, etc.
É provável que aos Indonésios seja devida a introdução das timbilas, dos tecidos
de casca de
árvore e,
ainda, do parasita da elefantíase,
Wucheria bancrofti (Cobbold) e de uma hemoglobina
anormal designada por D, oriunda de Borneu.
H. Ph. Junod
foi um dos autores que aludiu
a
essas contribuições asiáticas deixadas na cultura
tradicional dos Khokhas-(Bi)-Tongas: encantamento de serpentes por
meio de flautas, adivinhação pela consulta de intestinos de roedores
e galináceos, métodos de pesca semelhantes aos do Extremo-Oriente. Foi informado
por gente dos clãs
chopes Nyamposi e Nyasengo que os seus antepassados eram de origem
asiática, tendo vindo sob a chefia de Faro, herói cultural
a quem é atribuída a introdução das várias plantas alimentares. O autor do presente
trabalho também em 1954 recolheu em Homoíne a memória da presença desse herói cultural.
Digna de atenção é igualmente a espada de dervixe recolhida na região, espada que
se encontra presentemente no museu do Instituto de Antropologia da Universidade
de Coimbra.
A. Cabral julga provável que os (Bi)-Tongas sejam oriundos
do norte e que, quando dali saíam, tivessem
trazido o costume da circuncisão e
o seu gosto pela vida marítima, ambos provenientes do contacto com os Árabes. Para
reforço desta hipótese indica as semelhanças culturais verificadas entre os (Bi)-
Tongas e os povos de Sofala. Afirma, por exemplo, serem os únicos que, no distrito
de Inhambane, extraíam do coqueiro a bebida fermentada conhecida por sura. Como
os Chopes também fabricavam sope, com sumo de cana sacarina.
Outra informação interessante que reforça
a
hipótese da influência asiática entre os (Bi)-Tongas é-nos
dada por Erskine, ao afirmar que os antigos habitantes da Baía de Inhambane se
chamavam a si próprios «Basigas», termo semelhante a «Boticas», nome árabe dado
às Ilhas do Básaruto. É lícito aventar que parte dos (Bi)-Tongas sejam, como os
do arquipélago, de origem Langa e transportados para Inhambane pelos Árabes. Também
Melo Sequeira aventa a hipótese dos «hahocas» que habitam o Arquipélago do Bazaruto
serem descendentes de Vandaus levados de Sofala pelos Árabes. Aponta, para comprovar
a hipótese, as afinidades linguísticas do Xi-Hoka com o Xi-Sena.
O Gi-Tonga foi objecto do mais científico estudo linguístico
até hoje publicado em Moçambique, estudo da autoria do Prof. L. W. Lanham. Alude
à existência de palavras de origem persa e propõe que se considere língua distinta
do Xi-Chope
e do Xi-Tsonga.
A economia dos Khokhas-(Bi)-Tongas
tornou-se predominadamente marítima e mercantil, como a dos povos islamizados do
litoral norte. Também adquiriram considerável
importância económica as plantas alimentares importadas, nomeadamente a cana de açúcar,
o coqueiro, os citrinos
(as célebres tangerinas de Inhambane). A
criação de gado, mesmo miúdo, nunca assumiu relevância.
Na actividade piscícola utilizavam embarcações de tipo árabe e recorriam à
linha, a redes
de arrasto e a armadilhas colocadas, durante as marés
vazantes, no ângulo agudo formado por duas sebes de varas entrançadas.
Até as tatuagens dependiam da vida marítima: as mulheres, com
um jogo de seis agulhas e tinta de lula, faziam na face e nos braços pequenas pintas
negras.
Já aludimos à provável existência de um sistema algo complexo
de trocas comerciais, em que se achavam envolvidos os Khokhas de Inhambane, sistema
que compreendia as rotas entre Sofala e as regiões auríferas do planalto interior,
dominadas pela aristocracia rozwi. É que o domínio português directo, ocorrido em
1731, aliado à regular frequência da baía pela marinha da mesma nacionalidade, conseguiu manter afastada
a
navegação estrangeira. Mesmo antes dessa época sabe-se que os próprios
povos da Manhiça preferiam comerciar com Inhambane durante a ocupação holandesa
de L. Marques de
1721 a 1730.
Na segunda metade do
séc. XVIII Inhambane
conseguiu ultrapassar Sofala em importância
comercial, colocando-se a seguir a Sena na quantidade de marfim exportado. Os escravos
da região eram muito apreciados.
O diário da Missão de Mponda, na
margem do Lago Niassa, refere-se a mercadores de
Inhambane que ali
iam à
procura de marfim. Deriva provavelmente do santuário da Makewana
(ver Grupo Marave) em Msinja, (santuário
que até 1890 foi importante entreposto
de comércio de marfim) a lenda narrada a
Dora Earthy pelas mulheres valengues, em que surge uma rapariga, Makhowana, casada com
uma jibóia.
CAPITULO IV
O GRUPO XONA E O COMPLEXO MUTAPA-ROZWI
Os povos de língua
Xona - talvez
originários da bacia
do Congo -
chegaram nos meados do 1.° milénio supondo-se serem os responsáveis pela cultura
de Leopard's Kopje e pelos períodos II e III do Grande Zimbabwe, cujas datações
vão até 1440 d. C. Infere-se que constituíam uma aristocracia bem organizada. As
suas habitações eram maiores e de mais perfeita construção. Foram os iniciadores dos amuralhados. A sua olaria é típica: vasos finos e bojudos, de gargalos verticais, sem decoração
mas com polimento.
É de
admitir que os Xonas
beneficiassem de superiores
conceitos religiosos e místicos. Aqueles
dois locais eram importantes centros directamente relacionados com os ritos pluviais
e com a divindade Mwari, Mwali, Mimo ou Morimo. Esse Ser Supremo podia ser contactado,
quer directamente por meio de oferendas
e preces
feitas em
santuários bem conhecidos,
quer indirectamente por
intermédio dos antepassados-deuses. Os mediuns mhondoro ou pondoro, geralmente escolhidos entre
os povos estranhos, dispunham-se numa hierarquia baseada na antiguidade
e
na veneração dos espíritos
dos chefes defuntos que os utilizavam individualmente
para comunicar com os vivos. A opinião desses antepassados-deuses exercia, por esse
meio, poderosa influência até mesmo nas disputas de sucessão. Como uma das suas
funções era relembrar e recitar as tradições dos chefes falecidos, tornaram-se um
factor importante para estabelecer a continuidade da cultura xona. Parece ter
sido o monopólio desta religião que assegurou
aos novos senhores
a
integração política e social dos autóctones na sua organização estadual.
Dispunham também de sólidas bases económicas. Como dissemos,
os anteriores povos da idade do Ferro iniciaram igualmente a exploração de jazigos
de outros metais como o ouro e o cobre. Os dirigentes xonas conseguiram
desses
súbditos a
intensificação da exploração mineira e, graças
à
sua hegemonia e organização centralizada, passaram a dirigir
e a assegurar as trocas mercantis
com os Árabes de Sofala, ficando apenas com pequena parte do ouro e do cobre para
confecção de ornamentos pessoais.
P. S. Garlake baseado nas hipóteses sugeridas pelas investigações arqueológicas
e na classificação das ruínas em cinco estilos diferentes, aventa que o Grande Zimbabwe
constituía o centro nuclear duma unidade cultural cuja extensão coincide com a mancha
de granito que se espalha por grande parte da actual Rodésia
• por uma parcela da nossa Província de Vila Pery. Essa unidade
cultural teria florescido sobretudo no séc. XIV. Em Mapungubwe, no vale do Limpopo,
possuía uma capital provincial de grande importância.
Em 1325 surgiram novos grupos aristocráticos que deram origem
ao famoso reino de Mwene Mutapa, constituindo o período IV dos arqueólogos. São
conhecidos pelo nome de Rozwis. Segundo a tradição, vinham comandados por uma personagem
mítica denominada Ne-Mbire.
A relação étnica entre Xonas e Rozwis ainda pertence ao domínio
das hipóteses. Aventam alguns que estes últimos seriam simplesmente membros duma família aristocrática dos primeiros,
família que teria fundado uma nova dinastia e conseguido salvar
• reino da ruína e da desintegração.
Apenas no fim do século XIV surge, mencionado na tradição oral com verdade
histórica, um dirigente que se afirma ter sido o primeiro Mambo, chefe supremo,
dos Rozwis: Xikura Uadiambeu.
O segundo mambo rozwi usava o nome de Nyatsimba Mutota e, a partir de 1420,
lançou-se num processo de expansão territorial
• conquistas militares, que se prolongou por trinta anos. Pelos Tawaras e
Tongas foi-lhe dado o famoso cognome de Mwene Mutapa, o «Senhor da Pilhagem». Foi
ele que transferiu a sua capital de Guruhusua, no sudoeste da actual Rodésia, para
o grande Zimbabwe. Aqui, a cultura material do período IV dos arqueólogos deriva, sem dúvida,
do período III, embora
pertença aos
senhores
rozwis. Aparecem objectos, como gongos, cujas origens se situam a norte do
Zambeze dando ideia de que os
novos ocupantes tinham alguma
ligação com o Congo. As suas povoações são facilmente identificáveis pelos arqueólogos,
graças à cerâmica polícroma de barras e desenhos enquadrados. As escavações forneceram
indícios de grande prosperidade e intenso comércio externo: ornamentos de ouro,
lingotes de cobre para troca, utensílios e armas de ferro, loiças chinesas, conchas
marinhas e contas de vidro importadas, etc. Além do ouro e do marfim exportavam
possivelmente escravos.
Também no séc. XV parece haver-se registado a migração dum
povo proveniente do norte do Zambeze, povo que se fixou nas montanhas de Inyanga
e Choa, no Báruè, dando origem a uma cultura de características diferentes, notável
pela construção de recintos
amuralhados e de terraços para cultivo
irrigado e drenado. Pobre em objectos materiais, usava uma cerâmica grafitada constituída
por panelas esféricas ou esferóides com gargalos curtos e concavos, decorados com
nervuras salientes, cruzadas em grade.
Vários estudiosos se debruçaram sobre o problema das rotas comerciais pre-gamicas
entre os centros de mineração e o litoral. Harald von Sicard, apresentou provas
convincentes de utilização do rio Save e seu afluente Lundi. Mercadores de origem
asiática utilizariam um porto situado na foz do rio Save, conhecido por Nshava
ou Singo. Além dos escravos, do ouro
e do marfim, exportava-se por ali o cobre de
Messina. R. Mauny,
depois de apresentar
racional explicação para a antiguidade da data obtida pelo carbono 14 relativamente
ao pedaço de uma viga de madeira, descoberto nas muralhas, afirma que as aves esculpidas
encontradas no Grande
Zimbabwe, foram copiadas das insígnias dos chefes islâmicos
e termina por aventar a hipótese do trajecto fluvial Lundi-Save ser utilizado
apenas no regresso,
ao
sabor da corrente.
R. Summers, embora reconheça a primazia da rota pelo Zambeze, aventa a hipótese
do rio Save ter sido navegável, durante alguns séculos, até ao seu afluente Lundi.
Essa navegação encontrava-se facilitada pela mais elevada pluviosidade registada
no planalto central e por outras causas naturais. Num
local denominado Marumbene, situado
no território rodesiano, a uma milha da fronteira com Moçambique, estudou uma doca
artificial que possivelmente servia de abrigo
às embarcações provenientes do oceano. Além de
provas sobrenaturais
atestando a presença de um povo estranho, deparou ainda com restos de fauna marítima
que, naqueles recuados tempos, subiria o rio devido à sua elevada salinidade. L.
Barradas estudou esse porto sito na foz do Save, a que chama «a primitiva Mambone», frisando ser este
topónimo derivado de mambo e do locativo eni, isto é «lugar do Chefe».
Por seu lado R. W. Dicksinson levou a efeito escavações arqueológicas em Velha Sofala,
não conseguindo, no entanto, encontrar materiais anteriores ao séc. XII. Na
margem direita da foz do Save foi encontrado recentemente o zimbabwe de Muabsa que
se afigura de extrema importância.
O. von Oidtman sugere uma rota provável entre o Zimbabwe e
os pontos setentrionais, passando pela Serra de Zembe, a sudeste de Vila Pery, perto
do rio Revué, serra que constitui o centro geográfico e estratégico de toda aquela
região. Na sua vertente norte existem amuralhados e uma caverna sepulcral. No seu
sopé passa uma outra estrada que, segundo a tradição, era utilizada pelas caravanas
dos mercadores árabes. Encontra-se marcada por uma fiada de palmeiras Borassus que
pode ser seguida pelo sul, até à Serra de Mavita e, pelo norte, até uma outra elevação
orográfica.
As causas da agressividade e ânsia
de domínio dos primeiros Mwenes Mutapas apenas podem ser conjecturadas. Tem-se referido
a dinâmica interna da nova nação, lutando com excessos populacionais derivados da
prosperidade económica. Tem-se aventado a influência dos numerosos comerciantes
árabes residentes no interior que procurariam assegurar o livre acesso ao mar, também
ambicionado pelos conquistadores devido às
riquezas que poderiam
obter graças ao tráfego do sal. Pode, neste
contexto, integrar-se-á observação de H. von Sicard a propósito da carência de vestígios
de fortificações nas rotas mercantis entre o litoral e o interior, carência que
considera como prova de que o tráfego se processaria em condições
pacíficas, decorrendo as viagens
sem riscos apreciáveis. Os
asiáticos manteriam relações amigáveis
com os
aristocratas rozwis e casariam
com mulheres africanas.
Seja como for, o terceiro mambo rozwi, Matope ou Mutope, continuou este processo
de expansão territorial. Mas, na primeira metade do séc. XV, decidiu transferia
a sua capital do Grande Zimbabwe para um local muito mais ao norte, a sudeste do
Zumbo, no país Dande, fora da mancha de granito. Tal explica a renúncia ao sistema
de construção lítica anteriormente usada pela aristocracia rozwi.
As causas do abandono do Grande Zimbabwe, abandono atestado
pela arqueologia, parecem ter sido
de natureza económica (esgotamento dos recursos naturais, interrupção das rotas do
Save
• Sofala, etc). É possível que tenha contribuído
para essa decisão
• progressivo assoreamento
do primitivo porto de Sofala
e a
navegabilidade cada vez mais difícil do rio Save. M. D. D. Newitt aventa que essa
deslocação da corte tenha sido causada pelo esgotamento dos campos auríferos meridionais
e pela abertura de novas explorações setentrionais, com rotas e novas saídas marítimas
desenvolvidas por arabizados dissidentes residindo em Quelimane, Angoche e Moçambique.
O advento dos Portugueses apenas teria acelerado o declínio de Sofala e Quilua.
Por ocasião do seu falecimento, cerca de 1480, o Mwene Mutapa II era considerado
como suprema autoridade num vasto império que se estendia do Zambeze ao
Limpopo e do deserto do Kalahari
ao Oceano indico.
Colocou membros da sua própria família como
governadores dos territórios conquistados. A Xanga foi entregue o governo da Província
de Guruhusua, onde se situava a primitiva capital. Torwa
passou a governar a província central de Mbire. No oriente, nos territórios recentemente conquistados
que hoje fazem parte de Moçambique - Chidima, Manica, Báruè, Quiteve e Madanda -
colocou outros parentes como governadores.
Naturalmente que a unidade
política conseguida não possuía
bases sólidas. Não só a composição étnica
era assás dispare como lhe faltavam as vias de comunicação, o equipamento tecnológico
• a infra-estrutura militar e administrativa,
indispensável à coesão
• manutenção de Estados vastos e centralizados. Além disso,
os parentes governadores cedo manifestaram veleidades de independência e se envolveram
em rivalidades intestinas.
O Mwene Mutapa III, Nyahuma de seu nome, não possuía a energia e superior
capacidade dos seus antecessores. Xanga e Torwa, monopolizando as regiões mineiras
e dispondo de bases seguras, rebelaram-se e, aliando-se, conseguiram cerca de
1490, derrotá-lo e matá-lo
em batalha. O primeiro
daqueles rebeldes, posteriormente conhecido por Xangamire (derivado de Amir, nome
que lhe foi dado pelos comerciantes árabes) dominou o império durante curtos quatro
anos, pois em 1494 foi, por sua vez, vencido
• morto por Kakuyo,
filho de Nyahuma.
Porém, o sucessor
de
Xangamire conseguiu manter
o domínio das províncias de Guruhusua
• Mbire. Mais tarde alistou para a sua causa os governadores de Quiteve e
Madanda. Por seu lado, Chidima, Báruè e Manica continuaram leais à dinastia Mutapa
durante mais um século.
Foi esta a situação com que os Portugueses depararam. Por isso a ocupação
de Sofala, ocorrida em 1505,
não conseguiu retirar aos Árabes o monopólio do tráfego aurífero já que estes continuaram
a recorrer à antiga via de penetração natural constituída pelo rio Zambeze, daí
velejando para Angoche e para o Norte. Melhor advertidos, decidiram os Portugueses
ocupar não só Tete e Sena, depois de 1530, mas também Quelimane em 1544.
O Mwene Mutapa, encurralado entre os rios Mazoe e Zambeze, não dominava nem o maior nem
o
mais importante dos Estados
criados pelos Rozwis. Mas procurou sempre esconder este
facto aos seus aliados de além- mar, conseguindo, desta arte, que só muito mais
tarde estes se apercebessem da verdadeira situação política do interior. Todavia
é a estes prolongados contactos entre
• Mwene Mutapa e
os Portugueses que se deve a grande massa de
informações que têm fornecido
aos modernos estudiosos
elementos preciosíssimos sobre a orgânica
interna dos Estados de origem rozwi.
Os reinos de Quiteve e Manica vieram a tornar-se
praticamente
independentes
nos fins do séc. XVI. O declínio do império acelerou-se depois de
1596, com a
investidura do Mwene Mutapa Gatsi Lusere, ainda menor. Para conservar o trono -
e em troca de concessões mineiras - teve em 1606 que recorrer ao auxílio militar
do senhor de prazos Diogo Simões Madeira e dos seus
4000
mercenários maraves. Mesmo assim perdeu o domínio do Báruè. Falecido em 1624, sucedeu-lhe
Mavura, depois de sangrenta guerra civil com seu meio irmão Kaparidze. O auxílio
militar que solicitou
forçou-o a fazer
largas concessões à Coroa Portuguesa, pelo
tratado de 1629. Efectivamente, graças aos reforços trazidos pelo Governador Diogo
de Sousa de Menezes conseguiu, três anos depois, derrotar o rival.
Na época de paz que se seguiu os Mambos da aristocracia rozwi
mandavam os seus agentes comerciar com as feiras portuguesas de Luanze, Ongoe, Dambarare
e sobretudo Maramuca, todas elas sitas na metade setentrional da actual Rodésia,
ao tempo pertencente ao Mwene Mutapa.
Na década de 1630, um dos Xangamires, denominado Dombo, absorveu
o reino de Mbine e suprimiu a velha dinastia Torwa. Estendeu também o seu domínio
à margem direita do Limpopo. Em 1638 atacou pela primeira vez os senhores de prazos.
Depois, atendendo ao apelo de um tal Nyakambira, que havia usurpado o título de
Mwene Mutapa, lançou-se numa feroz campanha contra os Portugueses e suas feiras
obrigando-os a refugiar-se em Tete, Sena
• Sofala, praças que atacou em 1693 e 1695. Foi durante esta campanha que a dona de prazos Catarina de Faria derrotou o usurpador e instalou o Mwene Mutapa D. Pedro. Foram as campanhas daquele
Xangamire que deram origem à emigração dos povos Venda e Lovedo, que se estabeleceram
no actual Transvaal setentrional, saqueando Mapungubwe no seu trajecto. Aparentemente
satisfeito com os seus êxitos Dombo retirou-se mais tarde para Guruhusua.
Embora pouco se
saiba dos posteriores acontecimentos internos, os dados fornecidos pela arqueologia permitem sustentar
que se seguiu uma época próspera, com intensa actividade arquitectónica no Grande
Zimbabwe e com o início de construções semelhantes em Dhlo-Dhlo e Khami.
Para escoarem a produção aurífera,
os Xangamires passaram a utilizar a
feira
do Zumbo, provavelmente
fundada em 1716
pelo goês Pereira.
A importância desta feira foi estudada recentemente
pelo historiador rodesiano S. P. Mudenze.
O ouro era também escoado, embora
em menor escala, pela feira de Manica, onde o monarca mantinha uma das rainhas e
por onde se exportava também, cobre, marfim e utensílios de ferro em troca de miçangas
e tecidos. A arqueologia e os antigos
documentos portugueses comprovam que os
Xangamires igualmente sustentaram contactos mercantis
com Sofala, Inhambane
e a Baía de L. Marques.
A existência relativamente
pacífica e próspera dos Xonas
• da aristocracia rozwi, foi
violentamente perturbada, cerca de
1825, quando os predatórios e aguerridos
grupos vangunes, foragidos do Norte do Natal, semearam o pânico e a desgraça entre
o Limpopo, o Save e o Zambeze. N'qaba, Sochangana e também Ngwana
• os regentes dos Angonis Masekos preferiram para seu campo
de acção a área entre o Save e o Zambeze.
O actual território da Rodésia, foi, por sua vez, alvo das depredações de
Zwanguendaba e, posteriormente, de Mzilikazi, fundador do reino Ndebele. O primeiro
parece ter-se dirigido directamente ao Zambeze, daí retrocedendo para sul, onde
se situava o velho Império do Mwene Mutapa. Aí, depois dum recontro com guerrilheiros
de N'qaba, desviou-se para ocidente e caiu sobre o núcleo central da complexa cultura
dos Mambos Rozwis e da aristocracia que os suportava. Saqueou o Grande Zimbabwe,
Khami, Dhlo-Dhlo
• outros centros. Os arqueólogos, nas suas escavações, encontraram
provas concludentes da violência dos atacantes. No centro que os Rozwis conheciam
por Manyanga e que veio a ser posteriormente cognominado Taba Zika Mambo, as hostes
invasoras cercaram o último Mambo e o seu séquito. Terence Ranger fornece-nos o
vivido relato de um velho guerreiro de Zwanguendaba, recolhido em 1898. Aí se narra
como o último Mambo, no alto
duma escarpa
com trinta metros de altura, gesticulou para que os guerreiros vangunes formassem
na base. Depois de dançar, lançou-se no espaço e veio baquear aos pés dos sitiantes.
O seu séquito desapareceu a coberto da noite.
O Império Rozwi tinha atingido o seu fim. Mas muitos chefes
zonas continuaram a reconhecer a senioridade ritual dos sacerdotes rozwis, refugiados
nos Montes Matopos, os quais eram visitados por mensageiros oriundos das áreas onde
o culto tinha existência organizada.
Segundo cálculos de R. Summers, as 4000 minas exploradas desde
o séc. V até ao séc. XIX produziram entre 600 e 800 toneladas de ouro, na sua maioria
absorvidas pelos mercados asiáticos.
Diremos agora algo sobre os povos de Moçambique que fizeram
parte do Complexo Mutapa-Rozwi. Interessaram-nos,
em especial, os Teves, Manicas, Vandaus,
Tawaras, Bargwes e Tongas (do Zambeze).
A Província de Uteve ou de Quiteve, como era conhecida pelos Portugueses,
foi conquistada por Xangamire I para o Mweve Mutapa III, que ali colocou o seu filho
Manyenganyura, com o título de Sachiteve I, um pouco antes de 1490. Mas em fins
do séc. XVI já constituía um reino independente. Como dissemos, em 1643
Sisnando Dias Bayão
restituiu ao trono
o
rei Peranha. Depois da rebelião do
Xangamire Dombo, passou o reino a ficar integrado na Confederação Rozwi. G. Bivar
P. Lopes recolheu cerca de 1920
a tradição de que um dos Xangamires mandou seu neto Mecio
conquistar as terras entre o Save e o Zambeze. Estabeleceu a sua capital no Monte
Maué, em Moribane, dividiu a região em várias províncias e deu o seu governo a
parentes. Uma das províncias, no actual Chimoio (nome talvez derivado do clã real
dos Rozwis, Moyo) foi entregue a sua irmã Ingomani,
parecendo que dela
derivam os regulados obrigatoriamente ocupados por mulheres,
proibidas de ter filhos para
evitar que a chefia viesse a
cair em plebeus sem
sangue rozwi. A escolha dessas rainhas era da competência do
grande régulo Moribane. O relatório do Governador de Sofala de 1795 já afirma que
o seu título se tornara hereditário. J. C. Paiva de Andrada, que visitou a região
em 1885, citou as mulheres-chefes Gomani e
Mahondo, proibidas pelo direito consuetudinário
de contrair
matrimónio.
Aquele relatório de 1795 também dá informações sobre os rituais
que cercavam o falecimento dos régulos rozwis: o cadáver suspenso e envolvido numa
pele de bovino, era deixado em decomposição longo tempo, apanhando- se em vasos
o líquido sagrado que escorria.
Ao que parece o reino de Quiteve ficou irremediavelmente dividido após a morte
do último monarca em 1803.
Em 1920 o régulo Moribane ainda era considerado superior a
todos os outros régulos descendentes dos Rozwis. Recebia o título de Zimbágué, tinha
direito a uma forma especial de cumprimento e quando bebia ou cheirava rapé todos
os presentes cobriam a face com as mãos. Era enterrado com outros de origem rozwi
num cemitério especial do Monte Maué. A propósito destas sepul- turas reais não
pode deixar de se citar a encontrada em Mavita no «Dombue ra Marozui» cujos desenhos
são apresentados por Pires de Carvalho.
A Província de Manica, talvez criada pelo Mwene Mutapa II no
decurso das suas conquistas, manteve-se leal ao Imperador até fins do séc. XVI.
A casa reinante Chikanga de Manica (mais tarde substituída pela de Mutassa) constituía um ramo da
dinastia Makombe do Bargwe. M. Galvão da
Silva afirma ter sido investida pelo Xangamire
I, quando ainda vassalo do Mwene Mutapa III. A fronteira entre os reinos
Bargwe e Manica era constituída pelo rio Aruangua, o actual Pungoè. Dois etno-historiadores
se debruçaram sobre o passado dos Manyikas: D. P. Abraham, que estudou as suas tradições
dinásticas, e, muito
recentemente, H. H. K. Bhila,
que
aprofundou as relações
deste reino com
o Mwene Mutapa,
os
Mambos Rozwis e os Portugueses,
desde o séc. XVI até aos fins do séc. XIX.
*
Madanda foi uma das províncias orientais criadas nos fins do
séc. XV, pelo Mwene Mutapa II. O respectivo governador aliou-se ao Xangamire II.
Há a recordar que António Fernandes visitou o chefe Nyamunda, ao sul de Sofala,
em
1518. Em pleno
processo de independência expansionista, veio, pouco a pouco, a apoderar-se de todas
as rotas comerciais com aquele porto. Posteriormente esta casa reinante tomou o
título de Sedanda, poucas informações havendo a seu respeito.
No séc. XIX os habitantes da região receberam dos invasores
vangunes a designação de Va-Ndaus, derivada da forma como cumprimentavam batendo palmas e proferindo: «Ndawe! Ndawe! ».
O nome Danda é presentemente aplicado ao povo que vive nas florestas situadas
no sopé da grande cordilheira que se estende ao longo da fronteira. Mas o clã dos
chefes é Nkomu, associado ao clã Nyamunda.
Nas montanhas vivem os
Tombodjis. As terras
baixas são habitadas
pelos Govas. No litoral predominam os Xangas (e não Xanganas, como erroneamente
têm sido designados). Estiveram sob secular influência oriental.
Quanto aos Tawaras, as tradições
coordenadas por D. P. Abraham
afirmam que quando Mutota, o primeiro Mwene Mutapa, iniciou a conquista dos territórios
setentrionais, o clã Nyari, talvez o clã nuclear dos Tawaras, ocupava o país Xoma
nas terras baixas situadas perto da fronteira com a Província de Tete, além do extremo
oriental das cordilheiras de Mavuradonya. Mutota e seu filho Matope, para assegurarem a cooperação voluntária do culto pluvial local de Dzivaguro-Musikavaho, entraram com o
chefe dos Nyari, Ambua, numa relação ritual nomeando-o dignitário da corte, com
a função de escolher -a Mavarira,
irmã-esposa
senior do monarca. A integração dos Tawaras na Confederação Mwene Mutapa acentuou-se,
decerto, com a supremacia da dinastia dos Xangamires e a concentração das populações
leais à primeira, nos territórios setentrionais. Estiveram outrora unificados sob
direcção dum chefe supremo, o
Possa
Grande.
*
Pela sua secular existência, pela importância de que veio a
revestir-se na historia de Moçambique e pelas estreitas ligações que manteve com
Manicas, Tongas e Tawaras, propositadamente deixámos para o fim o Reino do Báruè
e a respectiva dinastia Makombe. Data de 1506 a mais antiga citação portuguesa em que aparece
referido. Manteve-se leal ao Mwene Mutapa até fins do séc. XVI. A região
foi temporariamente submetida, em 1650,
para a Coroa Portuguesa, por António Lobo da Silva.
Tem-se afirmado que os monarcas reconheciam de algum modo a
soberania portuguesa e considerariam indispensável a confirmação baptismal da sua
investidura, apesar de serem apoiados pela aristocracia e pelos mediuns mphondoro, guardiães dos espíritos dos reis
defuntos. O historiador
A. Isaacman, na sequência de trabalhos
de campo realizados na região, interpreta essa água benta,
a madzi-manga, não como
um baptismo católico ou uma prática
religiosa sincrética mas como um meio tradicional pelo qual as características,
sagradas da monarquia eram transmitidas. O líquido seria proveniente de Sena, considerada
como Terra Santa, tendo a investidura lugar em Missongue. Seria um símbolo de
poder político efectivamente conseguido, oferecendo o novo Makombe, graças à
presença do emissário da Coroa Portuguesa, prova da
sua legitimação e aliança
com um poder
externo e superior.
No que concerne os actuais Tongas do Baixo Zambeze, são decerto os célebres
Mongás que em 1572 atacaram a expedição
de Francisco Barreto. Sabe-se que, por volta de 1640, um chefe tonga, de
nome Sanapache também
atacou
os prazos sendo repelido por Lourenço de Mattos.
A sua estreita associação com os Bárués e com a casa reinante
dos Makombes, inclinam-nos a aventar serem descendentes de tribos autóctones submetidas. E s t a hipótese
foi recentemente confirmada por A. Isaacman que, pela recolha sistemática da
tradição oral, apurou que
os
conquistadores utilizaram uma série de alianças matrimoniais com os
conquistados, combinadas com a nomeação de um conselheiro-mor, do clã Tembo, dos
Tongas, cujo cargo era hereditário e que durante os interregnos servia de regente.
Uma outra obra do mesmo historiador fornece indicações
precisas sobre este
povo mal conhecido. Mesmo na época em que a Confederação
Rozwi atingiu a sua maior extensão territorial, cerca de 1700, os Tongas, acantonados
no limite nordeste, conservaram-se possivelmente
à sua margem. Como a ascensão da dinastia Makombe se processou após a retirada dos
Xangamires para o distante território de Guruhusua, entre os
rios Lundi e Limpopo, afigura-se possível que a conquista
pode ter coincidido com o movimento migratório deste subgrupo em direcção ao Baixo
Zambeze, movimento referido por G. T. Nurse e que parece haver dado origem a Senas
e Podzos.
Há alguma literatura etno-histórica sobre os Bárués e
Tongas. J. A. Coutinho fornece a árvore geneológica dos Makombes. C. Montez publicou
uma nota sobre a coroação
de
um dos reis em
1811. Leo Frobenius
alude às tradições sobre o sacrifício ritual dos monarcas.
H. Wieschoff elucida sobre as cerimónias anuais de distribuição do fogo real e da
consagração das sementes. No reino do Báruè onde imperavam os Makombes, a influência
dos Vangunes em geral e de Muzila em especial parece ter sido mais apagada. De 1826 a
1830 esteve
o reino sem monarca devido a disputas de sucessão. Depois, prolongando-se talvez de
1834 a 1838,
surgiu a ocupação
dos Angonis chefiados pelos Masekos. Em 1846
a aristocracia báruè encontrava-se
irremediavelmente dividida entre os dois pretendentes ao trono, Chibudo
e Chipatata. Documentos portugueses referem-se à gorada tentativa feita em 1854
por Muzila, ainda governador, para colocar no trono o seu prote
gido Chibudo.
À morte do Makombe Chipatata, ocorrida em 1880, seguiu-se um longo período
de vazio político, de que tirou proveito o indo-português Manuel António de Sousa, cognominado «Gouveia». Por uma série de incursões armadas e manobras políticas que incluíram o seu casamento
com uma das filhas do Makombe falecido, apoderou-se do poder e passou a considerar
o Báruè como propriedade particular. Da sua união com a princesa báruè teve dois
filhos que foram educados em Portugal.
De 1874 a
1886 registaram-se importantes acontecimentos que, segundo o historiador inglês
M. D. D. Newitt conduziram à perda pelos Portugueses de parte do território hoje
pertencente à Rodésia.
Segundo uma versão, o reino de Manica teria sido invadido em 1874, pelos seus
vizinhos Makoni e Báruè. O atacado, súbdito de Muzila, solicitou-lhe protecção militar.
Mas os regimentos enviados pelo monarca de Gaza teriam sofrido amarga derrota. O
Mutassa fora então aconselhado pelos mediuns que comunicavam com os espíritos dos
antepassados dinásticos, a pedir auxílio a Manuel António de Sousa. As forças por
este enviadas teriam conseguido, na verdade, repelir os invasores.
Um pedaço de terra
retirado da moradia do medium-espírito Masina teria sido enviado àquele
capitão-mor, simbolizando a sua vassalagem. Paiva de Andrada, sua visita às terras
do Xangamire em 1885, ficou, na verdade, impressionado com a enorme influência exercida
pelos pondoros sobre os mambos. Seja ou não verídico este episódio, não há dúvidas
que Manuel António de Sousa,
aliado a J. C. Paiva de Andrada, depois de
ocupar o Báruè e o vale do Punguè, tentou sem sucesso submeter o Chefe Mtoko, na
actual Rodésia. Convencidos que esta resistência ao seu avanço na direcção ocidental
era inspirada pela dinastia dos Vicente da Cruz, instalada em Massangano, e que
dera guarida aos descendentes da família real do Báruè, nomeando um deles capitão,
os dois aliados dirigiram as suas forças contra aquela famosa aringa que conseguiram tomar, aliás sem esforço, no ano de
1887. Mas quando
voltaram a sua atenção para os
territórios ocidentais planálticos já era tarde. A «British
South Africa Company» tinha-se adiantado e
obtivera, entretanto, dos chefes
nativos a assinatura de tratados.
Quanto à família Vicente da Cruz, dirigida pelo Metondora,
refugiou-se na margem esquerda do Zambeze e daí procurou organizar a sua resistência,
recorrendo a alianças com o chefe tawara Mtoko e o chefe angoni Chikussi.
Após a traiçoeira captura de que foi vítima, juntamente com
o Coronel Paiva de Andrada, em 1890, pelos agentes da «British South Africa Company»,
Manuel António de Sousa teve, no seu regresso, que enfrentar uma colisão de nobres
dissidentes, auxiliados por chefes xonas do actual território da Rodésia. Foi morto
pelos revoltosos, em parte munidos de armas de fogo, no ataque que lançou contra
a aringa do Missongue, em 1892.
Durante o novo vazio político que se seguiu, quatro pretendentes, suportados
pelos seus mediuns, disputaram o direito ao trono. As perturbações daí derivadas levaram a desencadear
a
campanha de 1902, chefiada
pelo capitão-tenente João de Azevedo Coutinho.
Mais de dois terços dos aristocratas barwes ou pereceu na luta ou seguiu no seu
exílio rodesiano o ramo Myapaure- Hanga da casa real.
Para a revolta iniciada no Báruè
em 1917 parece haverem-se congregado diversas causas:
o enfraquecimento
qualitativo
da ocupação
militar e administrativa, o recrutamento compulsivo de carregadores para
as operações contra os alemães, a construção da estrada Tete-Macequece, os desmandos
e injustiças dos cipais, a imposição do imposto de palhota, etc.
Mas é no contexto do conflito pela
sucessão que deve compreender-se a organização da rebelião. Depois da morte de Nyapaure-Hanga
passou a sua casa a ser representada pelo
irmão júnior, Nongué. A representação da casa de Chipatura cabia a seu sobrinho
mais novo. Como a Administração Pública não tinha investido como
monarca qualquer aristocrata
da sua
escolha, a necessidade sentida pelos descendentes de possuírem
um cabecilha forneceu excelente oportunidade
para resolver o litígio
entre os dois
pretendentes. Durante a grande assembleia
que então se realizou, Makosse inclinou-se para uma solução pacífica negociada com as autoridades portuguesas. Mas foi
Nongué, favorável à luta armada, que a assembleia reconheceu como novo e
legítimo monarca. Apoiado durante alguns meses
pela
grande maioria dos Barwes, conseguiu, embora com dificuldade,
adesão de Gossa, chefe dos Tawaras. Serviu-se
para isso da
ancestral ascendência da dinastia
dos Makombes sobre essa etnia.
De maior importância foi, todavia,
a aliança firmada entre Nongué e as autoridades espirituais dos Barwes, nomeadamente os possessos
com características mediúnicas. Entre estes
sobressaíram a adolescente
a
quem tinha sido confiado o título hereditário de Ambuia, e que possuía ascendência
religiosa sobre os mphondoros tawaras que, sob o seu comando, incitaram o povo à revolta.
Os sucessivos reveses que Nongué-Nongué
sofreu na luta
contra as tropas portuguesas contribuíram para a rápida queda do seu prestígio.
Nos últimos meses da rebelião, passou Makosse a ser considerado o legítimo Makombe.
Batido, procurou refúgio em Mtoko, na Rodésia do Sul, no mês de Outubro de 1918.
Assim terminou a
secular dinastia dos Makombes
dos Barwes e do mesmo modo, a dos Gossas
dos Tawaras. A crer na relação
dos Mwenes Mutapas compilada por Stanford Smith,
o seu último representante legítimo, Chiuoka, reduzido à condição de pequeno
régulo no Distrito de Tete, ao sul do Zambeze, também foi deposto pela sua participação
nessa revolta de 1917.
CAPITULO V
POVOS DO BAIXO ZAMBEZE
Cremos impor-se a criação duma zona específica onde consideraremos
incluídos um certo número de povos que, pelas razões adiante expostas, nos parece
não deverem englobar-se em qualquer dos grandes grupos étnicos em que dividimos
os antigos habitantes de Moçambique.
Na verdade, o vale e o delta do
Zambeze têm relações bastante estreitas com a
divisão étnica: não só ali se entrechocam duas organizações
sócio- culturais distintas (as matriarcais
do norte e as patriarcais do sul) como constituíram uma excelente via de penetração
e, consequentemente, de difusão cultural para
numerosos povos exóticos
(Indonésios, Persas, Árabes, Portugueses, etc.) que, quiçá por milénios, vêm percorrendo a costa oriental africana. Brian M. Fagan acentuou
a importância que o vale do Zambeze teve durante os primeiros séculos da Idade do
Ferro para as trocas comerciais entre o centro da Africa e a sua costa oriental.
Daí ser natural que os habitantes do referido vale e delta apresentem traços de
intensa aculturação que só estudos detalhados permitirão individualizar. Blake Thompson,
por exemplo, é autor de um interessante artigo em que, baseado em certas tradições
indígenas, atribui origem oriental (possivelmente indonésia) a Podzos, Senas e Nyungwes.
A criação desta zona, em vez da filiação forçada (ou feita
sob reserva) dos povos que a compõem, em qualquer dos restantes grupos étnicos,
parece- nos dar à divisão étnica de Moçambique um carácter mais científico.
Eliminámos deste grupo os Tongas e Tawaras, que tudo indica
pertencerem ao Grupo Xona e consideramos agora nele incluídos os seguintes
povos:
SENAS e PODZOS
• primeiro destes sub-grupos mereceu a atenção de alguns estudiosos
como M. M. Lopes,
F. P. Schebesta e A. R. Martins. Todavia, foram as recentes e mais sistemáticas
pesquisas de R. I. F. de Freitas e J. M. Schoffelers que permitiram melhor compreender
a sua posição etnológica.
• primeiro destes autores afirma ser historicamente comprovado o facto do núcleo dos Senas
derivar dos auxiliares
nativos, oriundos de múltiplas
regiões, que acompanharam os Portugueses na sua progressão ao longo do rio Zambeze.
Daí o seu etnocentrismo e até arrogância.
Posteriormente ocuparam ambas as margens daquele grande curso de água e consideravam-se
oriundos da «Mualo ua Sena», nome que dão à porta de armas da fortaleza quinhentista
de S. Marçal.
Subdividem-se em:
a) Senas Chuezas - Situam-se «donde vem a água» e, com excepção de três regedorias
tongas, ocupam as áreas dos antigos postos administrativos de Tambara e Chiramba;
b) Senas propriamente ditos - Ocupam a área compreendida por
todo o distrito de Sena, pela sede do distrito de Chemba, pela parte oriental do
distrito de Mutarara e pelo distrito de Nsanje na extremidade meridional do Malawi;
c) Senas Podzos - Situam-se na região «para onde corre
a água» e estendem-se pelo distrito
de Marromeu, por quase toda a área do distrito do Luabo e por parte do distrito
de Quelimane e das localidades do Campo e de Nicoadala.
Parte destes últimos, devido ao
carácter pejorativo do termo «podzo»
designam-se
a si próprios por «Chupangos» ou «Chipangas ».
• facto da herança e a sucessão
serem patrilineares, do casamento ser de preferência virilocal e ainda de observarem,
na generalidade, os cultos da possessão por
espíritos, faz suspeitar
que, originalmente, entraram na
constiuição desta etnia povos de extracto xona.
Junod informa que os Podzos vieram da margem norte, parecendo
relacionados de modo directo com os habitantes do Chinde e de Quelimane, falando
uma linguagem bem definida, aparentada com a dos Senas e Chuabos. Montês considera-os
possivelmente Macuas, influenciados pela gente do oeste
e sul, mas guardando
certo particularismo. Os clãs podzos são, na verdade, das mais diversas proveniências,
Chinde, Mbadzo, Thundu, Botha, Ngawa, Singo, Sase e Cowe (do norte); Chilendje,
Marunga, Bande (do oeste) ; Simboti, Nyangombe, Chirongo, Chifungo (do sul).
CHIKUNDAS e NYUNGWES
A maioria dos autores identifica Nyungwes com Chikundas. C.
Montês escreve que o primeiro nome seria o de uma genarca que teria vindo com os
seus súbditos das terras da margem esquerda.
Tal tradição indica segura
filiação nos povos
matrilineares do norte,
embora presentemente sejam patrilineares i virilocais. Também M. Tew afirma serem
produto da miscegenação dos Mangan
jas e Tongas. De facto, a mancha Nyungwe atingi a divisão administrativa de
Chikwawa no Malawi. A predominância dos possessos
com o espírito do leão, mambo mpondoro, é de origem xona. Já as oferendas e preces
pela chuva feitas à gibóia, tsato, indicam origem marave.
Deve-se ao historiador americano A.
Isaacman, após intensivas pesquisas
de arquivo i de campo, um recente i valioso estudo sobre a origem, formação i história
da primeira daquelas etnias.
Concluiu serem os Chikundas
oriundos dos guerreiros-escravos
ao serviço dos senhoris dos prazos da Coroa
que si estendiam de Tete ao Oceano Índico. À margem das suas funções de carácter
militar i de si haverem transformado em grandes caçadores de elefantes, desempenharam
importante papel na organização de caravanas comerciais a distantes regiões. Vieram
a constituir posteriormente comunidades políticas independentes que si estendem
por vastíssima ária, em Moçambique, Rodésia, Zâmbia e Malawi.
Aquele autor opina que as tão frequentes confusões feitas sobre
a sua origem são mira consequência da falta
de investigações adequadas sobre a
complexa composição étnica i cultural dos povos do vale do Zambeze.
Tem havido manifesta tendência para, sem
discriminação, englobar em idênticas
etnias, povos que embora
vivendo dentro da mesma ária
geográfica, têm díspares antecedentes históricos i
diferentes afinidades culturais com os vi- zinhos.
O nome seria derivado
do verbo xona
ku-kunda, derrotar. Ter-si-ia difundido entre 1650
i
1750. Os Chikundas recrutavam-se entre um
largo número de
grupos étnicos: Sinas, Tongas,
Chiwas, Nsingas, Manganjas, Zizuros, Barwis i Chipitas. Em um grupo
de escravos libertos na ária de Tete em
1856
distinguiram-si vinte e uma etnias distintas.
Historicamente a filiação clãnica parece haver resistido às mutações, mesmo
nos
casos em que os indivíduos foram integrados
num novo grupo
étnico. Dos sete principais clãs chikundas, três são de origem marave (Nguluwe,
Mvuna e Phiri) i dois outros são comuns a Senas e Tongas (Malunga i Chilinji). No
século XIX a composição étnica tornou-si ainda mais heterogénea divido à intensificação
do tráfego esclavagista transoceânico. Passou a incluir Bisas, Ajauas, Makuas, etc.
Todavia uma tribo chikunda
foi
recentemente citada por M. F. C. Bourdillon.
É a do chefe Kaitano (do português «Caetano») que indica como seu clã Muzungu Ruberofoseka (do português
«Senhor Ribeiro Fonseca») i que afirma
ter-se estabelecido no actual território da Rodésia quando os Europeus entraram
em conflito com os Ndibilis.
Um processo inédito do sistema de recrutamento ira a escravatura
voluntária, em parti radicada no costume tradicional da doação de si próprios feita
por famintos, doentes, abandonados, perseguidos e condenados pelos tribunais tribais. Este acto
de
submissão era simbolizado pela destruição
ostentória de um objecto de reduzido valor pertencente ao protector: o mitete. Parte
dos Chikundas era obtida por compra a outros senhores ou por guerras e incursões
de caravanas mercantis a longes terras.
Os Chikundas gozavam de óbvias regalias: distribuição de terras, armas, miçangas,
tecidos, gado e mulheres, direito de caça e saque. Muitos, oriundos
de comunidades matrilineares, abraçavam alegremente a nova existência de predomínio varonil.
Dentro de cada prazo
os
chikundas agrupavam-se em companhias,
butaka, de localização bem definida, as quais formavam as unidades políticas básicas
e dispunham de uma hierarquia administrativa.
No topo situava-se o capitão, mukazambo, escolhido não apenas pela sua lealdade
e pelos serviços prestados ao senhor, mas igualmente pela sua aptidão para manter
os subordinados em respeito e obediência. Cada butaka subdividia-se, por sua vez,
em nsaka, secções compostas de dez a doze guerreiros e suas famílias.
Como as aldeias chikundas estavam
estrategicamente espalhadas pela vasta área do prazo, os escravos permaneciam relativamente
isolados tanto das populações autóctones
como das outras
butaka. O seu isolamento e
a sua origem estrangeira tornavam
necessária a criação duma nova rede de relações sociais as quais ligariam todos
os membros da companhia. Em qualquer destes casos, as esposas eram trazidas para
a aldeia chikunda. Para as populações matrilineares eram profundas as consequências
da mudança para uma organização do tipo patrilocal.
Um vínculo totalmente novo de laços de
parentesco desenvolveu-se para satisfazer as funções que, previamente, eram desempenhadas
pela matrilinhagem. Uma família extensa patrilinear emergia, a qual era reforçada
em cada geração pela residência permanente dos varões. Por a maioria
das mulheres serem provavelmente recrutadas entre as populações
patrilineares residentes nos prazos, podiam elas ser facilmente integradas em tal
sistema. Esta adaptação era sem dúvida mais difícil para as mulheres provenientes de áreas
matrilineares. Contudo, como
ficavam completamente
desligadas dos parentes maternos, não tinham outra alternativa senão acomodar-se.
A emergência desse novo sistema
de organização social foi um dos aspectos do processo de alteração mais amplo que
serviu de base a uma cultura chikunda distinta. Apesar de quase nenhuma investigação
ter sido ainda feita neste campo, os dados dispersos
sugerem que esta
nova cultura
se apresentava como uma amálgama
de várias instituições e valores zambezianos
moldados duma maneira sem paralelo.
A presença do mpondoro xona (ou o culto do espírito do leão), do ordálio venenoso
com grandes semelhanças do típico entre Senas e Tongas, e dos ritos funerários dos
Solis, são exemplos dessas formas
religiosas sincréticas. A sua língua
materna, Nyungwe, demonstra tão grande influência de raízes Nyanja e Xona
que os estudiosos não foram capazes de concordar numa classificação apropriada.
Através de relações especiais com os Portugueses, adquiriram novas técnicas metalúrgicas
e certos artefactos europeus que enriqueceram a sua cultura material e alteraram
o seu estilo de vida. A larga introdução de armamento europeu, por exemplo, permitiu-
lhes especializarem-se na caça e na guerra, o que, por sua vez, contribuiu para
o desenvolvimento de uma cultura característica. É razoável pensar-se que a intensa
actividade venatorla, afectou a sua cosmologia, o seu sistema de valores e os seus
moldes sociais, contribuindo para os
diferenciar da população
autóctone que continuou a praticar uma economia de subsistência. Por exemplo, W.
H. H. Nicolle faz referência a um ídolo de ferro conhecido por ximombe que seria
adorado por um grupo de Chikundas do Alto Zambeze e disporia de um sacerdote, nyaonda,
bem como de um guardião hereditário, sawira.
Os Chikundas manifestavam de diversas maneiras a consciência
da identidade do seu grupo. Talvez a sua expressão mais ampla fosse a reacção violenta
a qualquer senhor de prazos que tentasse afastar um membro da companhia sem a
autorização expressa do mukazambo. A disposição dos Chikundas para lutarem por direitos
colectivos e pela segurança comum, a sua lealdade cega ao
escravo-chefe, a sua atitude hostil para
com a população autóctone e consequente retenção
de uma identidade corporativa quando fora dos limites do vale do Baixo Zambeze,
tudo isto constituía testemunho de uma intensa consciencialização étnica.
Devido à sua eficiência
no uso de armas europeias,
os Chikundas também se tornaram nos melhores caçadores
de elefantes da África Austral e Central. Estas expedições venatórias eram uma
parte integral do sistema de comércio que cobria longas distâncias e que ligava
a África Austral e Central com o Oceano indico, e fornecia aos prazos a sua principal
fonte de riqueza.
Dirigia a caravana um perito
em comércio conhecido por musambadzi,
que o senhor geralmente escolhia
dentre os escravos-chefes.
Apesar dos importantes serviços económicos, políticos e militares que forneciam, os interesses dos escravos-guerreiros
muitas vezes estavam em oposição com os do senhor do prazo. Como um grupo corporativo
poderoso facilmente mobilizável por um escravo chefe a quem deviam profunda lealdade,
os Chikundas eram um perigo real para qualquer praieiro que abusasse da sua posição
ou alienasse o mukazambo.
Os Chikundas dissidentes manifestavam a sua oposição sob formas
diversas que iam desde
a
recusa a obedecer a ordens
específicas até às revoltas
armadas.
A resistência chikunda aumentou dramaticamente de intensidade e frequência
durante a primeira metade do século XIX. Três séries de factores interligados explicam
o seu crescente afastamento do sistema dos prazos. A participação dos senhores no
comércio esclavagista transoceânico deu azo a esta hostilidade. Durante a última
década do século
XVIII o vale do Baixo
Zambeze tornou-se um dos mais importantes
mercados exportadores para o Brasil. Inicialmente os praieiros
mandavam caravanas ao interior,
onde facilmente adquiriam escravos
ou onde os podiam capturar sem grandes dificuldades. Mas como
a
procura aumentou, a comunidade
de praieiros violentou as suas prerrogativas legais
e tentou exportar um número considerável de Chikundas. Um funcionário português,
escrevendo em 1825, candidamente admitia que «a impossibilidade dos praieiros em
compreenderem as implicações do comércio de escravos tinha levado à ruína os principais
donos de terras».
A maioria dus Chikundas achava mais prático emigrar para além do Baixo Zambeze do que competir com os invasores vangunes e os Estados vencedores. Depois de várias gerações de
separação no espaço, na cultura e nas funções, não é de admirar que muitos tinham
entrado para as butakas neo- tradicionais.
Durante a segunda metade do século XIX os Chikundas emergiram como uma das
principais forças políticas da Africa Austral e Central. Factores, como o
domínio de artes
marciais, a posse de armas relativamente poderosas e a sólida reputação como guerreiros,
facilitaram este processo. A ausência dum sistema estadual forte aliada às condições
políticas geralmente instáveis no seu novo país natal, mais
fortaleceram esta posição. Durante tal período,
grupos chikundas conquistaram os Nsengos
e Ambos e efectuaram razias e obrigaram a tributos os Estados Lamba, Bisa e Gwembe
Tonga.
Apesar destes feitos, as actividades militares e políticas
dos Chikundas eram bastante mais complexas do que a simples tendência imperialista
que lhes é geralmente atribuída. Grupos de Chikundas, por exemplo, auxiliaram a
família real Ambo, tanto contra
inimigos como contra
os invasores Vemba. Outros
antigos escravos desempenharam papel importante na política interna dos Nsengas,
Solis e Salas. Enquanto durou esta
época confusa, os Chikundas auxiliaram alguns regulados Xonas,
Nsengas e Maraves contra os Portugueses. Continuaram a opor-se durante a fase final
do governo colonial, unindo-se aos Barwes em 1917 no último esforço desesperado
para expulsarem os Europeus.
Para ganharem privilégios económicos, os Chikundas combinavam a sua habilidade
como caçadores de elefantes à força bruta e à agudez de engenho comercial. Para
onde quer que emigrassem conseguiam apoderar-se duma importante parte do negócio
de marfim. Entre os Chiwas e os Nsengas concordaram em entregar aos chefes das terras
um dente de elefante em troca do direito de caça nas áreas tradicionais. Com o
correr do tempo deixaram de se preocupar com os acordos firmados anteriormente e
recorreram à força para justificarem os seus direitos.
Em árias mais
distantes contentavam-se em comprar marfim aos Bisas e Ambos, apesar de
não hesitarem em usar a força para conseguirem tratamento preferencial e eliminarem
a concorrência árabe.
Os Chikundas também desempenharam papel relevante na fase final do tráfego
escravagista da Zambézia. Até ao fim do século XIX compraram ou adquiriram pela força um grande número de
escravos aos Bisas, Nsengas e Ambos. Os cativos eram posteriormente exportados para
as Ilhas de Reunião e Zanzibar.
CHUABOS, MAHINDOS e MANGANJAS
A terrível invasão dos zimbas largamente referida pelos cronistas
portugueses - é identificada
pelos modernos etno-historiadores com uma
ofensiva militar lançada pelo rei do ramo Manganja dos Maraves, com o possível objectivo
de monopolizar as rotas comerciais com o litoral. Da etnia invasora sobreviveram
na actual Manganja da Costa (também designada pelos antigos portugueses pelo nome
de Rundo, nome daquele monarca) danças de máscaras semelhantes às do nyau e também
vestígios do culto pluvial da Mbona, centralizado no território Manganja.
Este conquistador foi posteriormente derrotado, com o
auxílio dos Portugueses, pelo Karonga Muzura, rei do ramo principal dos Maraves.
Este, substituindo-se ao vencido, conseguiu formar um vasto império que se estendia
até ao litoral. Integrados nas suas
hostes, os Lolos
-
ramo de Lomwes estabelecido nos vales do Zambeze, do Chire
e do Ruo - parece terem tomado parte activa nesta expansão que rechaçou Makuas e
Lomwes para o interior setentrional. O nome de Lolo surge, nos antigos documentos,
sob a forma de Bororo que, modernamente, veio a dar Boror.
Segundo Manuel Barreto,
os Bororos em 1667 atingiram Quelimane, sendo súbditos dos reis maraves. O nome chuabo é também de origem lolo.
S. D. Rafael recolheu entre os Chuabos a tradição de serem de origem lomwe
e oriundos do Monte Limane, sito na área do antigo Posto de Tacuane.
CAPITULO VI
GRUPO MARAVE
De harmonia com J. M. Schoffeleers,
pelo nome Malawi
(ou Maravi segundo a ortografia dos antigos portugueses)
os chewas designavam não só os membros do clã phiri mas também regiões, povoações
e centros religiosos ao mesmo associadas. O termo estaria ligado ao simbolismo de
fogo, significando a introdução de uma nova ordem e, também, o domínio político
dos invasores
phiri.
As funções radicalmente diferentes dos dois principais clãs matrilineares
dos chewas (Phiri, no poder político; Banda, nas observâncias rituais relativas
aos frutos da terra) sugerem que os chamados povos maraves foram formados por camadas
sucessivas de invasores ou simplesmente imigrantes talvez provenientes do Congo.
O período da chegada da classe aristocrática dos Phiri à região entre o Chire e
o Luângua é situado pela arqueologia entre 1200 e 1400 d. C. É indubitável que os
ditos Maraves já se encontravam firmemente estabelecidos quando os Portugueses subiram
o Zambeze.
Os recentes estudos de campo realizados por H. W. Langworthy projectaram considerável
luz sobre a etno-história da região. No mais antigo e importante reino formado pelos
invasores, o monarca, do clã Phiri, recebia o título nobiliárquico de
Karonga. Devia obrigatoriamente casar-se com uma
rainha, a Mwali, saída do clã autóctone Banda.
Por outro lado, segundo
o
vigente sistema, a sucessão
poderia ser deferida em qualquer varão que fosse filho
de Nyango, personagem da casa real da qual apenas se sabe ser mãe ou irmã do Karonga.
Isto é, os irmãos mais novos ou os filhos das irmãs do Karonga antecedente poderiam suceder-lhe competindo aos conselheiros
a sua escolha.
Este sistema fluído deu origem
a uma grave disputa de sucessão. Undi,
irmão
do Karonga falecido, não se conformou com a preferência dada pelos conselheiros
a um seu sobrinho. Talvez por
ser o
guardião, nkhoswe, do segmento matrilinear, decidiu separar-se levando
consigo a Nyango e todos os membros femininos da linhagem real phiri. Aquele novo
Karonga que deu origem à cisão parece ter sido o Muzura referido pelos Portugueses
nos princípios do séc XVII.
No novo reino independente que fundou, reino que chegou a ocupar
a parte da Província de Tete situada ao norte do Zambeze, estendendo-se um pouco
pela actual Zâmbia e Malawi, Undi modificou o sistema de sucessão de modo a deferir-se
apenas nos filhos das suas irmãs. Mas esses herdeiros em potencial eram frequentemente
nomeados chefes dos diversos distritos. Com o decorrer do tempo,
criou-se um curioso
sistema de «parentesco
perpétuo». Todos os chefes pertencentes ao
clã matrilinear phiri se consideravam irmãos juniores ou então sobrinhos de
cada Undi no poder. Aconteceu até que um rei tributário (Chimwala no actual distrito
da Marávia) foi classificado com «tio perpétuo».
Este sistema foi tornado extensivo ao clã autóctone Banda, que, como dissemos,
fornecia uma das rainhas, a Mwali. Todos os chefes daquele clã eram classificados
como «filhos» ou «primos»
do
Undi. Nas áreas povoadas
por outros clãs o Undi casava com mulheres
locais e designava como chefes os filhos havidos desses matrimónios políticos. Outras
vezes casava com uma irmã do chefe local, dando-lhe, simultaneamente, uma das
suas irmãs como esposa. Desse modo, ficava o mesmo e os seus sucessores unidos aos Undi como
«primos perpétuos».
Assim procedeu com Xifuka, do clã Lungo, no actual distrito do Zumbo, ao norte do
Zambeze.
Os reis maraves asseguravam a sua hegemonia e a unidade dos
seus domínios por meio de serviços de natureza ritual, espiritual, religiosa, económica
e militar, tais como a concessão de direito à mzinda que permitia as cerimónias
realizadas pela irmandade do nyau, a legitimação da investidura de chefes subordinados,
o exclusivo legal de poderes de feitiçaria, a resolução de litígios, a distribuição
de presentes de tecidos
e miçangas adquiridas graças ao
seu
monopólio comercial,
a protecção contra agressões externas, etc. Existiam também dois cultos de larga projecção e independência relacionados com a produção de chuva: o setentrional de Makewana
e o meridional de Mbona.
Os tributos de vassalagem incluíam as penas vermelhas de certos
pássaros, a ponta inferior dos elefantes abatidos, as peles de leão e leopardo e,
enfim, partes comestíveis de outros animais.
No que concerne a estrutura económica, parece que o poder dos reis maraves
se encontrava estreitamente dependente do seu controlo sobre o intercâmbio comercial,
iniciado pelos autóctones séculos antes da chegada dos aristocratas do clã phiri.
Já aludimos aos achados de Nkope, no estremo sul do Lago Niassa, seguramente datados
dos séc. IV e IX. Também pelas escavações de Ingombe Ilede, a 30 milhas a jusante de Kariba,
sabemos que, desde os últimos séculos do primeiro milénio d. C., o marfim era transportado
até à costa, utilizando-se como via de comunicação o rio ou o vale do Zambeze.
E. A. Alpers aventa a hipótese do monopólio comercial dos reis
maraves e a crescente influência portuguesa nos assuntos locais terem sido responsáveis
pelos violentos acontecimentos de 1580: a célebre invasão dos Zimbas, descrita por
Fr. João dos Santos e outros cronistas contemporâneos.
Esses Zimbas seriam súbditos de Lundo,
rei dos Maraves Manganjas situados
ao sul. Esse monarca teria decidido criar, a oriente do Chire, um vasto domínio
pessoal, longe do alcance e das pretensões dos Karongas. Sabe-se que em 1608 o Karonga
Muzura a que já aludimos, auxiliou militarmente
os Portugueses a vencer um dos Mwene Mutapa, conhecido por Gatsi Rusere. Esse Musura, por seu lado, solicitou
posteriormente o auxílio português para derrotar o Lundo.
O início da grande expansão do Karonga Muzura em direcção ao
litoral deve situar-se após a derrota que infringiu ao seu rival Lundo. António
Bocarro, em 1635, observou que o primeiro daqueles monarcas, dispondo dum exército
de 10 000 homens, controlava o imenso território que se estendia até à Ilha de Moçambique
e à povoação de Quelimane, chegando ao ponto de exigir o tratamento de Imperador,
tal como o Mwene Mutapa.
O relato do Padre Manuel Barreto (que após 1660 missionou durante quatro anos no vale do Zambeze) aponta
Karonga como único senhor dos territórios povoados por Makuas e Lomwes.
A. Alpers afirma que no século XVIII o Império dos Karongas já tinha perdido
a sua unidade e poderio. Considera possível que contribuísse para tanto o
monopólio do tráfego do marfim por parte dos chefes ajauas, monopólio que já era
efectivo cerca de 1730. A
feira do Zumbo, fundada em 1714, estaria mais interessada na aquisição de escravos
do que de marfim. Aconteceu por exem- plo, que os Bisas passaram a comerciar com
os Ajauas a maioria do seu marfim, contornando assim o império dos Karongas.
Todavia, há pelo menos três depoimentos setecentistas que ainda
reconheciam grande ascendência ao Karonga. Um foi escrito provavelmente em
1744 pelo Fr.
Francisco de Santa Catarina. Outro é datado de 1758 e deve-se a I. C. Xavier que
diz: «também se acham muitas minas de ferro, no Marave... da segunda vez que fui
enviado ao Imperador Karonga me disse que nas suas terras havia
ouro, prata, cobre, ferro, cristal e outras
coisas». O terceiro foi redigido por um anónimo em 1794 e afirma que
o império marave se estendia da parte nascente do rio Zambeze pelo espaço de 800
léguas.
São convincentes as provas da expansão militar e religiosa, em direcção ao
litoral quer dos Maraves dirigidos pelos Karongas quer dos Manganjas dominados pelos
Lundos.
No extremo norte o régulo Maroro, do Concelho de Porto Amélia, arroga- se
ser directamente descendente dos chefes dos primeiros invasores maraves, em cuja
sepultura ainda se fazem preces rogando protecção
em épocas de calamidade pública. Também
em Namapa se encontraram dois régulos que se consideravam maraves, chefiando grupos
que, segundo J. R. Pegado e Silva, têm costumes distintos sendo a sua língua incompreensível
para os Makuas e não usando os homens qualquer tatuagem. O «Marave de Matibane»
foi submetido em 1645 pelo célebre Manuel de Morais. Significativa é também a tradição
recolhida no
Larde segundo a qual parte dos
primitivos ocupantes seriam Maraves «que não
praticavam a circuncição»
como, na verdade,
acontece entre
esta etnia. Segundo E. Lupi, em Angoche, ainda nos princípios do século, os mais
importantes chefes tribais e clânico macuas se consideravam descendentes dos invasores
ma-rundo. Também em Moebaze sobrevive a recordação duma invasão chefiada por Rondo.
Mello Machado, na sua recente monografia sobre a região de Angoche, concorda igualmente
com a identificação feita entre Zimbas
• Rondos. A memória escrita por um anónimo em 1794 identifica
Maganja com Ruindo. E também notável o nome de Maganja da Costa, nome que sugere
uma ocupação litoral por «manganjas» vindos do interior. Acontece também que as
danças de máscaras
• o culto pluvial de mbona, sito no território manganja, parece terem sobrevivido
na actual Maganja da Costa, segundo apurou T. Price e M. Dias. A. S. Baptista, baseado
no facto dos povos designados por Makuas e Lomwec - e até mesmo os Aquirimas -
insistiram na sua qualidade de «maraves», chega ao ponto de propor que esta denominação
passe a ser-lhes aplicada.
Seja por terem, em benefício de Ajauas e Bisas, perdido o monopólio
do tráfego comercial com o litoral, seja por
qualquer outra razão,
os
Maraves sofreram um processo de fragmentação política que conduziu à formação
de oito sub-grupos distintos. Os principais foram os Manganjas e Nyanjas, concentrados
sobretudo no vale do Chire, e os Chewas, a oeste do Lago Niassa. Entre cada um destes
sub-grupos distinguiam-se diversos chefes independentes com os títulos hereditários de Lundo, Undi, Mekanda,
Kanyenda e Mwaze Kazungo. O seu poder era, no entanto, assaz reduzido como se infere,
por exemplo, da narrativa de Gamito sobre
as dissenções internas do reino Undi.
Quanto aos representantes do grupo marave fixados na costa
oriental do Lago Niassa, A. J. Mazula recolheu, recentemente, a tradição da sua
separação dos reinos subalternos de Kanyenda e Mekanda, dominados respectivamente
pelos clãs Mwala e Mbewe, e, bem assim, das rotas migratórias que teriam seguido.
A partir de 1820, o aumento de procura de marfim, em moda na Europa, e de
escravos para as plantações de Zanzibar, Pemba
• ilhas francesas do Oceano indico, conduziu a um incremento maciço de penetração
arábica no interior, passando as respectivas rotas pelo extremo norte do Lago Niassa.
Nos últimos anos da década iniciada em 1850, as armas de fogo começaram, em crescente
escala, a ser introduzidas na região, tornando-se responsáveis pela intensificação das lutas intertribais e pela
expansão militar dos Bembas. Os Árabes deixaram aos Ajauas, seus aliados tradicionais,
a penetração comercial e as actividades esclavagistas da região, situada ao sul
do Lago Niassa. No capítulo que lhes é dedicado desenvolveremos este assunto em
mais pormenor.
Outra intrusão estranha que provocou
perturbações e sofrimentos entre os povos maraves foi da responsabilidade dos dois
grupos de origem angune, que atravessaram o Zambeze em 1835 e 1839. Mas embora os
viajantes contemporâneos tenham pintado imagens
aterradoras das devastações
provocadas entre os Maraves por árabes, Ajauas, Angonis, Capitães-Mores e senhores
de prazos, calculando um deles que em 1875 nada menos do que 20
000 escravos
eram transportados anualmente através do Lago Niassa, J. Mocracken é de opinião
que os exageros contidos nesses relatos se devem ao facto das áreas percorridas
pelos viajantes haverem sido ocupadas por comunidades carecidas de organizações
políticas fortes e centralizadas e, portanto, incapazes de oferecerem resistência
às incursões. Já nas tribos que prestavam vassalagem e pagavam tributos aos chefes
angonis, reinava relativa paz e prosperidade. Nas décadas de 1850 e 1860 comerciantes
do Kazembe trocavam cobre e marfim no extremo sul do Lago Niassa.
O chefe chewa Mwaze Kazungo soube aumentar o seu poder e prestígio
aproveitando o controlo que exercia sobre uma das rotas comerciais. Equipou-se com
armas de fogo, bateu os regimentos angonis contra ele enviados entre 1860 e 1870
e, posteriormente, forjou uma aliança militar com o chefe angoni Mbelwa.
No vale do Baixo Chire alguns dirigentes, de superior poder e aptidão, fundaram
pequenos Estados eficientes. Estão neste caso o português Belchior, um antigo escravo
denominado Xibiza e os Kololos trazidos pelo Dr. Kivingstone
da Barotselândia. Mais para
leste prosseguiu a actividade
comercial. Os enviados dos mercadores portugueses tornaram
a percorrer o Zambeze médio para obter marfim e escravos. Em 1850 os Portugueses
reocuparam o Zumbo; os comerciantes ali estabelecidos
parece terem exercido
influência na vida
política da região. Há notícia de lhes caber responsabilidades no assassínio do
chefe Kala Mbuluma, cometido por sugestão dum rival, Até ao fim do século XIX o
baixo Luangua foi favorita «área de caça» para os esclavagistas chikundas, muitos
dos quais mestiços.
O grupo designado por Marave, grupo que, segundo o censo de 1970, compreendia
em Moçambique cerca de 250 000 indivíduos, tem sido objecto de um número invulgar
de estudos intensivos. Destacam-se, entre outros, os trabalhos de T. Price, M. G.
Marwick, J. P. Bruwer, W. H. J. Makumbi, S. Nthara e, mais modernamente, G. T. Nurse,
A. R. Ferreira, I. Linden, H. W. Langworthy e J. M. Schoffellers.
Baseados nesses estudos os maraves têm sido divididos em três sub- grupos
principais:
Nyanjas, com os ramos Nyassa,
Manganja e Nyanja propriamente ditos.
Chewas, com os ramos chefiados
por Mwase, Mekanda
e Undi. Em
Moçambique
são designados pelos nomes regionais de Chipeta e Zimba.
Nsengas, no limite ocidental, muito influenciados
pelos povos Lala-
Lengue, que se estendem pelo actual território da Zâmbia.
CAPITULO VII
GRUPO MAKUA-LOMWE
Este grupo é, sem dúvida, o menos conhecido de Moçambique apesar
de ser o mais numeroso, pois totaliza cerco de 3 000 000 indivíduos, segundo o censo
de 1970. Os makuas do litoral foram, durante séculos, tão profundamente influenciadas
pelos colonializadores árabes e persas, que se devem considerar como formado um
grupo distinto.
Como já referimos, há fortes
tradições, sólidos vestígios e suficientes referências documentais que conduzem
o defender o hipótese de nos séculos XVI o XVIII terem sido dominados e
unificodos por invasores maraves, comandados por monarcas conhecidos pelos títulos
reais de Lundo e Karonga.
Recentemente, G. T. Nurse, usando o moderno técnico linguística conhecido
por glotocronologia, e, ainda os provas fornecidos pelo arqueologia, pelo tradição oral e pelos antigos
documentos portugueses, apresentou o seguinte
hipótese sobre o
povoamento e os migrações bantos que se
verificaram no vasta região enquadrada pelo Oceano, o Logo Niassa e os rios Chire,
Zambeze e Rovuma.
Entre os anos 800 e 1000 d. C. acentuou-se gradualmente o separação dos dois principais
ramos em que,
já
depois do trovessio do Rovuma,
se dividiam os proto-makuas: o do norte e
leste veio a dor origem aos modernos Makuas;o do sul e oeste, composto por Lomwes
e Lolos, dirigiu-se ao Chire e ao Baixo Zambeze, tendo o suo vanguarda formada por
estes últimos, entrando em contacto com componentes do grupo
marave, vindos do região do Congo
através dos planaltos centrais, a ocidente do Logo Niassa. Porte desses Lolos foram
designados por Kokolos pelo ramo mais meridional dos Moroves, os Mongonjos.
Por volta de 1500 os Lolos encontravam-se estabelecidos nos vales do Chire
e do Ruo e na margem norte do Zambeze, espalhando-se os Lomwes propriamente ditos por
toda a vasta
região de terras
altas a leste
da linha
formada pelos Lagos Chirua
e Chiuta e pelos rios Ruo e Lugenda.
Em 1580 sobreveio a terrível invasão dos Zimbas, identificada
pelos modernos etno-historiadores como uma ofensiva militar lançada por um dos Lundos,
reis do ramo manganja dos Maraves, possivelmente com vista a monopolizar as rotas
comerciais com o litoral. Este Lundo conquistador foi posteriormente derrotado,
com o auxílio dos Portugueses, pelo Karonga Muzura, senhor do ramo
principal dos Maraves,
que, substituindo-se ao vencido,
conseguiu formar um vasto império que se estendia do rio Capoche (afluente do Zambeze) até ao litoral. Integrados nas suas hostes, os Lolos parece terem tomado parte activa nesta
conquista, que rechaçou Makuas e Lomwes para o interior norte. O nome de Lolo surge,
nos antigos documentos, sob a forma de Bororo e, nas modernas designações sob Soror. Estenderam-se do Chire
a Quelimane.
Em 1667 Manuel Barreto notou que a ocupação dos Bororos atingia
Quelimane e que os
seus chefes haviam
sido submetidos, à força,
pelos Maraves. O próprio nome Chuabo dado
à população da Baixa Zambézia, sendo de origem marave e dado pelos Lolos, revela
que se radica num ramo que obteve identidade étnica distinta em data relativamente
tardia, quando os Portugueses já haviam entrado em contacto com povos que falavam
uma língua marave.
Alguns grupos Tolos devem ter alcançado a actual área do distrito de Porto
Amélia, onde sobrevive uma tradição duma aristocracia conquistadora oriunda do Lago
Niassa e ascendente de um dos principais régulos da região, Maroro.
Com a decadência do Império Marave, tanto Makuas como Lomwes
e Lolos regressaram paulatinamente à sua estrutura clãnica e tribal, voltando a
expandir-se pelas regiões de onde haviam sido expulsos.
Os Lomwes foram, durante muito tempo, considerados com menosprezo
pelos outros nativos, nomeadamente pelos Nyanjas e Ajauas. Este facto levou este
grupo a quase completa segregação e a manutenção de costumes característicos. Por
receio dos ataques de outros grupos melhor organizados e
para fugirem às razias
dos caçadores de escravos
a
soldo dos Árabes, refugiaram-se nas densas florestas do Namarroi
e do Lugela e nas escarpas dos montes Namuli, onde atingiram tão grandes densidades
populacionais que os seus efeitos ainda hoje são reconhecidos pelo desaparecimento
da floresta primária.
Todos os Lomwes manifestam sentimentos de especial
afecto pelos Montes Namuli que são considerados como berço
da Humanidade, ali existindo as pegadas dos primeiros seres humanos.
F. A. Vieira relata a existência
nas margens do Lago Chirua de locais que, embora abundantes em peixe, são
supersticiosamente
evitados pelos pescadores. Segundo a tradição, existiam
ali outrora povoações lacustres construídas pelos nativos como defesa contra os
caçadores de escravos.
Soares de Castro recolheu no Larde a tradição de que os Árabes, parece que
devido à hostilidade dos Maraves, deixaram
de frequentar os portos de Moma. Aproveitando a expansão dos Lomwes e
o seu interesse na manutenção de relações comerciais com o exterior, os Árabes forneceram-lhes
as armas de fogo com que conseguiram expulsar definitivamente os Maraves. O chefe
vence- dor, Nampama, iniciou, na verdade, um proveitoso tráfego mercantil trocando
vestuário, ornamentos, pólvora e armas brancas e de fogo por escravos, marfim, mel,
cera e borracha.
A partir de meados do século XVIII
o crescente aumento de tráfego comercial com o exterior provocou importantes transformações
sociais, políticas e económicas. A ele se deve a introdução de armas de fogo, a
caça intensiva de elefantes para obtenção de marfim
e
as lutas inter-tribais para captura
de escravos destinados à
exportação. Desenvolveram-se unidades políticas fortemente centralizadas e
dominadas por chefes poderosos que viviam funda- mentalmente do
monopólio do comércio externo e da venda de escravos. Contudo, esta transformação ainda é
mal conhecida.
Cerca de 1850 a pressão exercida pelos
Makuas-Lomwes forçou grande parte dos
Ajauas meridionais a
buscarem refúgio na região
sita nas proximidades da ponta sul do Lago Niassa,
chegando até Milange.
Segundo S. D. Rafael, eram de origem nyanja os povos que até
1860 habitaram a região de Milange. Na década iniciada por aquele ano, devido a
dissidências políticas e também à pressão dos Makuas começaram os Ajauas a penetrar
na região, chefiados por Matipuire e M'tiramanja que se lançaram em constantes incursões com vista a obterem escravos para venda
aos árabes. Esta actividade, aliada às devastações dos Angonis, reduziu drasticamente
a população local. Apenas em 1890, após a efectiva ocupação portuguesa, se iniciou o repovoamento da região por imigrantes
de origem lomwe. Mas a grande migração de
Lomwes em direcção ao Malawi iniciou-se entre 1897
e 1907, quando a vasta região que habitavam
foi definitivamente ocupada pelas forças portuguesas. Em 1921, 1931 e 1945 o número
de Lomwes recenseados naquele país foi de 120 000, 136 000 e 380 000.
L. D. Soka e L. M. Bandawa estão de acordo em dividir o povo de onde são
oriundos em diversos sub-grupos cuja designação afirmam derivar de peculiaridades
geográficas ou de outros atributos específicos: Amanyawa, Amaratha, Alikhuku, Anahito,
Makuwa, Atakhwani, Amihavani, Nyamwello, Mihekani, Malokotera, Amuhipiti, Ameto,
Axirima, Akokohola e Anguru.
O próprio nome principal
procederia de um tipo especial
de solo, conhecido por «nlomwe»,
existente nos Montes
Namuli, considerados como berço do grupo étnico. Mihavani radicar-se-ia
em Mihava, areia, aplicando-se, por conseguinte a habitantes de uma região arenosa.
Ameto adviria de weta, andar, atribuindo-se a gente com hábitos de nomadismo. Atakhwani
significaria
«os que vivem nas florestas».
No que concerne a origem do controverso nome de Anguru, estão em desacordo
aqueles dois autores.
O
segundo afirma que foi
inventado pelos Ajauas para designar os povos limítrofes
que lhes eram estranhos. O primeiro alega ter carácter depreciativo, reservando-o
os altivos Nyanjas autóctones a esses foragidos que lhes vieram pedir guarida protestando
submissão e a quem, por isso, também designavam por akapolo, escravos. De facto
em 1945 o termo anguru foi oficialmente abolido no então Protectorado da Niassalândia.
Dada a homogeneidade cultural
verificada neste grupo, é possível que o
critério
linguístico seja o mais acertado para traçar as suas sub-divisões. A. Pires Prata,
na sua gramática recente, divide o Makua propriamente dito em quatro regiões:
Do Centro (entre os rios Lúrio
e Ligonha, no interior)
De Cabo Delgado (entre os rios Messalo e Lúrio, no litoral) Do Litoral Norte (entre Nacala e o rio Lúrio,
no litoral) Do Rovuma (no vale do Baixo Lugenda).
Quanto aos dialectos propõe
os seguintes:
Lomwe (entre os rios Licungo
e Ligonha)
Meto (no interior, entre os rios Lúrio e Messalo) Chirima (em Malema, Amaramba
e regiões vizinhas) Marrevone (no litoral, entre os rios Ligonha e Larde) Nampamela
(entre os rios Larde e Meluli prolongando-se até
Boila)
Mulai (no distrito de António
Enes)
Naharra (no Mossuril e Ilha de Moçambique) Chaca
(no Erati).
CAPÍTULO VIII
GRUPO AJAUA (YAO)
A etno-história deste grupo foi recentemente objecto de pesquisas
sistemáticas por parte de E. A. Alpers, cujas conclusões aqui resumimos.
Antes das migrações em que se lançaram no séc. XIX quase todos
os Ajauas viviam dentro das modernas fronteiras de Moçambique no planalto entre
os rios Lugenda e Lucherindo. A sua cultura não divergia grandemente da dos restantes
povos matrilineares do norte do Zambeze. Praticavam uma agricultura de subsistência
complementada pela caça e pesca. A metalurgia de ferro foi, segundo a tradição,
introduzida e monopolizada por um clã específico, Chisi, possivelmente imigrante.
Parece terem sido as actividades ambulatórias e mercantis destes peritos na fundição
do minério e na fabricação de instrumentos de ferro que vieram a envolver os Ajauas
em contactos estreitos com o litoral. Apesar da colonização árabe do litoral este-africano
datar do séc. VII, ainda no início do séc. XVI os estabelecimentos aí fundados não tinham desenvolvido comércio significativo
com os povos africanos. Foi, sem dúvida, o impacto económico da ocupação portuguesa
dos estabelecimentos costeiros que veio a desencadear profundas repercussões entre
os povos do interior. Pouco depois da ocupação de Quílua em 1505, os Portugueses
reconheceram a sua fraca utilidade, pois o domínio que tinham estabelecido sobre
Sofala e o respectivo tráfego do ouro, havia arruinado aquele importante entreposto
árabe. Por isso em 1512 decidiram evacuá-lo.
Foi nesta contigência que os habitantes, para poderem sobreviver, decidiram
voltar a sua atenção para o interior. Este movimento coincidiu com o interesse dos
metalurgistas chisi em direcção ao litoral.
Uma observação do Padre Monclaro escrita
sobre Quílua em 1751 já faz referência à aquisição de marfim, mel e cera, em troca
de tecidos, miçangas e ornamentos.
Em 1616, quando Gaspar Bocarro fez a sua célebre viagem de Tete a
Quílua, atravessando o coração
do território Ajaua, o tráfego comercial com o
litoral já
ali se achava firmemente estabelecido. Antes do fim do séc. XVII os Ajauas, devido
à decadência dos estabelecimentos árabes, comerciavam sobretudo com a Ilha de Moçambique,
substituindo-se quase por completo aos Maraves.
Com a queda do Forte Jesus em Mombaça,
nas mãos dos Árabes de Oman, em 1698, inicia-se uma nova era na história do
litoral. Em 1741 a
dinastia Yarubi foi derrubada e a família Bu Saidi foi desenvolvendo crescente interesse
pela África Oriental, transformando
Zanzibar num centro de actividade
importadora e exportadora.
Mas durante a segunda metade
do século
XVII continuou a preponderância
da Ilha de Moçambique, como demonstra o recente estudo de Hoppe sobre a África Oriental
Portuguesa. Os comerciantes hindustânicos dominavam o comércio com o interior, por
intermédio dos Ajauas que levavam as suas actividades mercantis até ao Zumbo e talvez
mesmo até ao rico reino mineiro dos Rozwis, comprando tecidos no litoral em troca
de escravos, marfim, ferro e outros produtos. Apesar da venda de armas de fogo a
Makuas e Ajauas ter sido tornada monopólio do Estado em 1760, os hindustânicos continuavam
a dedicar-se, clandestinamente, a esse tráfico. Há também notícia de rivalidades
comerciais entre aqueles dois grupos étnicos.
Mas já em 1798 F . J. Lacerda notava que
no país Uiza as mercadorias importadas eram adquiridas pelos Ajauas aos Árabes de
Zanzibar em troca do marfim exportado pelo respectivo Kazembe, marfim que, outrora,
transitava pela Ilha de Moçambique. Estas actividades comerciais dos Ajauas aumentaram
durante o domínio do Sultão de Oman, Sayid Said, que em 1840 moveu a sua corte de
Mascate para Zanzibar, desenvolvendo uma numerosa colónia árabe com importantes plantações. Este dirigente encorajou activamente
o estabelecimento de mercadores hindustânicos cujo número em 1860
subia a
5000 e que financiaram
a organização de grandes caravanas ao interior, comandadas por Árabes.
É impossível avaliar quais
os efeitos provocados inicialmente entre os
Ajauas
pelas suas actividades mercantis. O mais que se pode supor é que os
indivíduos capazes de organizar
longas expedições em direcção
à
costa e serem bem sucedidos nos seus
negócios, passavam a auferir maior prestígio. Por conseguinte, subiam as suas possibilidades
de se transformarem em dirigentes de comunidades mais vastas do que a tradicional
matrilinhagem. O aparecimento de grandes chefes ajauas só ocorreu no século XIX
coincidindo com a progressiva intensificação
do comércio esclavagista. Os escravos
tornavam-se um factor importante no sistema político e económico ajaua. Propriedade
pessoal de grandes chefes-guerreiros-comerciantes, serviam para todos os misteres
aumentando a riqueza
e o número
de aderentes do seu senhor.
Segundo Y. A. Abdallah, o chefe Mataka I, fundador da mais importante dinastia ajaua, chegou
a
ter 600 mulheres distribuídas por oito
grandes povoações. Outro grande
chefe
ajaua dentro de Moçambique foi Muwembe. Ambos eles foram visitados por Livingstone
em 1866, descrevendo o mesmo missionário e explorador as grandes aglomerações em
que viviam, as intensas actividades comerciais
que mantinham
com Quilua e as incursões
que realizavam contra os Nyanjas e
Manganjas para obter escravos.
O poder desses e outros chefes ajauas
foi derivado do monopólio
exclusivo que mantinham de actividade comercial e das práticas predatórias e esclavagistas
possibilitadas pelo emprego
de armas de fogo. Sabe-se
que Mataka I criou uma organização estadual
de certa complexidade dispondo de juízes, um comandante-em-chefe e um ministro de
comércio.
Foi a partir de 1850 que os Ajauas se lançaram em vários movimentos
migratórios cuja génese ainda é mal conhecida. Tem-se aventado como causa grandes
pragas de gafanhotos, profundas dissenções internas, ataques dos Angonis dominados pela dinastia
Masseko, pressões exercidas a leste
por grupos Makuas-Lomwes vítimas de terrível
famina, intensificação das incursões para caça de escravos, etc.
O certo é que largas dezenas
de
milhar, em quatro grupos
distintos, emigraram para o actual Malawi,
fixando-se inicialmente, de modo pacífico, no Alto Chire e costa ocidental do Lago
Niassa. Posteriormente envolveram-se em violentas lutas contra
os Nyanjas autóctones e, graças
às armas de
fogo,
submeteram parte
deles e expulsaram os restantes para o Baixo Chire. Outro grupo também numeroso
atravessou o Rovuma para se fixar no sul da actual Tanzania. Por outro lado o grupo
chefiado por Metarika deixou a margem norte do Rovuma para fugir às constantes incursões
angonis e fixou-se nas margens do Lugenda onde Livingstone o encontrou em 1886.
A cultura tradicional dos Ajauas é razoavelmente conhecida.
Tal se deve aos trabalhos de M. Sanderson, H. S. Stannus, L. Mair, W. H. J.
Rangeley, D. M. Macdonald, A. Lunati, Y. B. Abdullah, F. J. Peirone e, sobretudo,
de J. Clyde Mitchell.
CAPITULO IX
GRUPO MAKONDE
Devido às pesquisas intensivas e sistemáticas
realizadas por uma
missão de etnologia chefiada por J. Dias pode
considerar-se a cultura
tradicional dos Makondes como a melhor conhecida em Moçambique.
Sabe-se muito pouco sobre a origem do povo Makonde. A ausência
de organização tribal impediu que se desenvolvesse a consciência colectiva de um
destino histórico comum. Ao contrário do que sucedeu em outros
povos africanos, onde existiu
uma hierarquia de chefes
poderosos, os Makondes
viveram sempre dividido em pequenos grupos familiares, conhecendo apenas a soberania
do seu chefe de povoação.
Só esporadicamente, na zona marginal, parece ter havido chefes
cujos poderes se estendiam a várias povoações. Mas mesmo neste caso é duvidoso que
se tratasse de monarcas ou autênticos chefes supremos.
Tudo leva a crer que os Makondes vieram do sul do Lago Niassa e caminharam ao longo do
Lugenda
até se fixarem nas vizinhanças
da confluência daquele rio com o Rovuma,
nas imediações do Negomano. Essa tradição vem certamente de épocas muito recuadas.
Mesmo que não houvesse dados históricos confirmativos bastava o facto de os Makondes
possuírem uma cultura homogénea, que, em grande parte, representa uma forma perfeita
de adaptação ao ambiente natural, para se ter de admitir uma longa permanência nos
planaltos.
A diferenciação linguística que hoje
existe entre os Makondes da Tanzânia e de Moçambique, e, ainda, entre estes
e os Matambwes, prova que houve um longo processo
de individualização que só foi possível
com o decorrer de algumas gerações. Os próprios
ritos da puberdade (que são uma das instituições sociais makondes
mais importantes a distingui-los de outros grupos vizinhos, como Makuas e Ajauas)
apresentam diferenças notáveis, o que confirma um longo período de evolução social
independente.
Apesar da identidade de condições naturais e da explicação lógica que os Makondes
dos planaltos de aquém e além-Rovuma dão da origem do seu nome, existe um certo
etnocentrismo a impedir
que esse nome
seja generalizado. Assim os Makondes de Cabo Delgado
dizem que os de Macomia são também Andondes (Vandonde). Por sua vez, os Makondes
da Tanzânia chamam Mavia (Maviha) aos de Cabo Delgado, não lhes reconhecendo o direito
à designação de Makondes. Estes explicam que o nome Mavia lhes foi posto por reagirem
brutalmente, usando logo a catana quando alguém os ofende. É evidente que estas
distinções são meras expressões de etnocentrismo, que nada contrariam a origem cultural
básica deste povo. Contudo, o nome Mavia (ou Mawia, Mabiha, Maviha) foi usado pela
grande maioria de autores estrangeiros que se referem aos Makondes de Moçambique.
Por outro lado o Makonde tem uma consciência mais ou menos
perfeita da comunidade de cultura e das suas relações com outras culturas aparentadas,
podendo deduzir-se uma ideia de comum origem pela maneira como perguntam se um indivíduo
pertence a outro povo. Assim consideram aparentados os Andondes, que habitam as
margens do Rovuma, na região entre Mocímboa do Rovuma e Nangade. A língua também
é semelhante, assim como certos hábitos e o uso do botoque (ndona) no lábio superior.
Mas usavam enormes rodelas em orifícios abertos nos lóbulos auriculares, o que os
distinguia dos Makondes. Por sua vez os Andondes do sexo masculino não praticam
mutilações. Alguns dizem que os Andondes foram, outrora, Makondes. É de facto natural
que tivessem modificado muitas das suas características individuais devido ao contacto
com as populações situadas no vale
onde circulavam povos aguerridos
como os Angonis e onde a acção islamizante
penetrou profundamente.
Outro povo que consideram irmão é o dos Matambwes. Outrora
numerosos e fortes foram dizimados pelos Angonis.
Os Makondes apresentam certos traços de cultura, como a escultura em madeira
e o uso de máscaras nas cerimónias da puberdade, que os aparentam com o «círculo
congolês do sul», de Baumann. Além disso, as danças sobre andas, que se observam
nos Makondes de Moçambique e de Newala, aparecem
entre
os Chewas de Moçambique; Zâmbia e Malawi e, também no Congo e na Lunda. De facto,
os Makondes têm outros traços comuns com os Chewas que habitam actualmente uma área
ao sul e sudeste do Lago Niassa que grosso modo, corresponde à região que velhos
Makondes dizem ter sido a sua pátria primitiva. Aos Chewas
devemos juntar os
Nyanjas e
Manganjas. Parece, portanto não oferecer
dúvidas que fizeram outrora parte do Grupo Marave.
Os Makondes não se recordam de
ter tido guerras com qualquer povo, desde essa remota partida do Lago Niassa. Dizem
que quando chegaram aos planaltos estes estavam desabitados, mas ignoram se as baixas
estavam ou não povoadas. Alguns ainda hoje mencionam que seus avós falavam na existência
de homens anões. Mas ignoravam onde e como viviam, apenas garantindo que habitavam
fora do planalto. Mas se por estas tradições nada podemos concluir, há outros factos que
nos fazem aventar a hipótese de os Makondes terem deparado com povos no seu caminho e de se
terem em parte miscigenado com eles. Encontram-se indivíduos que, pela estatura
pigmóide e pelas feições, se distinguem dos restantes. Embora misturados com outros
elementos étnicos e integrados na cultura makonde esses
exemplos permitem acreditar
na preservação de um substrato pigmóide
anterior à ocupação makonde.
Os Makondes olhavam para os Makuas com sobranceria, como povo que nunca temeram
e que serviu de pasto às suas razias e incursões para captura de escravos. O desejo
de formar lares políganos, preocupação dominante dos Makondes, aliado à necessidade
de entregar escravos, para satisfazer as penas impostas em casos
de
crime de morte, obrigavam a
incursões em território makua. Outros também se dedicavam a
tais aventuras por mero gosto, pelo desejo de adquirir prestígio capturando inimigos.
Os Makuas jamais se aventuravam no planalto pois temiam a violência dos ataques
de retaliação.
Segundo a tradição, em determinada
época, os Makondes, receando que os Ajauas constituíssem um perigo, juntaram-se
em grande número, reunindo gente de várias linhagens e foram atacá-los nas terras
baixas, infringindo-lhes grandes perdas
e obrigando-os
a debandar.
Esta informação pode possivelmente
relacionar-se com a primeira migração de Ajauas de Moçambique
para Masasi,
por volta de 1850. Teriam sido primitivamente expulsos do seu país, entre Mataka
e Unangu, pelos Angonis Masekos. Os Makuas destroçaram- nos, então, dispersando-os
uns para o norte, para Masasi, outros para sudoeste do planalto dos Makondes elo
Tanganhica e outros pelas margens do Baixo Rovuma. É muito provável que nessa altura
os Makondes se vissem obrigados a intervir, contribuindo para essa dispersão dos
Ajauas. É até de admitir que os ataques atribuídos aos Makuas se devessem aos Makondes.
Foram os Gwangaras e os Mavitis
os grupos Angonis que mais influenciaram as populações do vale do Rovuma, com as
suas constantes investidas. A desorganização que causaram nas populações aí fixadas
foi espantosa. Alguns grupos foram exterminados ou dispersos. Os Matambwes, que,
segundo Livingstone,
constituíam em 1866,
um grupo numeroso,
estendendo-se as suas aldeias por uma vasta área, estavam praticamente dizimados
em 1882, quando Maples passou com a sua expedição através desta região.
Os Makondes do Tanganhica também não foram capazes de resistir aos ataques
dos Angonis Maviti e tiveram de se refugiar na costa ou em algumas ilhas do
Rovuma. Isto mesmo fizeram os Matambwes sobreviventes, chegando alguns a ter palhotas
nas duas margens do rio, aproveitando-se da superstição que limitava aos Angonis
a travessia de grandes cursos de água.
Os Makondes de Moçambique conseguiram sempre escapar a estas investidas, em
parte pela sua agressividade em frente do inimigo, mas sobretudo pela magnífica
situação defensiva do planalto, com escarpas alcantiladas para o norte, sul e oeste
e pelo matagal espesso e impenetrável que resulta do bosque secundário, depois de
a floresta primitiva ser destruída. Além disso os Makondes souberam tirar partido
das condições naturais, escondendo as suas aldeias nos lugares mais densos do mato e tornando os carreiros de acesso
autênticos labirintos onde qualquer estranho se perdia. O mato
cerradíssimo servia de protecção. Mas, para maior segurança, todas
as aldeias se tornaram lugares fortificados, cercados por paliçadas bem concebidas,
com uma ou duas entradas trancadas. Além disso, entre o mato circundante abriam
muitas covas, dentro
das quais colocavam
estaquinhas pontiagudas, disfarçadas com capim ou ramagens, de maneira a ferir profundamente
as plantas dos pés dos que se aproximassem descalços, sem conhecerem as veredas seguras. Os Angonis tentaram por várias
vezes, mas em vão, invadir o planalto.
Este sistema defensivo não visava apenas os inimigos do exterior, mas também os próprios vizinhos, pois, antes da ocupação
portuguesa, os Makondes,
como se referiu, frequentemente se guerreavam mutuamente.
Segundo as reminiscências de alguns velhos, em épocas
remotas os Makondes dedicavam-se à caça, porque nessa altura
as planuras não ofereciam perigo. Caçavam até mesmo elefantes, usando armadilhas
ou organizando grandes batidas colectivas. Depois, essas actividades venatórias
longínquas deixaram de oferecer segurança, já que os caçadores de escravos ao serviço
dos árabes se tornaram em ameaça constante. Mesmo em deslocações aos centros comerciais
do litoral para vender borracha ou adquirir panos, ferro, espingardas e pólvora,
tinham de se organizar em grupos armados capazes de se defenderem de qualquer emboscada.
Com a chegada dos Angónis e com as suas razias constantes,
a situação piorou e os Makondes cada vez se isolaram mais no seu planalto, donde
só saíam em fulminantes incursões às tribos vizinhas, para apanhar mulheres. A sua
agressividade e isolamento acabaram por lhes grangear a fama de invulnerabilidade,
ninguém se atrevendo a penetrar no seu território.
O amor à independência
e a
violência com que se defendiam
contribuíram para que os Makondes se mantivessem até aos princípios dos século XX relativamente fechados à influência
do exterior.
Como notou o Prof. Jorge Dias, o isolamento tem uma acção arcaizante e individualizadora,
da mesma maneira que os contactos e o convívio contribuem para a uniformização de vastas áreas. O isolmento dos Makondes
de Moçambique contribui para os
diferenciar dos Makondes do Tanganhica, dos Matambwes e possivelmente dos Andondes,
mas é natural que, num passado mais ou menos remoto, tivessem sido um único povo.
CAPÍTULO X
GRUPO NGUNI ANGONIS (NGONI)
Depois de Chaka ter derrotado definitivamente os Ndwandwe em 1818 ou
1819. N'qaba,
parente agnático do monarca vencido, buscou refúgio, com seus súbditos, nas terras
de
Ngwana, chefe do
clã Maseko. Este, por
sua vez, temeroso das represálias de Chaka, decidiu
partir com o seu povo, em direcção setentrional. Y. M. Chibambo e Margaret
Read referem-se às arreigadas
tradições que recolheram entre os actuais grupos angonis
garantindo a sua origem swazi. O estudo comparativo dos clãs
- tal como são enumerados por Bryant e H. Kuper - permite afirmar a relativa veracidade
dessas tradições. Na sequência de recentes investigações de campo efectuadas na
região que se estende entre a fronteira sul de Moçambique e o rio Hluhluve, G. Nurse
aventa a hipótese de N'qaba, ao partir da enseada de Santa Lúcia, levar consigo
aderen- tes dos clãs m'ngomezulu, zulu, nguenya, maga gula, maxabana, mgabi, maguagua,
xulo, mbonambi, nthombeni e malinga, clãs que se encontram simultaneamente entre
os angonis e os ndwandwes.
Ngwana, ao deixar, com o seu povo, o território ancestral,
parece haver- se dirigido, directamente, para o país Venda, onde se estabeleceu
durante dois anos até ser expulso pelo grupo chefiado por Zwanguendaba. Encaminhou-se,
mais uma vez, em direcção ao Norte. Há provas suficientes da sua passagem por Fort
Victoria, Manica e Mbire, a sudeste de Salisbúria. Aqui foi pela segunda vez atacado
e obrigado a retirar pelas forças de Zwanguendaba. Penetrou no território moçambicano,
sendo-lhe atribuído o massacre dos habitantes da feira de Macequece, em 1832, que se defenderam com balas de ouro. Já sob o comando do regente
Magadlela, reen
controu N'qaba na região da Gorongosa e, juntando as forças,
con- seguiram ambos infringir pesada derrota a Zwanguendaba, em 1834 ou 1835,
algures
entre Manica e Salisbúria, levando-o a atravessar
• Zambeze nesse último ano. Os dois aliados separaram-se amiga- velmente,
preferindo muitos dos representantes dos clãs supracitados seguir os chefes masekos.
O regente Magadlela e os seus súbditos estabeleceram-se durante cinco anos
no Báruè. Quiteve
e Quissanga foram assoladas.
É
possível que a centenária dinastia Chikanga de Manica haja também
sucumbido perante estes ataques, sucedendo-lhe
a
dinastia Mutassa. De qualquer
modo, a feira
de Manica foi abandonada em 1835.
Depois de 1836 raziaram as terras do Mwene Mutapa Kandi, na Chidima e
Chicoa. Devastaram também a região ao norte do Púngoè, sobretudo as áreas povoadas
pelos Bargwes, Makombes, Nyungwes e Zuzuros. Em 1838 ou 1839, fugindo a uma grande
estiagem,
• mesmo
grupo, então sob o comando de outro regente, Mgoola, atravessou, por fim, o Zambeze
entre a Lupata e o Sungo.
S. Alberto - baseado em documentos oficiais contemporâneos
expedidos pelo Comandante de Tete - afirma que se dirigiram directamente para o
actual planalto da Angónia. Ê de supor que, informados sobre a fertilidade, as chuvas
regulares, os bons pastos
• a existência de gado naquela região, tenham tomado tal decisão
justamente para fugirem aos catastróficos efeitos da prolongada estiagem que sofreram
no vale do Zambeze.
Parece haverem-se fixado no
planalto apenas durante cinco anos, de
No país Ntumba, que foi ocupado, Mputa, filho de Ngwana, ascendeu finalmente
ao trono.
Enriquecidos com bastantes elementos de origem ntumba, atravessaram
o rio Chire, perto de Fort Johnston. Cruzaram
o país dos Ajauas, no actual
distrito do
Niassa, penetrando de seguida na actual Tanzânia, até a Songea, próximo das nascentes
do Rovuma. Daí lançaram incursões que atingiram o Lago Victoria e a cidade arábe
de Quilua.
Posteriormente chegou à região um segundo grupo, também enquadrado por Angunes,
grupo conhecido por Gwangara e que tivera a sua origem nas segmentações sofridas
pelos migrantes que haviam partido da terra natal sob o comando de Zwanguendaba.
Até cerca de 1858 fora este segmento comandado por Zulu-Gama, data em que a chefia
foi assumida por Mbonani.
Aliando-se temporariamente, os dois grupos conseguiram bater
as forças enviadas por Mwombera em perseguição do dissidente Zulu-Gama. Depois,
reconhecendo a superioridade de Mputa,
colocaram-se sob o seu comando. Porém,
este monarca, que nenhuma confiança tinha nos seus novos aliados, mandou matar,
à traição, vários indunas e o próprio Mbonani.
Os Gwangara, calando o seu ódio, aguardaram que surgisse o momento propício
para exercerem vingança. Um dia, quando Mputa e o seu regimento foram batidos durante
o ataque lançado contra uma tribo Ruhaha, vieram, imprudentemente, procurar refúgio junto dos Gwangara. Estes não
deixaram perder aquela oportunidade para chacinarem o aleivoso monarca e todo o
seu séquito.
Sabendo-se que Mputa foi cremado junto do rio Lichiningo, em Songea, é de
aceitar a versão segundo a qual os Gwangara conseguiram convencer o grupo chefiado pelos Maseko de que o seu inkosi
fora morto por outros inimigos. O certo é que puderam ultimar sub-repticiamente os preparativos
para um segundo ataque em grande escala. Colhendo então
os seus novos aliados de surpresa obrigaram-nos a bater em retirada e a
atravessar de novo o Rovuma, abandonando muito gado e parte dos cativos recentemente
incorporados nos regimentos.
É após a morte de Mputa que surge o regente Chidyawonga, seu
irmão, regente que conduziu os vencidos, mais uma vez, através do actual distrito
do
Niassa,
batendo os Ajauas em Cavinga e Livonde, vadeando o Chire e estabelecendo-se definitivamente
nas cercanias do Monte Domuè, no território de Moçambique, cerca de 1865.
Esse regente sempre respeitou os direitos de Chikussi à
chefia suprema, visto este haver sido indigitado como sucessor por Mputa, seu
pai, depois de o fazer adoptar pela «casa grande», por ser filho de uma esposa subalterna.
Mas Chifissi, filho do regente, também alimentava
ambições de independência e, baseado no Domuè, ordenou incursões contra Ajauas
e Nyanjas. Chikussi, por seu lado, deslocou-se para Mlangueni, a sudeste, e alargou
os seus domínios pelas terras de Ntumbas, Ambos e Manganjas.
Sabe-se que em 1875 um regimento angoni atravessou o rio Chire e atacou os Ajauas
instalados a oriente,
obrigando-os a refugiar-se nas montanhas.
No ano seguinte outro regimento repetiu a façanha e destruiu todas as povoações
ajauas ao seu alcance.
Em 1884, foram, por sua vez, atacados os Makololos, oriundos
da Barotzelândia, que, depois de deixarem o serviço do Dr. Livingstone, haviam subjugado,
graças às armas de fogo, uma parte da população do vale do Chire. Para evitar que
os invasores atravessassem o rio, tinham construído uma linha de povoações fortificadas
nos locais onde se passava a vau. Vencida, parece que por astúcia, a resistência
de uma dessas povoações, os Angonis saquearam o vasto território onde hoje se situa
Zomba, Limbe, Blantyre e Milange, só tendo retirado a pedido dos missionários britânicos.
A Chikussi, falecido em 1891, por altura do traçado da fronteira
entre Moçambique e a Niassalândia, sucedeu seu filho Gomani, o qual, auxiliado por
um chefe ajaua, conseguiu dois anos depois expulsar Kacindamoto, sucessor de Chifissi,
para a margem do Lago Niassa, compartilhando o governo da região do Domuè com seu
irmão mais velho, Mandala. As repetidas incursões que lançava contra os povos sob
protectorado da Inglaterra, levaram à sua derrota e fuzilamento em 1896, por uma
expedição britânica, quando recusou submeter-se à humilhação de marchar ao lado
dos cavalos dos seus captores. A sua avó Namlangueni passou a compartilhar o governo
juntamente com Mandala. Em
1898 este
pediu o auxílio das autoridades portuguesas de Tete
contra uma incursão britânica que,
efectivamente, retirou perante as forças comandadas pelo tenente Francisco Augusto Trindade,
das quais faziam parte os chikundas do último Caetano Pereira, cognominado «Chinsinga».
Para evitar a recrudescência do poderio angoni o 2.° tenente da Armada Real,
António Júlio de Brito, quando ocupou definitivamente a região, decidiu afastar
temporariamente dos seus antigos domínios todos os cinco filhos de Chikussi. Três deles,
incluindo Mandala, faleceram durante a deportação. Rinze ou Zintambira, após o
seu regresso, foi nomeado régulo das terras onde havia residido seu pai, embora
sem autoridade legal sobre os restantes chefes.
As duas derradeiras vezes em
que os
regimentos angonis de
Moçambique foram
mobilizados como forças activas de combate ocorreram em
1902
durante a campanha contra o «Chinsinga» e em 1917-1918
durante a revolta dos monarcas Makombes do Báruè
que se alastrou
pela Chicoa e
Zumbo.
Para repetir o sumário de Margaret Read distinguem-se quatro
elementos na composição étnica dos Angonis do Malawi e Moçambique:
a) os descendentes dos dois grupos vangunes partidos do Natal após a derrota
sofrida por Zwide em 1818 ou 1819;
b) os descendentes dos Tsongas e Karangas que entre o Natal e o Zambeze se
agregaram aos núcleos originais vangunes;
c) os descendentes dos incorporados durante as migrações ao norte do Zambeze,
sobretudo do extracto Ntumba e Tengo;
d) os descendentes das tribos submetidas que habitavam o território
onde os Angonis se estabeleceram definitivamente (Tumbuka, Henga, Chewa, Bemba e
Ajaua).
Características da cultura angoni podem
encontrar-se não apenas nos elementos a)
e b) mas também entre as famílias do grupos c) cujos ascendentes
varões foram incorporados nos
regimentos e casaram com mulheres dos grupos a) e b).
O IMPÉRIO DE GAZA
Sochangana ou Manukusse:
Teixeira Botelho aventa a
hipótese de Sochangane e
Mzilikazi serem irmãos. Pertenciam
ambos, pelo menos, ao Estado Ndwvandwe chefiado por Zwíde, a seu lado lutando contra
Dinguisuayo.
Porém, ao contrário do que aconteceu com Mzilikazi, Sochangane
permaneceu leal a Zwíde até à derrota que este sofreu perante Chaka, no rio Mhlatuze,
em 1818 ou 1819.
Do mesmo modo que N'qaba e Zwanguendaba partiu para o Norte, acompanhado pelos
seus parentes e aderentes. O Padre Daniel da Cruz alude a um total de 3000 famílias,
o que nos parece manifesto exagero. Ia, pelo menos, acompanhado pelas viúvas de
seu pai, por quatro irmãos e por algumas das suas esposas. Teria, nesse
tempo, entre
30 e 40 anos. Na sua genealogia conhecem-se
quatro
antepassados: Mukachua, Mungua Gaza (donde vem o nome
que deu ao seu reino),
Uguagua-Makue e Segone.
Muito embora se
afirme que os invasores eram súbditos de Inkabosa, parece que obedecia a Sochangane
o exército que em 5 de Julho de
1821 invadiu e saqueou
de surpresa as terras do Tembe na margem
sul da Baía. Segundo relatou o Governador
Caetano da Costa Matozo, na nota que redigiu em 11 de Julho daquele ano,
os invasores só se retiraram depois de verem satisfeitas as suas exigências em miçangas
e manilhas de cobre.
Foi entrevistado no rio Tembe, no dia 8 de Outubro de 1822, por oficiais da
esquadra britânica do comandante Owen, que patrulhava a costa oriental da África.
Usava a tradicional coroa de cera e uma pena no cabelo a distingui-lo dos súbditos.
Estava armado de azagaia e grande escudo de pele de bovino. Devido a um mal entendido
os seus guerreiros atacaram, durante a noite, o acampamento britânico mas foram repelidos por
nutrida fuzilaria.
Segundo uma versão, Sochangane permaneceu durante algum tempo
no actual distrito do Maputo,
do mesmo modo
que N'qaba e Zwanguendaba. Embora tivesse autorizado o último
destes chefes vangunes a partir, mandou traiçoeiramente assaltar-lhe a vanguarda.
Os cativos e as manadas foram, no entanto, recuperados pela força das armas por
Zwanguendaba que depois acelerou a sua marcha em direcção ao país venda, através
do vale do Limpopo. N'qaba, aproveitou a confusão para pilhar a Sochangane mulheres
e gado mas depressa foi batido e posto em fuga perdendo tudo aquilo de que aleivosamente
se apoderara. Todavia, na versão de M. M. Motenda, Sochangane e Zwanguendaba teriam
chegado simultaneamente ao país venda, donde partiram em direcções opostas.
Seja como for, em 1826 viu as
suas hostes consideravelmente aumentadas por refugiados que
deixaram o país angune depois da definitiva derrota dos Ndwandwe
então chefiados por Sicunyane,
filho e sucessor
de
Zwide.
Há notícia de que, pouco depois, se transferiu para Kossine entre o vale do
Limpopo e o rio Mezimchopes. Mas, segundo Dioclesiano das Neves, deixou esta região
infestada de tripanosomíases por ter perdido muito gado.
Santos Peixe recolheu nessa mesma área, hoje chamada Magude,
uma tradição algo diferente. Sochangane teria descoberto e punido de morte a traição
de um dos membros da sua nobreza, um tal Chicunyana, da casa de Zigode. Sonfapunga,
irmão do executado, apresentou-se a pedir auxílio a Chaka. Este mandou, então, um
exército comandado por Tchakanyana. Internando-se demasiadamente nas insalubres
terras baixas em perseguição de Sochangana que entretanto deixara a região, foi
acampar na Lagoa Limanzé, no Guijá, cujas águas tornaram os invasores tão doentes
que se viram forçados a bater em retirada.
Quintinha e Toscano também aludem às fomes e doenças que obrigaram
os guerreiros de Chaka a regressar ao país angune. Sansão Mutemba recolheu igualmente
a tradição de se não ter verificado qualquer recontro
em grande escala entre as forças de Chaka e Sochangana. As primeiras, vendo
os seus
intuitos gorados pela retirada
estratégica das segundas, teriam
decidido retroceder caminho num local
ainda hoje denominado
Ka
Chaka, sito na regedoria Chissungue (Chissunguele?) do Caniçado.
Manjobo, que foi induna de Sochangana,
declarou a Gomes da Costa que aquele conseguiria
bater os regimentos
que Chaka mandara
em sua perseguição e que, após este combate, penetrara
no Bilene, estabelecendo a sua povoação em Nonoaquinique.
O certo é que em 1828 o monarca de Gaza teve que enfrentar o exército de Chaka
durante a campanha com que o neurótico e sanguinário déspota pretendera comemorar a morte da mãe.
Parece não oferecer dúvidas que as suas
sucessivas deslocações se deveram ao desejo
de diminuir as probabilidades
de
ser atacado pelos regimentos de Chaka e, posteriormente, de
Dingane. Segundo Junod, os seus guerreiros, para evitarem ser reconhecidos pelas
forças mandadas em sua perseguição, chegaram ao humilhante extremo de se submeterem
às tatuagens dos Tsongas.
É aceitável a hipótese de se haver fixado durante alguns anos
na margem esquerda do Limpopo, provavelmente na região que veio mais tarde a escolher
para sua capital definitiva, Chaimite. É também nesta região, mas na margem direita,
em Chiduachine, que a tradição oral assevera ter construído a povoação sagrada onde
residiam as viúvas de seu pai.
Segundo uma versão foi atacado
por forças
de N'gaba,
vindas expressamente do Norte do Save,
forças que o teriam obrigado a retirar para a margem direita do Limpopo. Este
possível recontro teria ocorrido
no Bilene, segundo F. Toscano.
Mas logo que estas regressaram ao Norte do Save, lançou-se de novo na tarefa de submeter
as tribos autóctones cedo conseguindo a completa vassalagem dos Makuakuas e, apenas em
parte, a dos Chopes.
Talvez em consequência do ataque
ordenado por Dingane
contra Lourenço Marques, da execução do
respectivo Governador Dionísio António Ribeiro em 13 de Outubro de 1833 e da ocupação
pelos Zulos das terras ao sul
do Incomáti
ou simplesmente para se
vingar da humilhante derrota que lhe
infringira N'gaba anos antes, Sochangana mais uma vez decidiu partir. No seu caminho
em direcção norte invadiu
em 1834 as
Terras da
Coroa, em Inhambane. Saiu-lhe ao encontro
o Governador, comandando os residentes, a gente de armas e os auxiliares nativos
de que dispunha. Esses 280 homens, na maioria moradores, foram massacrados num combate
travado além do rio do Ouro. Atravessando o rio Save, Sochangane atacou e
derrotou N'gaba, em 1836 ou 1837, no actual território da Rodésia, perto da fronteira
com o Distrito de Mossurise. Permaneceu na região apenas dois ou três anos tendo
decidido regressar ao vale do Limpopo devido
a uma epidemia de varíola que dizimou os seus súbditos. É provável que seja responsável
pelo massacre da coluna de boers que se dirigia a Lourenço Marques, massacre que
procurou compensar com 300 cabeças de gado. Parece ter sido nesta altura que resolveu
assumir o cognome de Manukusse.
Em 1840 já se encontrava na sua nova capital em Chaimite quando
recebeu C. S. Pinto, emissário do Governador de Inhambane. Sobre o primeiro monarca
de Gaza diz esta testemunha ocular, quando por ele foi recebido no curral de gado
e obrigado a sentar-se sobre o estrume:
«Pouco tempo depois entrou Manicuras, tendo por distinção aos
outros nos vestuários, o não trazer mais que uma mancha de tinta encarnada no peito
e de branca em um dos ombros, dois fios de miçanga preta à roda da cintura e um
círculo formado com os cabelos na cabeça.»
Em 1842 um dos seus tindunas, denominado Matchecuane, atacou os Nkunas que
haviam fugido do vale do Limpopo para procurarem refúgio entre os boers no Transvaal
Norte.
Nesse mesmo ano tornou a mandar parte do exército ao norte do rio Save. A
vassalagem do território foi rápida e pacífica devido ao terror com que ainda eram
lembradas as devastações dos anteriores grupos vangunes.
Há notícia de que em 1842 os
seus regimentos devastaram os prazos de
Sofala e sujeitaram
a tributo o próprio estabelecimento português. A partir de
1844
os tindunas do Império de Gaza passaram a visitar todos os anos, após as
chuvas,
a região dos prazos ao Sul do Zambeze, exigindo tributos aos senhores e aos habitantes
livres. Os documentos portugueses fazem alusão à presença, nesta região e nesta
época, de Muzila, o sucessor de Manukusse.
Defendido pelo interior, de qualquer ataque dos boers - cujos cavalos não
sobreviviam à mosca tsé-tsé - Manukusse limitou-se a consolidar o seu império e
a expropriar o armentio autóctone.
A acreditar no relato de Erkine incitou os Dondulis, uma tribo
tsonga do vale do Rio dos
Elefantes, a repelir
uma força de
guerreiros de Mzilikazi
obrigada pelos boers a bater em retirada. Como prémio da bravura que então demonstraram,
isentou-os do pagamento de qualquer tributo. Foi possivelmente para evitar incidentes
como este que os dois inkosis realizaram o acordo de fronteiras que já referimos.
Em 1853, a
escassa área sob domínio do Governo de Inhambane era apenas habitada por 30 000
(Bi)-Tongas. O conquistador delegou em seus filhos a governança dos territórios mais longínquos e mantinha relações amigáveis com Swazis, Ndebeles
e Portugueses, recebendo embaixadas de Sena, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques,
vila que não via motivos para hostilizar pon- derando, talvez, os benefícios que
para os seus súbditos advinham das trocas comerciais. Sabe-se que por duas vezes
se vangloriou perante visitantes que pessoalmente não sentia
qualquer interesse pelos
artigos trazidos do litoral. Limitou-se, na verdade, a reduzir
• vassalagem e ao pagamento de um tributo anual os dispersos
prazos e estabelecimentos portugueses.
Faleceu em Chaimite no ano
de 1858.
A guerra civil entre Muzila
e Mawewe:
Obscuras são as causas da terrível guerra civil em que, após a morte de Manukusse,
se envolveram os seus dois filhos Mawewe e Muzila. O certo é que o primeiro era
indivíduo praticamente desconhecido, a quem, ao que parece, jamais haviam sido confiadas
responsabilidades governativas. O contrário acontecia com Muzila que, após seu pai haver partido do Mossurize,
provavelmente
em 1840, para estabelecer definitivamente a capital real em Chaimite, foi mandado
reocupar as terras ao norte do Save, terras que governou como senhor quase absoluto
desde 1842 até à morte do velho Manukusse.
Nas fontes escritas reina a maior confusão sobre o acontecimentos a que nos
reportamos.
Lança alguma luz um depoimento válido e inteiramente baseado na tradição oral, feito
por
Alberto Munane Sibia, natural
do
Distrito do Baixo Limpopo e neto de um oficial, phini, de
Mawewe, de quem, quando criança, ouviu a versão que se segue.
Manukusse, quando transferiu
a sua capital
do norte do
Save para
Chaimite
(Txhayimithi) teria trazido consigo alguns vandaus
• entre estes a sua primeira mulher, mãe de
Muzila, cujo lobolo
• monarca pagara. Mas a «mulher do país», cujo lobolo fora
pago pelo povo, era uma princesa swazi da dinastia real dos Dlamini, como tal cabendo
a seu filho Mawewe a sucessão ao trono de Gaza.
Pelo direito consuetudinário tsonga a sucessão cabia a Muzila, por ser mais
velho e filho de esposa mais antiga. Já pelo direito angune era Mawewe que deveria
suceder.
Além disso, este último teria sido criado com os avós na Suazilândia,
não gozando de especial afeição por parte de Manukusse, nem tão pouco de popularidade
entre os Tsongas,
que o acusavam
de «desnacionalizado». O inkosi também demonstraria
preferência pela mãe
de Muzila, mais diligente,
afectiva e simpática do que as arrogantes e ociosas rainhas de origem angune.
Morto Manukusse e empossado Mawewe, de harmonia com o direito
sucessório da minoria conquistadora, logo o novo inkosi iniciou cruéis perseguições
contra seu irmão e respectivos correligionários. Foi por isso que Muzila se refugiou,
com muitos tsongas, junto de João Albasini.
O governo despótico de Mawewe cedo desagradara aos súbditos. Muzila, atento
a esse descontentamento popular, teria gizado
um plano de regresso, com o auxílio do régulo Kossa, de Magude. A primeira batalha
que se travou teve lugar entre Chinhanguanine e Maholela, dela saindo derrotado
Muzila. Sem
desanimar, asilou-se em L. Marques, reorganizou as suas forças e tornou a enfrentar
o irmão, desta vez
com sucesso, numa segunda
batalha entre o rio
Matola e a Moamba. Mawewe,
vencido, refugiou-se na Suazilândia.
Julgando consolidado o seu poder Muzila teria regressado ao
Norte do Save, na área do antigo posto administrativo de Machaze, onde nascera,
«a fim de restaurar a povoação de seu pai».
Mawewe, ciente da ausência do irmão e rival, invadiu de novo o sul de Moçambique,
à testa de um exército swazi. Veio no entanto, a sofrer a sua derrota final nos
campos do Intimane, exilando-se definitivamente para a Suazilândia, onde faleceu
em 1879.
A. Cancelas coligiu cerca de 1960, no Concelho do Bilene, a
tradição de que a batalha em que Mawewe foi definitivamente derrotado se travou
nas poximidades da Lagoa Chinanga, hoje na área da regedoria Uanjuculana, do Concelho
do Baixo Limpopo. A. C. Myburgh por seu lado, indica 1872 como data de falecimento.
Os documentos oficiais portugueses comprovam parcialmente a versão de A. Munane
Sibia.
É sabido que, em 1 de Dezembro de 1861, Muzila se apresentou no presídio de L. Marques a solicitar auxílio militar,
em troca de submissão à Coroa de Portugal. Compreendendo a importância do acontecimento, o Governador Onofre Lourenço Duarte não hesitou
em fornecer o socorro pretendido, tanto mais que Muzila
vinha recomendado
por João Albasini. Das condições acordadas se lavrou uma acta, posteriormente
aprovada pelo Governo Central.
Organizou-se então um corpo constituído pela guarnição, moradores
de prestígio e guerreiros das Terras da Coroa, corpo que, junto dos regimentos de
Muzila e Magude totalizava 16 000 homens. No dia 16 de Dezembro de 1861 travou-se
uma batalha, perto do rio Limpopo, em que o exército de 50 000 homens reunido por Mawewe foi destroçado
pela cerrada fuzilaria das armas distribuídas aos caçadores de elefantes. Devemos
a Diocleciano das Neves
• relato, talvez exagerado,
desta batalha e bem assim, do
grandioso
festival de purificação mágica
do exército e dos_ guerreiros que haviam morto inimigos.
Muzila deslocou-se ao Bilene
em princípios de 1862
para marcar presença. Mas seu irmão, graças mais uma
vez a alguns regimentos cedidos pelo sogro,
conseguiu de novo
batê-lo e obrigá-lo
a
retirar em direcção à Mussapa.
Porém, Muzila logo retrocedeu e, sempre com o auxílio
do Governador Onofre, infringiu outra
derrota às forças do seu irmão, nos campos da Moamba, em 17 e 20 de Agosto de 1862
forçando-o a refugir-se de novo nas terras do sogro ou cunhado.
Finalmente Muzila, em 1863, decerto
com o auxílio não só das forças vindas das Terras da Coroa como também do exército
privativo de João Albasini como é
sugerido na cronologia
de Chinangana, conseguiu
derrotar definitivamente Mawewe,
nas margens de Mezimchope.
Todavia, ume, carta contemporânea permite conhecer que Mawewe,
auxiliado pelos Swazis e pelo régulo da Moamba, ainda invadiu e saqueou por mais
três vezes as Terras da Coroa, apoderando-se de muito gado, marfim e fazendas e
chegando ao arrojo de ameaçar o presídio.
Erskine confirma que os regimentos swazis tentaram
por três vezes,
auxiliar Mawewe a reconquistar o poder. Durante a terceira tentativa foram tão elevadas
as baixas que
sofreram por sede
e
doenças tropicais que se recusaram
a voltar a assisti-lo. Myburgh recolheu idêntica tradição. Repetiu-se, pois, o
fracasso da expedição enviada em 1823 por Chaka contra Sochangana.
Diocleciano das Neves afirma ter intercedido, junto do rei Mswati, para cessar
o auxílio militar a seu genro ou cunhado e esclarece:
«Finalmente, uma embaixada do Muzila, portadora de importante
quantidade de marfim, foi ao Mussuate com um recado nosso, e a guerra terminou para
sempre. O certo é que já antes da morte do rei swazi ocorrida em 1868, haviam cessado
as tentativas de Mawewe para re- cuperar o trono.»
Dispomos, felizmente, de uma investigação valiosa sobre o território concedido
pelo rei swazi a Mawewe e sobre a descendência que ali deixou.
Esse
território chamava-se Ntabenezimpisi e Nhlanguyavuka, compreendendo toda a parte
oriental do actual
distrito de Barberton.
Ali
estabeleceu várias capitais distritais,
sendo conhecidos os nomes de onze dentre eles. O mesmo autor conseguiu identificar
cinco das suas esposas e respectivos filhos. Teria falecido cerca de 1872 na
povoação de Kwa-Shayaza, no distrito de Piggs Peak. Radicam-se na sua genealogia
os chefes das comunidades tribais designadas pom Mkhatjwa (de Miyomo e de Mbambiso).
É interessante notar que o território chope pouco foi afectado
pela implacável guerra civil. Um significativo testemunho é, a esse respeito, fornecido
por Erskine que em 1871 deparou já povoada uma região do vale do Limpopo que em
1868 se encontrava deserta. O chefe local Intxi-Intxi, informou-o que durante oito
a nove anos estivera refugiado entre os Chopes, os quais, a título de retribuição,
lhe haviam exigido todo o gado que possuía.
Muzila:
Também designado nos documentos escritos, por Mzila, Muzira, Mugira. Muhlanga afirma que o seu verdadeiro nome era Chibakuza.
A. M. Cardoso informa, por seu lado, que tomou o nome de Inhamanda depois de vir
do Transvaal.
Quando seu pai regressou ao vale do Limpopo para estabelecer
em Chamite a capital do reino de Gaza, Muzila foi mandado completar a ocupação da
região entre os rios Save e Zambeze, região que governou como senhor quase absoluto
desde 1842 até à morte de Manukusse, ocorrida dezasseis anos depois. É mencionado
por João Julião da Silva logo em 1844, ano em que os Angunes de Gaza, parece que
pela primeira vez, cobraram tributos nos prazos ao sul do Sena, Muzila, vencida
a longa e sangrenta guerra de sucessão que travou com seu irmão, dedicou-se, por
algum tempo, à reorganização militar e administrativa dos territórios ao sul do
Save, após o que voltou a fixar-se na cordilheira montanhosa que, ao sul do rio
Buzi, se estende de ambos os lados da fronteira entre a Rodésia e Moçambique. Parece
ter construído a sua primeira capital na área do actual Posto de Chibabava. Mudou-se
posteriormente para locais que baptizou com os nomes de Mandlakazi e Tchametchame.
Em 1872
Erskine mediu
assem as coordenadas da sua capital: 20° 23' lat. sul e 32° 30' long. este. Parece
que em 1874 se transferiu para Buchanibude, 14 milhas ao sul do Monte
Selinda. A sua última capital, aquela onde faleceu, em 1884, tenha o nome de Moiamuhle.
O missionário Depelcline passou nas suas proximidades em 1880. Parece ter sedo Tchametchame
que possuía o nome angune de Ndwengo, e que passou a ser reservada às suas viúvas,
revestindo por conseguinte carácter sagrado.
As relações hostes que durante alguns anos manteve com o reino swazi devido
ao auxílio militar prestado a Mawewe parecem ter cessado graças ao processo drástico
a que recorreram outros soberanos angunes: a criação de uma «terra-de-ninguém», completamente desabitada, com uma largura de quatro dias de marcha, que seguia aproximadamente,
os cursos dos rios Sabié e Incomáti.
As formas regularizadas de intercâmbio diplomático foram particularmente
importantes na manutenção de relações estáveis com o vizinho reino Ndebele. As respectivas
esferas de influência eram separadas pelo rio Save. Ao contrário do sucedido com
outros grupos de origem angune que, como vemos, constantemente se degladiavam entre
se, os reinos de Gaza e Ndebele conseguiram respeitar uma situação prolongada de
coexistência pacífica. Pouco depois de ter
sucedido ao trono, em 1868, Lubengula enviou
a Muzila uma oferenda constituída
por gado bovino. É possível, no entanto, que tivesse havido ocasionais mal entendidos.
Quando Erskine, em Outubro de 1873, visitou Muzila e solicitou autorização para
continuar caminho até à capital ndebele aquela foi- lhe negada por se encontrarem
em guerra aberta e o primeiro ser adverso à abertura de quaisquer vias comerciais
através dos seus domínios. Entre parênteses diremos que a referência que nesta
passagem faz a Mzelekaze
deve-se, decerto, ao desconhecimento da real situação interna do reino ndebele.
Na verdade, em 1873 já Lubengula havia sucedido a seu pai, falecido cinco anos
antes.
Todavia, logo em 1879, depois de
longas negociações, Lubengula tomou como sua
principal mulher uma
filha de Muzela, Kwalila. Esta partiu
acompanhada
por uma grande embaixada da qual faziam parte várias outras possíveis noivas, incluindo
uma irmã do monarca de Gaza. Esta embaixada foi faustosamente acolhida e
acumulada de entretenimentos durante os meses que precederam o casamento. O Pe.
Law cruzou-se com ela em 14 de Setembro de
1879.
Dados os entendimentos tácitos ou explícitos mantidos com Swazis e Ndebeles e as resistências surgidas contra o
seu domínio nos territórios entre os rios Pungué e Zambeze, não admira que Muzela
tivesse procurado saquear, avassalar e obrigar a tributos as populações que ocupavam
o actual Transvaal Norte. Erskene, quando em 1868 passou pelo território compreendido
entre os rios Limpopo e dos Elefantes, encontrou os súbditos do chefe Manjaje constantemente
saqueados por Muzila que lhes destruía as culturas e os empobrecia de todos os modos;
se possuíssem gado as visitas ainda seriam mais frequentes. Nas povoações abandonadas as populações viviam escondidas no mato temerosas
dessas depredações. Também na cronologia de Chinangana se encontra uma referência
às razias efectuadas pelos regimentos de Muzila, em 1870, entre os habitantes dos
Montes Spelonken.
Outro relato recente e fidedigno refere-se às incursões lançadas
contra os povos do sudeste da actual Rodésia. O chefe Hodi Kufakweni conseguiu com
os seus súbditos resistir durante oito anos aos destacamentos enviados
para o destroçar. É que na sua juventude conhecera pessoalmente Zwanguendaba
a quem pedira que o treinasse nas tácticas militares vangunes. Só em 1873 sucumbiu,
finalmente, a um ataque lançado
por três regimentos
de
Gaza, segundo um plano cuidadosamente preparado. O que conseguiu surpreendê-lo
seria comandado por N'yamande (o último cognome de Muzila? )
As suas relações com os Portugueses
revestiram-se de carácter algo ambíguo. Como em
todo o vasto
interior as autoridades
portuguesas não exerciam qualquer domínio efectivo, o chefe angune parece
ter
considerado mera formalidade, sem repercussões
políticas, o acto de vassalagem
que prestou em 1861. Sabe-se que os moradores
de Sofala chegaram a cotizar-se para lhe
pagar o tributo
que anualmente exigia. Por sua
causa Sofala foi
abandonada e
a administração portuguesa transferida para Chiluane. Mesmo em relação a João Albasini,
que tanto o ajudou a conquistar o trono, Muzila não primou pela generosidade. Logo
a partir de 1864 levantou obstáculos tão difíceis à actividade dos caçadores
de elefantes actuando no Zoutpansberg
que o célebre pioneiro viu gravemente afectados os
seus negócios.
Visando decerto monopolizer o tráfego de marfim, igualmente
expulsou da região entre os rios Buzi e Revue os caçadores de Manuel António de
Sousa. Conta G. Bivar Pinto
Lopes que este
pioneiro e outro
natural da índia
cognominado «Chapuquira» organizaram uma expedição contra os vangunes, sendo, porém,
batidos e forçados à retirada. Juntamente com o capitão indígena Bacião, fortificaram-se, respectivamente, em Maforga,
Gondola e Bandula.
Depois de assaltadas as suas aringas viram-se obrigados em 1854 ou 1855 a procurar refúgio, com
muitos Teves, na Serra da Gorongosa, único local que entre toda a região do Save
ao Zambeze nunca pagou tributo aos monarcas vangunes.
Muzila mandou, mais tarde,
um exército de 3000
homens atacar a
fortaleza natural que servia de abrigo ao célebre «Gouveia», exército que depois
de numerosas tentativas fracassadas decidiu bater em retirada. O enérgico sertanejo
goês não se limitou a alcançar esta vitória mas, graças à linha de aringas que construiu
na década de 1860, conseguiu afastar da região os regimentos de Muzila que anualmente
se deslocavam aos prazos de Sena para cobrança dos tributos.
Também a influência de Muzila no Reino de Manica parece ter
sido disputada por M. António de Sousa em 1874. Segundo uma versão oficial portuguesa,
as dinastias rivais de Makoni e Makombe teriam acometido naquele ano a de Mutassa,
que, na qualidade de avassalada, pediu assistência militar a Muzila. Mas teriam
sido derrotados os regimentos por este expedidos. Aconselhado pelo seu medium-espírita,
o atacado teria rogado a M. António de Sousa que lhe acudisse. Este teria conseguido,
efectivamente, expulsar os invasores, recebendo,
como prémio, a
submissão do monarca de Manica.
Todavia nem aquele sertanejo,
nem o seu aliado J.
C. Paiva de
Andrada,
conseguiram
até 1884 obter ali quaisquer concessões.
Já no Reino do Báruè, onde imperavam os Makombes, a influência
de Muzila parece ter sido
mais apagada. De 1826 a 1830 esteve
o reino sem monarca devido a disputas de sucessão. Depois,
prolongando-se por um lustro, surgiu a ocupação
dos Angonis
chefiados pelos Masekos.
Em 1846 a aristocracia
báruè encontrava-se irremediavelmente dividida entre os dois pretendentes ao trono,
Chibudo e Chipatata. Documentos históricos portugueses referem-se à gorada tentativa
feita em 1854 por Muzila, ainda governador, para colocar no trono
o seu protegido
Chibudo. Depois da
morte do Makombe
Chipatata em 1880 e da ascensão ao trono de M. António de Sousa, a linha de
30 ou 40 aringas
que construiu do Zambeze ao Pungué, defendeu a região contra os regimentos do Império
de Gaza, que, nas suas incursões anuais para colecta de tributos na Chupanga e
no delta do Zambeze, se viram forçados a seguir a rota meridional através de Cheringoma
Hostis foram igualmente as relações entre Muzila e os
Portugueses de Inhambane. Erskine, que passou por esta vila a caminho da corte de
Gaza em Julho de 1871, narra que Bitongas e parte de Chopes, fugindo aos ataques
dirigidos pelos Vangunes, se concentraram na região circunvizinha. Armados e dirigidos
de 1869 a 1877 por
João Loforte, o
célebre «Nhafoco», coronel honorário das forças
irregulares, que desfrutavam de imenso
prestígio,
conseguiram manter os inimigos em respeito. Há notícias de aquele dirigente mandar
enforcar os indunas de Muzila que tentaram cobrar tributos nas Terras da Coroa dependentes
do Governo de Inhambane. Nesse ano, a fronteira entre aquelas terras e o Império
de Gaza era demarcada pelo rio Inhamini, afluente do Inhanombe.
Também se sabe que
em 1881 Muzila
mandou atacar, mas sem
resultados significativos, a região habitada pelos Chopes.
Um português com quem Muzila manteve relações amistosas foi Diocleciano F. das Neves. Sabe-se
que mandou dois regimentos prestar-lhe honras fúnebres quando faleceu perto
de Inhampara, na margem direita do Limpopo, em Fevereiro de 1883.
No que se refere às relações mantidas com outras potências
há a notar que em 1870 Muzila quiz demonstrar a sua independência política mandando
uma representação a Sir Theophilus Shepstone, Secretário dos Negócios Indígenas,
no Natal com a tripla incumbência de resolver uma pendência com os Swazis, sugerir
a visita de um enviado britânico e fomentar o intercâmbio comercial. Perante as
reservas de Shepstone, acentuaram os representantes de Muzila que de nenhum modo
se consideravam súbditos portugueses. Para os fins que pretendiam
foi nomeado St. Vicent Erskine que, com
o
seu safari, desembarcou em Inhambane
aos 12 de Julho de 1871. Em
1872 quando recebeu o enviado, depois de o fazer esperar
dois meses e meio, Muzila tinha a sua capital nas faldas do Monte Selinda, capital
que era designada pelo nome autóctone de Tchametchame e pelo angune de Ndwengo.
St. Vicent Erskine, embora frisando que não havia deparado no reino de Gaza com
qualquer influência portuguesa, não forneceu informações favoráveis de Muzila. Em
1878 o rei angune mandou nova embaixada ao Natal, embaixada que foi despedida depois
de gratificada com alguns presentes.
Em 1882, após um litígio envolvendo a submissão à Coroa de dois chefes tribais
do vale do Incomáti, procuraram as autoridades portuguesas fazer aplicar o acto
de 1861. Mas o enviado Sousa Teixeira foi, pelo governador angune do Bilene, Matinguana,
informado que ignorava totalmente o acordo. Porém, em princípios de 1883, um ano
antes da sua morte, quando Muzila foi visitado por António Maria Cardoso, parece haver reconhecido a validade
da sua vassa- lagem. Este militar descreveu deste modo o monarca de Gaza:
«Muzila é um velho dos seus setenta anos, magro, de uma altura regular, feições
agradáveis, barba bastante, que usa rapada,
e fisionomia simpática. Vestia
na cinta um pedaço de pano paló e sobre ele algumas peles de macaco; ao pescoço
um lenço azul e
branco, amarrado por duas
pontas; na mão esquerda uma charuteira de palha coberta de miçanga, e na
direita uma caixa de prata para rapé. Está débil e quando anda apoia-se num pau,
que lhe serve de bengala. Não parece estar no
uso pleno das
suas faculdades mentais, e o olhar amortecido e indeciso denuncia a aproximação
de demência. Estava rodeado de
oito dos seus
grandes, do secretário Maquejana e de um outro quase da mesma idade do que ele,
mais baixo e de fisionomia estúpida e repelente e bastante magro, chamado Mandigase».
Os desenvolvimentos históricos do reinado de Muzila podem assim descrever-se:
a) Começo espontâneo do movimento migratório de trabalhadores para a
África
do Sul;
b) Importância crescente das receitas deste movimento que substituíram as
de caça ao elefante, cuja extinção no sul do reino se iniciou por volta da década
de 1870;
c) Integração na economia monetária, reforçada pela venda de
géneros como gergelim e amendoim, exportados por firmas francesas;
d) Crescente solicitude dos europeus, sobretudo de Ingleses
es- tabelecidos no Natal, recebendo
o Império de Gaza, a visita de comerciantes, missionários, exploradores, etc.;
e) Renovado interesse dos Portugueses pela manutenção de contactos
com o monarca;
f) Empenho do monarca pela
aquisição de armas de fogo.
Gungunyane (N'Ghungunyane):
Dois missionários estrangeiros
obtiveram em 1885, junto dos
Makwakwas, a informação de que a morte de Muzila fora mantida em segredo durante
dois anos até que se encontrasse firmemente estabelecida a autoridade do seu sucessor.
• que, ao que parece, Muzila nunca chegou a dispor duma inkosikazi,
cujo lobolo tivesse sido oferecido pelo povo. Pelo menos em 1872 declarou a St.
Vincent Erskine, enviado pelo Governo do Natal:
«I wish you to announce I have not yet raised any woman to
be Queen of the Country, and that, although I have already six sons, I have appointed
no heir to the throne».
Duma observação de António Maria Cardoso parece inferir-se que Mundungaz seria
o herdeiro legítimo. O mesmo autor afirma, contudo, que já por ocasião da visita
que fez a Muzila em 1883, os três seus filhos Mufemane, Mundungaz e Komo-Komo, conspiravam
para se apossarem do trono. Que o primeiro foi mandado assassinar pelo segundo não
oferece qualquer dúvida.
Os melhores testemunhos permitem afirmar que, a exemplo do verficado entre
outros grupos de origem angune, o direito consuetudinário reconhecia ao nkosi de
Gaza competência para designar o seu sucessor. Teria sido o próprio Muzila quem,
pouco antes de falecer, decidira escolher Mundungaz.
Segundo F. Toscano, Mufemane, além de primogénito, era filho de Fussi, nkosikazi
lobolada com os bens do povo. Gungunyane
era filho de
Iozio, preferida de Muzila mas possuindo
estatuto inferior.
• testemunho de Mhlanga também permite inferir que Gungunyane fora designado
como sucessor pelo velho Muzila. Na verdade, logo após a morte do pai, deu ordens
para que a sua capital passasse a ser guardada por dois regimentos, o Amapepa durante
o dia,
• o Amangonde, durante a noite.
J. Quintinha e F. Toscano contam as circunstâncias em que Maguiguana e Manyune receberam ordens para
liquidar Mufemane. O assassinato
fora devido a intrigas da dissoluta Damboia,
irmã de Muzila, ressentida com a intransigência que aquele sobrinho manifestava
para com os seus exemplos de desprestigiante libertinagem
• promiscuidade.
• certo é que Komo-Komo também desapareceu
e que Gungunyane
parece ter vivido, até ao fim do seu reinado, atormentado pela possibilidade do
regresso de dois outros seus irmãos: Anyana
• Mafabaze, que, prudentemente, se tinham posto a salvo após a investidura.
Há notícias de que em 1889 e até mesmo em 1893 os partidários de Mufemane ainda
eram numerosos.
Segundo uma versão,
Mundungaz teria decidido
adoptar o nome de
Gungunyane guiado pelo intuito
de infundir terror. Seria aquele o nome dado a
profundas furnas (possivelmente
abertas na época das explorações mineiras do
Complexo Mutapa-Rozwi) onde
eram lançados os condenados à morte.
D. L. Wheeler considera provável que o nome constitua uma corrupção de epíteto
dado pelos swazis ao seu rei, ingwenyana, isto é, leão. Daí ter Gungunyane sido
chamado o «Leão de Gaza».
Sabe-se que, após a investidura, continuou a política
predatória e agressiva dos seus antecessores. Tentou, em
repetidas incursões, vencer os Manicas refugiados nas suas montanhas. Mandou cobrar
tributos no coração do território xona.
Em 1888 Gungunyane, visando reafirmar os laços cordiais que seu pai mantivera
com o Estado Ndebele, casou com uma filha de Lobengula. Este, no ano anterior, casara
com M'pezui, irmã do monarca de Gaza.
Quais as razões que
levaram Gungunyane e
os seus conselheiros a tomar a crucial decisão de transferir a capital
real para o Sul de Moçambique, abandonando
a terra natal e fazendo-se acompanhar
por largas dezenas de milhar dos seus guerreiros e famílias vandaus?
D. L. Wheeler enumera-se deste modo: expansão e pressão portuguesa dirigida
contra os territórios de Manica; necessidade de ocupar melhores terras de cultivo
no vale do Limpopo; determinação de reduzir à servidão o povo chope e, desse modo,
assegurar a soberania angune em todo o Sul do Save, com excepção das Terras da Coroa.
Seja como for, em
1889 o
Governador de Inhambane recebeu do residente político na Corte de Gaza, a notícia de que
Gungunyane decidira transferir a
sua capital para o vale do Limpopo, acompanhado por cem mil dos seus súbditos e
cativos. Por ordens emanadas do Governo-Geral, os Vangunes e seus vassalos não deviam
ser hostilizados durante a passagem pelas Terras da Coroa, nem tão pouco se
deveriam tomar medidas de defesa que pudessem considerar provocadoras. De facto
esta grande migração processou-se sem resistência armada, limitando-se os vangunes
e seus súbditos a apoderar-se de todo o gado e mantimentos que encontraram no caminho.
Gungunyane chegou a solicitar protecção armada às autoridades
portuguesas,
tendo sido, na verdade, escoltado pelo comandante militar de Chiloane. Melo Sequeira
fornece úteis indicações sob o percurso seguido pelas duas colunas em que, no rio
Save, se dividiram os migrantes.
O itinerário da jornada foi o seguinte:
partiram do Mossurize no mês de Abril, depois
das colheitas
de 1889, tomando
o caminho de
Mucupi, Metunguacha, Rio
Save, Macobane, Govuro,
Vilanculos, Savanguana, Macuácua, Mejéquene, Coguno,
Chimoio, Lagoa Suli e Manjacaze.
Djambul, tio de Gungunyane, saiu de Mussurize na mesma ocasião, com cerca
de mil homens, tomando o caminho do Alto Save, Moamba, Chaimite, Chibuto e Manjacaze.
As duas colunas demoraram seis
meses de viagem.
Sobre os motivos que levaram Gungunyane a fazer-se acompanhar
de dezenas de milhar de vandaus, F. Toscano esclarece:
«Como os seus ascendentes, usava da táctica de T'cháca, na Zululândia: quando
conquistava uma tribo
deslocava-a e com esta ia conquistar outras tribos, entregando o novo país aos vencidos
doutras terras. Assim fizera o seu avo Manicusse, levando de Gaza os vencidos para
abater N'qaba nos territórios de Sofala, Mussapa e Mussurize, ficando os mundaus
como habitantes dessa região e vassalos dos vátuas. Assim continuava fazendo o
Gungunhane, tra- zendo consigo para Gaza todos os mundaus válidos, com suas famílias,
sempre ao propósito de bater os muchopes».
Na verdade o número
de descendentes directos dos vangunes
era bastante reduzido. Em 1887 Paiva de
Andrada, calculou-os em apenas 2000, concentrados especialmente em torno da capital,
no Mussurize, e na área de Chaimite.
No termo da sua longa marcha, Gungunyane iniciou a construção de sua capital,
sempre denominada Mandlakazi, de início perto do Lago Suli, em Cambana. Mas logo a transferiu para Manguanhana, parece que por razões mágicas.
A instalação da nova capital
não foi tarefa fácil. Na própria corte, apenas
com algumas palhotas em 1890,
se conheciam as agruras da fome.
Talvez por isso mesmo não tardou
a ser lançada a ofensiva contra os
Chopes, dedicados agricultores
que viviam em relativa abastança.
Procedeu à divisão dos seus imensos domínios meridionais em
diversas províncias, de cujo governo
incumbiu seus tios
e
parentes. Sabe-se que a Djambul
(ou Jambul) foi distribuído o Guijá, a Ngulusa (ou Inguisa) o Bilene, e a Cuio o
Chibuto. Queto ficou na corte como conselheiro e confidente. Mepissane e Molungo
receberam decerto outros cargos.
A reforçar o ódio de
Gungunyane para com os Chopes, parece ter
militado uma inimizade puramente pessoal que nutria contra Sipadanyana, filho de
Binguana, um dos chefes supremos daquela etnia. Como se encontra sobejamente comprovado, os vangunes seguiam a hábil
política de criar na capital real os herdeiros dos chefes conquistados
ou avassalados. Os futuros dirigentes eram dessa maneira integrados sem dificuldade,
na cultura angune e, além disso, ofereciam a importante vantagem de servirem como
reféns.
Ora, Sansão Mutemba conta-nos, com
foros de autenticidade, que Sipadanyana fora, muito novo, levado para a corte de
Muzila. Aqui fazia parte do mesmo grupo de adolescentes a que pertencia o futuro
Gungunyane. Cedo se desenvolveu entre os dois extrema rivalidade, rivalidade acirrada
pelo facto de nos jogos, caçadas e
outras competições de
destreza e resistência,
Sipadanyana arrebatar normalmente o triunfo. Mais tarde, já inkosi, Gungunyane alimentou
a secreta ambição de se desforrar das humilhações passadas, expulsando e batendo
o seu rival e o respectivo pai, ambos em revolta aberta contra o domínio angune.
O tratado entre Portugal e
a Grã-Bretanha, celebrado em 11 de Junho de
1891, respeitou com alterações
de fronteiras, a convenção de Agosto de 1890 e, definitivamente, dividiu o Império
de Gaza entre as duas potências europeias.
Esta delimitação de fronteiras reduziu substancialmente o território avassalado
pelo monarca angune. Logo no mesmo ano
de 1891, quando
Djambul, seu tio e governador dos territórios que hoje constituem o Limpopo e o
Caniçado, mandou atacar e cobrar tributos entre os povos ribeirinhos dos rios
Letaba, Sunguedzi e Chicha,
as autoridades do país
vizinho prenderam e mandaram enforcar os tindunas comandantes dos
regimentos.
Não conduziram a resultados palpáveis
os esforços desenvolvidos por Gungunyane
para manter a sua independência e equipar os seus regimentos com armas de fogo,
jogando com certa destreza diplomática não só com os representantes dos
governos britânico e português
mas também com
os interesses da British South Africa Company
e da Companhia de Moçambique.
à inevitável confrontação final serviu de rastilho o asilo político concedido
a dois régulos rebeldes das Terras da Coroa, seguido da obstinada recusa de Gungunyane
em os entregar às autoridades portuguesas.
A versão nativa deste incidente- típico dos conflitos micro-políticos
tradicionais em África - é transcrita no relato que H. A. Junod enviou a António
Enes.
Quando ao encorajamento que Gungunyane
teria dado aos
régulos rongas rebeldes ainda é matéria controvertida.
Walter Rodney considera-o importante e até mesmo decisivo.
Depois da derrota que os régulos
rongas sofreram em Marracuene, Gungunyane desenvolveu
grandes esforços visando, deliberadamente,
contrabalançar o crescente prestígio das armas
portuguesas e manter
a ameaçada coesão do seu reino. Logo em Março
ordenou a mobilização de cinco regimentos para lançar nova ofensiva contra os Chopes. Tempos antes fora eliminado, por suspeita de deslealdade,
Maquidame, parente do monarca e governador de Inhampura. Os chefes desta região
vieram mais tarde solicitar às autoridades militares portuguesas que as suas mulheres
e o seu gado se recolhessem a Xinavane, para fugir às incursões punitivas dos vangunes.
Em 8 de Setembro a coluna do Sul é atacada em Magul. Junod,
segundo dados que recolheu entre os próprios atacantes, assevera terem sido os regimentos dos chefes rongas revoltados de Zihlahla e de Nondwane, totalizando pelo menos
6000 guerreiros, os que mais se aproximaram do quadrado formado pelas tropas portuguesas. Os
regimentos de Gungunyane, muito mais numerosos, ficaram bastante afastados e, atemorizados
com o
tiroteio, puseram-se
em fuga. Walter Rodney interpreta esta passividade como resultante de expressas
ordens de Gungunyane
no
sentido de evitar um
confronto directo com os Portugueses, ordens amplamente indicativas da sua vontade
de negociar uma solução política.
As derrotas que as forças rongas sofreram
em Marracuene e Magul
devem ter contribuído para que nunca chegasse a efectivar-se a ofensiva que, segundo
Junod, Gungunyane planeara com os
asilados Mahazule e
N'uamantibjane.
Resolveu, finalmente, atacar as tropas portuguesas quando soube
que o Coronel Galhardo, partido de Chicomo, avançava sobre Mandlakazi. A batalha
final travou-se em Coolela, na manhã de 7 de Novembro. Os regimentos avançaram na
formação clássica de meia-lua para serem imediatamente desbaratados pela nutrida
fuzilaria das espingardas, metralhadoras e peças de artilharia.
As estimativas sobre o número de atacantes são variáveis. De
qualquer modo não deviam ultrapassar os 15000, dos quais algumas centenas equipados
com armas de fogo. Toscano garante terem sido doze os regimentos envolvidos, mencionando
os respectivos comandantes. Este autor transcreve o testemunho ocular de Uanhanhana
Cossa que, entre Mandlakazi e Coolela,
assistiu aos comentários desfavoráveis
dos chefes vangunes Cuio,
Chuaiva, Manguhuxe, Maguijana e Sone que recusaram
participar no ataque
por discordarem da recusa intransigente do Gungunyane em entregar
os dois régulos rongas refugiados. Também não estiveram presentes os regimentos
de seus outros tios Mepissane e Djambul.
No dia 9, o monarca, bastante desmoralizado,
convocou
uma reunião para discutir a
situação. A ela apenas
assistiram Queto e
Cuio, seus tios,
Molungo e Machamene, também membros da família real, e, ainda, os comandantes de
regimento Manhune, Simango, Papila, Vava, Mafaque, Fiti, Muzuazua, Zaba, Matanato
e
Mamboza, que tinham dirigido
o
ataque de Coolela. Segundo o
referido Uanhanhana Cossa, que estava presente, Gungunyane queixou-se amargamente de ter sido atraiçoado
pelos próprios
irmãos de seu pai.
O monarca tinha-se já retirado para o lugar sagrado de Chaimite, onde se encontrava
sua mãe e o túmulo do seu avo Manukusse, de quem decerto esperava protecção sobrenatural.
Mouzinho de Albuquerque, nomeado governador militar de Gaza em 10 de Dezembro,
deliberou lançar-se em sua perseguição. Logo no dia 13 lhe foi entregue o chefe
N'uamantibjane por cinco enviados de Gungunyane. Mas era já tarde. Em 28 conseguiu
efectivamente capturá-lo sem deparar com
qualquer resistência dos milhares de guerreiros que o cercavam. In loco mandou imediatamente
fuzilar o induna Manhune e o tio do monarca, Queto, dois dos principais instigadores
da resistência.
Após a derrota de Gungunyane numerosos
elementos de origem angune ou plenamente
identificados com a
cultura angune, refugiaram-se
em Mabulanine,
no Speloken, comandados por seu tio Mepissane. Outra vaga de emigrantes chefiada
por Guijá, fixou-se em Devesha. Em 1933 estes dois grupos compreendiam, respectivamente,
30 000 e 15 000 almas, sendo dirigidos por Tulimahanche, filho de Gungunyane. T.
F. Johnston afirma que o nome correcto daquele era Thuli-Lamahashe, isto é, «poeira
de cavalos».
Tem intrigado muitos historiadores as causas da obstinada recusa de
Gungunyane em entregar os dois régulos rebeldes - recusa que conduziu à sua derrocada
e posterior deportação. Quintinha e Toscano atribuem-na a simples manobras de aventureiros estrangeiros que lhe garantiram não disporem
os Portugueses de poder suficiente para o
vencer em combate.
Afigura-se-nos, porém, que Gungunyane temia sobretudo o irremediável golpe
que viria a sofrer, perante os povos submetidos, o prestígio dos conquistadores
vangunes, sobretudo o da sua aristocracia dirigente.
Também nos quer parecer que a sua renitência era baseada na absoluta convicção
de que,
mesmo entregando os régulos refugiados, a guerra seria inevitável. Os preparativos bélicos dos
Portugueses tinham-no persuadido que seria impossível preservar a paz. Nestas condições, a entrega
dos rebeldes redundaria na perda de preciosos apoios militares quando chegasse
a hora fatal
do confronto.
Apoios militares constituídos não só pelos guerreiros de Zihlahla e Mazwaya, mas também por todos os chefes autóctones que ainda se encontravam ao seu lado e que, se reconhecessem
a sua impotência perante os Portugueses, não hesitariam em mudar de campo.
Não contou, decerto, que seus
próprios tios, na batalha final, iriam
recusar-lhe o apoio dos seus regimentos, talvez mais aguerridos e dedicados dos
que os formados quase exclusivamente por homens das tribos submetidas. O facto é
que os membros da casa reinante estavam
divididos pelo crucial dilema. A própria
mãe-substituta de Gungunyane,
Umpibekezana, com importantes funções rituais e
políticas, era favorável à entrega dos asilados. Da mesma opinião eram todos os
seus tios, com excepção de Queto. Parece que, em última análise, o monarca conseguiu
fazer prevalecer a sua opinião.
Havia inegáveis tensões e desacordos no seio da família real e da aristocracia
dominante. Na previsão de situações semelhantes, os monarcas dos outros reinos vangunes
que se destacaram na história desta parte da Africa, evitavam atribuir qualquer
autoridade política e militar aos seus parentes. Daí as constantes segmentações
sofridas pelos grupos partidos do país natal.
Os monarcas de Gaza mantiveram durante 75 anos a unidade do
seu império. Mas o poder e a autonomia que concediam aos membros da família reinante,
terminaram por lhes
ser
fatídicos no dia decisivo
de Coolela. Mas mesmo que tal não tivesse acontecido a superioridade
da organização, da tecnologia, do armamento, era tão flagrante que, cedo ou
tarde, acabariam por sucumbir.
Parece ter contribuído para o ressentimento
da aristocracia angune e
para o processo de desintegração, o facto de Gungunyane -visando, talvez, conquistar adesões -escolher muitos dos
favoritos da corte entre os povos conquistados e, ainda, locupletar-se com o gado
e as mulheres obtidas durante as incursões armadas.
Não se devem minorar as terríveis devastações do alcoolismo e dos estupefacientes.
Na própria corte a
embriaguez era habitual. Até as rainhas eram ávidas de bebidas fortes. Já
narrámos que um dos filhos do monarca,
Mango, morreu depois de ingerir
25 litros
de sope.
A frouxa resistência militar oposta faz suspeitar que decaíra o espírito combativo
dos regimentos. Decadência que pode atribuir-se a costumes dissolutos, à emigração
para as minas
de ouro e diamantes e, enfim,
à integração de um número excessivo de mancebos
provenientes das tribos conquistadas ou sujeitas a tributo. Verificou-se, por conseguinte,
um processo de relaxação da disciplina e defeituosa selecção
dos comandantes militares, semelhante
ao dos Ndebeles.
Também aconteceu que certo número de epidemias e infortúnios
desabaram simultaneamente sobre o Império de Gaza: peste bovina, pragas de gafanhotos,
ínfima produção agrícola e consequente fa
mina, varíola trazida pelos
refugiados ndebeles, etc.
A revolta de Maguiguana:
Cossa de Magude, Maguiguana parece ter exercido as funções
de cozinheiro na corte de Muzila. Graças à sua bravura, valor pessoal e plena integração nos costumes
vangunes conseguiu guindar-se à posição de comandante-em-chefe do exército.
Contudo não podia comparecer às assembleias que reuniam os
membros da nobreza, senhores de terras.
Não comandou os regimentos que atacaram as forças portuguesas
em Coolela. Encontrava-se, na altura, no Bilene tentando apressadamente mobilizar
outros regimentos para enfrentar o avanço da coluna comandada pelo Coronel
Galhardo.
Mouzinho de Albuquerque
enumera
deste modo as causas da revolta organizada por Djambul e Maguiguana em 1897:
- fraca ocupação militar;
- secas
de 1895 e 1897, aliadas à peste bovina e às pragas de gafanhotos que conduziram
a condições de famina e levaram os
vangunizados a pretender regressar
ao prévio sistema de pilhagem para conseguirem sobreviver;
- abusos praticados pelos cipais;
- desejo de saquear as lojas dos comerciantes
asiáticos.
G. Liesegang, em comunicação pessoal, opina ter sido objectivo dos revoltosos
obrigar os Portugueses a repatriar Gungunyane e a reinvesti-lo no poder.
Gomes da Costa por seu lado, aponta como razão a «má interpretação
e a péssima execução da ordem do governador referente à confiscação do gado do Gungunyane».
Esta última causa afigura-se-nos como bastante importante. Na verdade, já
referimos que todos os monarcas vangunes se arrogavam a propriedade exclusiva do
gado confiscado. Contudo, por razões de diversa ordem (receio de epizootias, desejo
de homenagear os súbditos, etc.), as numerosas manadas eram postas à guarda de homens
de confiança que, na prática, as tratavam como se fossem suas. É bem possível que
esses fiéis-depositários tivessem, após a derrota e desterro do monarca, passado
a considerar o gado como sua pertença. A confiscação desse gado - no caso dos executores
se terem guiado pelo conceito tradicional
de propriedade real-não poderia
deixar de provocar profundos ressentimentos.
Seja como for, de início, o Alferes M. A. Chamusca, tendo reconhecido
o estado de insubmissão em que se encontrava a população dependente do posto militar
de Palule, retirou para o Chibuto em meados de Março de 1897. Andou apenas oito
quilómetros quando perto da Lagoa Nafucuè foi atacado por duas
«mangas» de revoltosos e trucidado
juntamente com o pequeno destacamento.
O Comissário Régio Mouzinho de Albuquerque, interrompeu a campanha contra
os Namarrais e assumiu o comando da coluna especialmente organizada. No dia 21 de
Julho cerca de 5000 guerreiros, a maioria deles de origem vandau, cercaram e
atacaram o quadrado português, em Macontene, tendo sido destroçados pelo fogo e
logo perseguidos pela cavalaria e pelos auxiliares. O
comissário
régio, à testa de um destacamento especial constituído por 30 cava- leiros e o mesmo
número de cipais, lançou-se em perseguição de Maguiguana que conseguiu abater. Entre a lista dos
que acompanhavam Maguiguana, figurava Chope-Chope, irmão classificatório
de Gungunyane.
Segundo declarações prestadas por alguns prisioneiros
efectuados durante o combate de Macontene,
Maguiguana mandara matar a própria mãe de Gungunyane, Umpibekezana, por ser
favorável aos Portugueses e se haver recusado a fazer preces pela chuva.
Francisco Toscano acrescenta outra razão: a discordância que manifestou quando soube
do massacre do destacamento do Alferes Chamusca, em Palule.
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