LEGIÃO ESTRANGEIRA FRANCESA
Meados
de 1972, Paris
Mala na mão esquerda,
olho para trás contemplando Fonteneau-sur-le-Bois
como um mundo a esquecer. Passo firme e decidido como sempre quando me sinto fraco e indeciso, aproximo-me
do Fort de Nogent, carrancudo e atarracado Posto de Informação da Legião Estrangeira. Sorrio.
- "Deixe de ser idiota, aLegião não existe mais
já faz uns vinte anos!!" Um Legionário de la
classe com seu inefável quepe branco vem ao meu encontro,
desconhecendo o fato de que ele não existe há mais
de vinte anos, segundo meus colegas de Força Aérea.
-Volunter?
-Oui.
- Vien avec mói!
As
cinco palavras bastam para me levar até um Adjudant alemão, responsável
pelo recrutamento. Seu francês é regular, seu passado um tanto
menos... Conversamos. Pergunta-me sobre Hitler, respondo em alemão,
o que o faz sorrir largamente, deixando vagar suas recordações por
algum tempo, ajeitando-se na cadeira.
Algumas perguntas de
ordem técnica, apresento os meus documentos
absolutamente desnecessários que são guardados em um envelope, juntamente com todos os papéis pessoais
que possam me identificar. Torno-me,
contra vontade, Pablo Riveira, nascido em Sant-Anna (?), Brasil, aos 16 de novembro de 1951. Nascido em 1949, ganho dois anos de vida sem qualquer ónus de minha
parte, informa divertido o Adjudant.
Não pude conservar meu nome verdadeiro.
II
MOÇAMBIQUE
Após uma entrevista num
programa de rádio e uma reportagem numa revista católica, já como cidadão
português, embarco num voo noturno na TAP com destino a Beira (Moçambique), via
Luanda. A guerra já se faz presente: o Boeing 707 português não tem permissão
para sobrevoar países africanos e sua rota é uma longa curva em torno do
continente negro. O mesmo acontece com os aviões sul-africanos.
A noite passa tranquila
e ao amanhecer estamos aterrissando em Luanda, capital de Angola. Piso em solo
africano pela primeira vez, sinto-me bem. A escala é apenas para abastecimento
e em seguida estamos no ar. Sobrevoamos Salisbury, capital rhodesiana, última
cidade importante antes de chegarmos à Beira, centro urbano da costa do Oceano
Índico e o porto que alimenta Rhodésia, isolada do mundo por um bloqueio
económico imposto pela Inglaterra.
Uma Kombi me leva para o
Hotel Moçambique, moderno e confortável. As conversas, em dialeto local, são
totalmente incompreensíveis para mim, mas todo nativo fala também português. Noto
o movimento contínuo de tropas, principalmente os GEP, Grupos Especiais
pára-quedistas, cujo quartel é em Dondo, nas proximidades.
Durmo no hotel seguindo
de manhã para Nampula, num Boeing 737 da DETA, a companhia aérea que realiza
voos domésticos. A maior parte dos passageiros é militar; estamos nos
aproximando da zona de guerrilha.
Cruzamos o rio Zambeze e Quelimane, cidade situada em sua foz. No meu
destino final sou esperado pelo enorme e patriarcal padre Patrício, chefe da
sociedade Missionária na Região. No aeroporto alinham-se dois Fiat G-91 com
"colmeias" de rockets sob as asas, helicópteros Alloete III, C-47s e
os transportes de pára-quedistas, apelidados pêlos nativos de barriga de
ginguba (amendoim). O número de viaturas militares é enorme, predominando
os pequenos Unimogs, chamados de "burros do mato" pela sua
versatilidade e resistência e as gigantes Berlietz, caminhões de transporte
geral.
Por todo lado se vêem os
comandos com seus camuflados e lenços coloridos no pescoço, empunhando
as G-3 alemãs ou pequenas Uzi, israelenses. E estes homens de elite, em sua
maior parte, eram negros moçambicanos, que não queriam que o caos se apoderasse
de sua terra.
A cidade, que percorro
no VW do padre Patrício, é um grande quartel; nitidamente ela vive às custas
dos militares. Mas não tenho tempo para observações, pois sou levado para
Marrere, distante 15 Km de Nampula, um complexo constituído de hospital, escola
primária, oficinas, plantações de algodão e Escola de Professores de Posto
Escolar; nesta última é que darei instrução de Educação Física.
Sou bem recebido, acabo
me tornando também professor de Ciências Naturais e Trabalho Manuais-Desenho,
pois a falta de docentes é crítica. Este período é de vital importância, pois
assimilo a realidade das colónias africanas, tomo conhecimento da política ali
realizada e me entroso com os militares de todos os níveis.
Com o Diretor da Escola,
padre Alexandre, passo a conhecer melhor Portugal e suas tradições bem como os
Macuas, a tribo da região, sobre os quais o dedicado padre havia escrito vários
contos e preparava agora um dicionário. Foi realmente a melhor maneira de
entrar em África. Como professor de Educação Física mantenho minha forma ao
mesmo tempo em que aperfeiçoo meu método de comando, aplicando-os aos nativos.
Comandar em África não é o mesmo que em países da Europa ou América.
Com o professor Quina, o
português que irei substituir no Marrere, fazemos uma viagem de uns vinte dias
pelo distrito de Nampula, Zambézia e sul do Niassa, na fronteira com o Malawi,
onde entramos em companhia do chefe da DGS local.
Por aquela fronteira costumam cruzar secretamente os recrutas da Frelimo, a
Frente da Libertação de Moçambique, que farão instrução na Tanzânia voltando
depois com seu terrorismo covarde. Lidera o grupo um ex-auxiliar de enfermagem
de Lourenço Marques, Samora Machel. O verdadeiro líder, Mondlane, morrera na
explosão de uma bomba que Samora imputara à DGS. Nunca ficou provado...
No sul do Niassa encontro as Milícias de
Intervenção; está aí algo que não conhecia e que poderei ingressar. São
profissionais, não pertencem ao Exército e tem a função de patrulhar estradas,
defender aldeamentos, proteger os trens de carga/passageiros dos ataques e das
minas. Enfim, no Niassa, zona de combate, existia todo o esquema de
recrutamento que em Portugal seria impossível encontrar devido à burocracia.
Depois que Quina parte para o sul, fico
com sua motocicleta, uma Zundapp 200, com o qual percorro as trilhas e aldeias
próximas do Marrere, conversando com os nativos, principalmente com os régulos,
autoridades tribais tradicionais reconhecidas pêlos portugueses, mas que a
Frelimo procura derrubar. São nossos aliados e têm grande influência na
consciencização do povo, contra a propaganda marxista e racista dos
guerrilheiros.
Em Nampula existe, a exemplo de toda a
colónia, a OPVDC, Organização Provincial de Voluntários para a Defesa Civil,
que abrange todos os voluntários e lhes proporciona treinamento militar e
armas. É uma forma de manter uma reserva de efetivos pronta para intervir caso
necessário, sem que se tenha de deslocar tropas da Metrópole. Pretendo me
inscrever, mas os acontecimentos viriam apressar meu processo de entrosamento
com o mundo militar africano.
A REVOLUÇÃO
25 de abril de 1974!
Revolução em Portugal; os famigerados
"cravos vermelhos". O resultado da covardia de jovens oficiais
portugueses, ingénuos úteis nas mãos dos Vermelhos. Capitães que seriam
chamados muito apropriadamente pelo poeta Joaquim Paço d'Arcos de ufanos da
derrota, herdeiros anões de Aljubarrota, bastardos duma raça de heróis...
Marcelo Caetano e Américo Thomaz são
depostos; os agentes da DGS, presos. Começa dissolução do Império Português,
vendido a Moscou.
Peço demissão. E. C., um amigo que havia
chegado recentemente do Brasil, substitui-me na Escola.
Surgem os boatos de tentativa de
independência unilateral de Moçambique e que seria apoiada pelos rhodesianos,
temerosos de perderem seu apoio e se verem cercados por países de maioria negra
marxista. A tropa portuguesa não oferece credibilidade, não se pode confiar nos
oficiais. Apenas os Comandos esboçam uma reação contra a entrega da colónia ao
inimigo, aos terroristas da Frelimo, como pretendem os golpistas que apresentam
estes últimos como heróis nacionalistas, ferindo o brio das tropas especiais.
Voo para a capital, Lourenço Marques, à
procura de informações concretas; todos estão confusos. No Consulado Rhodesiano
consigo um visto de entrada e após dois dias e uma noite num trem estou em
Salisbury.
Lá a reação é aberta, os
grupos se reúnem nas pensões portuguesas e duas facções distintas começam sua
organização visando a tomada do poder, a exemplo do que fizeram os colonos
rhodesianos, anos atrás. Mas mesmo à primeira vista o que se pode deduzir é que
não sairão do planejamento: existem mais "generais que soldados",
estão longe de conseguir a disciplina necessária para obter o sucesso.
MILÍCIAS AFRICANAS NO
NIASSA
Em Moçambique não há trégua, a guerra
continua e estou livre para a luta. Volto para o Niassa, ao norte da colónia e
contato os setores que me interessam. Vejo-me finalmente de arma na mão, com
mais 39 milícias africanos na defesa de Cóbue, um aldeamento às margens do Lago
Niassa. Para lá não há estradas, a pista de pouso foi destruída pelas águas e o
único meio de transporte são os barcos da Marinha Portuguesa.
É zona 100%, como chamam
os lugares onde os terroristas pululam, sou o único branco num raio de centenas
de quilómetros.
Como o consegui? Simplesmente aproveitando
a balbúrdia que reinava em todos os setores administrativos e militares, depois
da revolução.
O lugar era protegido a ferro e fogo por
uma companhia de Fuzileiros Especiais, mas que seria retirada, pois estavam, ao
contrário dos guerrilheiros, deixando de lutar em todas as frentes, abandonando
a população indefesa à mercê dos assassinos da Frelimo, desejosos de vingança e
poder. O quartel, antiga missão de propriedade da Consolata, ficaria vazio.
Ofereci-me para ocupá-lo para evitar que fosse depredado pêlos nativos, até que
voltasse a ser usado como Missão novamente.
Aceitaram e para lá rumei numa lancha de
desembarque da marinha, em seis horas de balanço nas vagas do lago.
Os fuzileiros preparavam para deixar o
quartel. Armados até os dentes, com as fitas de munição de suas MG enroladas no
peito e morteiros 60 em posição, continuavam atentos nas montanhas, temendo um
ataque de última hora.
A bandeira portuguesa foi arriada pela
derradeira vez naquelas paragens, jogando por terra o duro trabalho de gerações
inteiras de jovens que ali deram seu sangue e suor em nome da Pátria.
O oficial cortou com sua faca de combate
as cordas do mastro para que a bandeira da Frelimo não subisse tão cedo. De um
lado a Companhia toda formada, do outro, eu, sozinho e no momento desarmado,
assistindo a cerimónia. Para os militares eu só poderia ser algum terrorista,
pois nunca um branco ficaria só num lugar que fora preciso uma companhia
inteira de aguerridos fuzileiros para defendê-lo.
Meu único meio de comunicação com
Metangula, a base naval, era um rádio. Qualquer auxílio que necessitasse
demoraria no mínimo três horas, com as lanchas rápidas intervindo. Na aldeia,
situada abaixo do quartel, ficariam 39 milícias africanos, armados com fuzil
Mauser modelo 1908...
Como numa retirada em combate, os
fuzileiros afastaram-se em lanchas de desembarque, com a vigilância dos
lança-foguetes de uma patrulheira colocada ao largo.
Quando os últimos
preparavam para embarcar, uma cápsula de sinalização "very-ligth"
ergueu-se aos céus, no extremo da antiga pista de pouso. Os guerrilheiros davam
sinal de sua presença...
Entardecia e quando o
pequeno comboio sumiu à distância no lago voltei para o quartel; 36 salas
vazias me esperavam num prédio cercado de trincheiras e arame farpado.
Abri minha mala
retirando dela duas granadas defensivas, que comprara dias antes de um soldado
em Vila Cabral, capital do Niassa. Com um arame, amarrei uma delas a uma das
folhas da porta do quarto, enquanto que outro arame ia de sua cavilha de
segurança até um furo no meio da folha seguinte, apenas introduzido, sem prender.
Saí, fechei-as e travei o arame por fora. Se alguém tentasse mexer no quarto,
forçando as portas, a granada explodiria. Obviamente eu não estaria dentro.
Com a outra granada
debaixo da camisa percorri a escura trilha de uns 500 metros até a casa do
Administrador da aldeia, situada no topo de uma elevação. O administrador (uma
espécie de prefeito) também era africano, um ex-membro dos Grupos Especiais
pára-quedistas, portando de confiança. Era o responsável direto pelos milícias
e eu faria minhas refeições em sua casa.
Opinava ele que eu, como
único branco em uma zona de 100% já estava cheirando a cadáver, pois era
alvo em potencial para os terroristas. Cedeu-me uma FBP 9mm, cópia portuguesa
da Smeisser alemã (sub metralhadora), seis carregadores de munição e mais duas
granadas. Acertamos que eu poderia inspecionar e trocar ideias para a melhora
da defesa do dispositivo montado pêlos milícias, que encontrara repleto de
falhas. Com isso aos poucos, iria assumindo o controle total da situação, para
alívio do Administrador, que nada queria com estes tipos de responsabilidade.
Naquela primeira noite
voltei ao quartel, mas não me dirigi ao quarto. Subi por uma escada de madeira
a uma espécie de sótão, situado no centro do edifício e puxei-a para cima; a
janela dominava uma grande área e o sótão tinha ligação com o resto do teto.
Estava limpo, com as paredes cobertas de fotos de mulheres nuas.
Nada mal, agradeci mentalmente ao fuzileiro que tivera a ideia de
transformar o cubículo em quarto. Preparado, adormeci tranquilo com a arma ao
alcance da mão, na minha primeira noite em zona de combate real; desta vez não
se tratava de manobras, como fazíamos no Brasil...
Começava minha vida de
combatente substituindo a uma Companhia inteira... Como princípio estava bem,
pensei, queria lutar, exercer a profissão e agora estava com guerrilheiros
inimigos até na sopa.
A noite passou e a Frelimo não deu o ar de sua graça.
Considerava crucial a
primeira noite de aldeamento sem os fuzileiros, mas a princípio os terroristas
não pretendiam atacar de imediato.
Logo pela manhã, troquei
minha roupa civil pelo traje verde das milícias, embora oficialmente
continuasse uma espécie de missionário e percorri o aldeamento em companhia do
administrador.
O "dispositivo de
defesa" simplesmente não existia. Os milícias deixavam suas armas nas
palhoças e iam pescar. Reuni o pessoal e indiquei quatro pontos estratégicos,
onde mandei que cavassem trincheiras. Organizei um sistema de rodízio, já que
não podia impedi-los de procurar alimentos e passei a controlar pessoalmente o
estoque de munição e granadas ofensivas, que os nativos desviavam
respectivamente para caçar e pescar.
À beira do lago, lanço
algumas rajadas para me acostumar com a metralhadora portuguesa, que por sinal
falha bastante quando da ejeção da cápsula. Depois, sozinho, começo minhas
patrulhas diárias, explorando as redondezas. Havia sinais de presença de
inimigo nas proximidades, mas os dias se passavam, e nada...
...Num achado
interessante deparei-me um dia, mato cerrado adentro, com dois túmulos cobertos
de tijolos e com cruz, nitidamente de europeus. Gravados, dois nomes de mulher,
Eleonora Mirian Lizzi e Charlotte T. Elza e a data de 29 de agosto de 36
(36-Aug-29) em inglês. Missionárias? Aventureiras? Que mistério continha
aqueles túmulos escondidos? Na década de trinta, mesmo para um homem, a região
do Niassa se constituía num território perigoso e desconhecido. Nenhum nativo
soube ou quis me dizer algo a respeito...
O barco que semanalmente vinha de Metangula, trouxe um reforço, um guarda
PSP (Polícia de Segurança Pública), também africano, armado de G-3 (fuzil
semi-automático), o que melhorava nosso pequeno arsenal. O guarda Abdul
tornou-se um auxiliar precioso, tinha consciência militar, ao contrário dos
ociosos milícias.
Um nativo cujo
desaparecimento estávamos investigando reapareceu na aldeia com notícias
interessantes. Fora capturado e posteriormente libertado pelos guerrilheiros,
que lhe interrogaram sobre a saída dos fuzileiros, na qual não acreditavam,
pensando numa cilada. O nativo confirmou, mas disse-lhes que haviam ficado
"trinta brancos, bem armados", mentira que provavelmente estava
provocando o adiamento do ataque ao aldeamento, pois pretendiam saquear a
cantina, como era costume fazerem nas vilas desprotegidas.
Pelo rádio, informavam-nos sobre ataques a
lugares próximos abandonados pelos portugueses. Em Cóbue, sem novidades...
O BATISMO DE FOGO
Era o dia 2 de Agosto de 1974 e jantava
com o guarda Abdul na casa do Administrador, que havia viajado para Vila Cabral
há uma semana, no barco da Marinha. No momento eu era o dono do lugar. Cansado
de carregar a metralhadora inutilmente, deixara-a no quartel e, banho tomado,
vestia um confortável traje civil.
São 19:40h. Quando vou cortar um pedaço do
apetitoso peixe grelhado colocado à minha frente, uma longa e estridente rajada
de Kalashinikov AK-47 rasga o silêncio da noite, tomando-me totalmente de
surpresa. Voam vidros partidos e o som vem de muito perto da casa!
Em frações de segundos estou rastejando
para o quarto, Abdul para a cozinha e o criado correndo, deixando cair a
bandeja metálica com estardalhaço. Os tiros espocam pelo lado do aldeamento.
Todos os palavrões possíveis vêm à minha
cabeça! Desarmado, com roupa clara, pego como um principiante que pensava não
ser!
Agachado, protegido pelo muro de um metro
e meio de altura que prudentemente cerca a casa, corro para o abrigo contra
morteiros. Abdul chega e salva a situação, pois vem com sua G-3.
Responde fogo, dando-me
cobertura enquanto corro para o quarto do quintal, onde apanho uma pistola
Walter 9mm e as granadas que posso, retornando ao abrigo.
Da parede ao nosso lado
saltam lascas de reboco dos projéteis das AK-47 e PPSH russas. As informações
que temos é que os ataques têm sido feitos com um canhão sem recuo de 76mm. Se
o usarem, estaremos perdidos.
Estamos em posição mais
alta que o inimigo, mas este avança para nós, confundindo-se no meio do alto
capinzal. São dois grupos de oito ou nove homens cada e se autoprotegem.
Economizo munição tentando ver os clarões das armas, para depois disparar
naquela direção.
Abdul está em
dificuldades com a G-3; estarrecido, verifica um pouco tarde demais que os
carregadores que trouxera eram de FN, um fuzil Belga, e não se encaixavam em
sua arma! Começa a esvaziá-los para carregar o único que serve e com isso
paramos praticamente o fogo. O inimigo está perto e atira a esmo.
Passa-se uma ideia pela
cabeça, perdidos por um, perdidos por mil: levanto-me, subo ao topo do abrigo
completamente desprotegido, destacando com minha roupa clara do céu negro e
grito:
- Frelimo! Frelimo!
Por um momento os
terroristas param de atirar e escutam. Penso em passar-lhes a conversa que a
guerra acabou, a revolução, etc, etc, mas a pausa dura apenas alguns segundos.
Uma saraivada de balas passa por mim, retalhando um mamoeiro ao lado!
Com um sonoro "f.
da p." gritando com toda a vontade, encerro minha carreira de parlamentar,
dando graças, porém, a já famosa falta de pontaria dos adversários.
Salto para o solo e faço
o que me resta fazer: muito barulho, blefar com nosso poder de fogo.
Atiro três granadas em
rápida sucessão para a baixada onde já se escutam ruídos de homens e descarrego
um pente da Walter; Abdul, no mesmo momento metralha com a G-3.0 efeito é bom e
as granadas parecem que atingiram alguém.
Os guerrilheiros que não esperavam encontrar reação e estavam próximos,
recuam; os que no aldeamento tentavam saquear a cantina não o conseguem devido
a uma inesperada defesa de dois milícias e seguindo sua tática de sempre batem
em retirada, pois ficaram tempo demasiado atacando e reforços podem chegar. Mal
sabem que isso é quase impossível!
Com alguma comida
roubada e seis mulheres raptadas, a gloriosa Frelimo desaparece.
Recarregamos nossas
armas e após uns terríveis dez minutos de silêncio total salto pelo muro,
seguido de Abdul e desço a aldeia, empunhando a Walter no meio da escuridão. É loucura,
mas prefiro isso ao suspense de aguardar entrincheirado no alto da elevação
onde estava.
Mas o inimigo realmente
fugira. Com exceção dos dois que defenderam a cantina e suas famílias, os
restantes milícias haviam abandonado as armas e saltado para o lago entre os
caniços ou se metido no meio do mato!
E assim recebi meu
batismo de fogo, no topo de uma colina africana e juntamente com Abdul,
rechaçara um ataque de guerrilheiros que possuíam superioridade em efetivos e
material, o que não fora suficiente para lhes suplantar a covardia.
Abaixo da casa
encontramos carregadores de AK-47 e um saco de comida, provavelmente
abandonados por um ferido. Não consegui contato com Metangula através do rádio
e resolvemos dormir, mas vestidos e prontos a nos defendermos de uma segunda
investida.
Aos primeiros clarões da
manhã mandei que buscassem as baterias do gerador e as troquei pelas do rádio,
que estavam fracas.
- 668, 668, 668, 666 chamando! 668 era Metangula e 666 éramos nós.
-Prossiga, 666!
- 666 atacado, sem
baixas, seis nativos raptados, vamos sair empatailha.
Repeti a mensagem, esperei o entendido.
- 666 solicita três
carregadores para G-3, munição e se possível uma MG-42 para reforço, câmbio!
Com a metralhadora MG, entrincheirado em cima do morro, poderia anular com
sucesso as investidas do inimigo, mesmo em superioridade de número. Seus
ataques não eram contundentes e em caso de resposta rápida e eficaz,
retrocediam sempre.
- OK, Abdul, vamos ver o que poderemos fazer;
- Não é Abdul, é Pedro que fala, câmbio;
- ?!
- O "missionário"? Confirme!
-Positivo!
Em Metangula acharam
estranho um missionário pedindo uma MG e mais confusos ainda ficaram quando ao
meio do dia chegou uma lancha da marinha com um grupo de combate e me
encontraram fardado e armado!
Acabara de chegar da
patrulha que havia seguido a pista dos guerrilheiros, pista, aliás, facílima de
encontrar dado o sem número de objetos que deixavam cair, em sua pressa de se
distanciar para não serem interceptados. Iam em direção a N'go, uma aldeia
distante duas horas de barco de Cóbue.
Avisei a marinha e
também 666A (N'go) via rádio. Eles não possuíam armas automáticas nem granadas
e precisavam se precaver.
Recebemos o pedido,
menos a MG e a lancha da marinha retornou. Saberia depois que o Comandante da
Base Naval interrogou o padre da Consolata sobre minha pessoa. Na confusão
daqueles tempos pós-revolução ninguém podia confiar em ninguém, mas muito menos
se impor. Quem seria eu? De que lado realmente estava? Também não os daria
muito tempo para saber...
No dia 4 de agosto, ao
anoitecer, ouvimos o som seco do canhão sem recuo e um metralhar distante. Era
N'go sendo atacado como previra e malgrado meu aviso foram colhidos despreparados.
Desta feita, usando o canhão sem recuo destruíram o posto policial, matando um
guarda e ferindo outros. A população embrenhou-se pelo mato e os poucos
milícias fugiram de canoa para Metangula.
N'go ficou deserta.
Pela rádio, uma ordem:
eu deveria voltar no mesmo barco que estava levando o Administrador para Cóbue.
Embarquei com
granadas, munição e uma
Walter.
Em Metangula, a surpresa: eu era tido como agente da Frelimo, apesar do
ataque que sofrera. Mas verdade seja dita: incompreensivelmente o mesmo grupo
que destruíra N'go, apenas arranhara Cóbue, quando lá estava! E um grupo
de oficiais da Marinha queria de mim nada menos que um contato com os
guerrilheiros, para o cessar fogo! O mesmo pedido me foi feito, através do
padre local, pelo Bispo anglicano, que chegara da capital Lourenço Marques e
queria conversar com os "legítimos representantes do povo"...
Ora, todos sabiam que os
contatos nas aldeias eram sempre os professores nativos, que negavam
veementemente tal fato.
Mas para mim, estrangeiro,
"missionário" e com os boatos que lançaram à minha volta, não tive
problemas. Cheguei a uma aldeia próxima de Metangula e me dirigi diretamente ao
professor, que nunca vira antes e falei-lhe sobre o encontro com a Frelimo,
como se seu envolvimento com terroristas fosse para mim um fato conhecido e
normal. Achando-se entre colegas, o professor caiu no conto e se abriu. Avisou
a um grupo que se encontrava próximo e o primeiro encontro se fez, com o Bispo
anglicano. Quanto ao encontro com a Marinha não sei se veio a se realizar, pois
as atenções se voltaram subitamente para algo mais alarmante: a tentativa de
independência unilateral de Moçambique!
A REVOLTA DE 7 DE
SETEMBRO
Alerta absoluto nos
quartéis. A Rádio Clube de Lourenço Marques foi ocupada pelos revoltosos; os
emigrantes portugueses da Rhodésia estão cruzando a fronteira, outras rádios
são ocupadas.
É o dia 7 de setembro de 1974.
A prisão da capital é invadida pelo povo,
centenas de agentes da DGS que lá se encontram são libertados.
Daniel Roxo, líder das milícias do Niassa,
lança um apelo para que elas colaborem com a revolta. Lanço mão de um Land
Rover da Missão e reunindo os milícias com rapidez, lhes explico a situação e
peço que se metam no mato com suas armas caso a Marinha tente desarmá-los.
Nesta confusão não sou
incomodado e instalado na casa do padre sigo os acontecimentos pelo rádio. Dois
dias se passam e os rebeldes se consolidam. Muitos militares aderem, toda
população está nas aias, mas pacificamente. Até agora nenhum tiro foi dado, mulheres
e crianças ocupam as rádios da colónia. .Então no dia l0 a senha ainda há
estrelas no céu foi substituída por galo, galo, galo, amanheceu! e
veio a reviravolta. Tropas do Exército mandadas por comunistas esmagam
violentamente a caseira revolução. Moçambique já estava vendido e era
preciso entregar a mercadoria em dia.
Blindados e tratores
empurram o povo para longe dos edifícios ocupados. Em conluio com a Frelimo, os
nativos dos arredores dirigidos por agitadores profissionais invadem as ruas,
queimando, saqueando, violentando as mulheres brancas de qualquer idade, sob a
complacência das Forças Armadas Portuguesas.
Os comandos são
proibidos de saírem às ruas, o governo pensa em desarmá-los.
Tomo um táxi aéreo e
saio de Metangula, indo para Vila Cabral, onde tenho que esperar uma semana
pelo reinicio dos voos para o sul. Neste curto espaço de tempo sou contatado
por um grupo de "progressistas", que sabedores da minha intermediação
no encontro Frelimo-Bispo, pedem minha colaboração. Como sempre, não me faço de
rogado e infiltrado no esquema, posso sabotá-lo melhor.
Para o encontro não
tenho dificuldades: o padre superior da Consolata e mais outro padre italiano
já me haviam falado de suas relações com os turras (nome dado aos
terroristas) e através deles três guerrilheiros chegam em Vila Cabral,
transportados por mim, fazendo uma "palestra" à população local,
demonstrando a todos o seu despreparo e ignorância! E para o cumprimento da
minha "nobre missão em prol da independência", tinha livre acesso a
qualquer hora ao gabinete do governador do distrito, além de um avião Auster
caso necessário!
Neste ínterim em Nampula
o brasileiro E. C., na OPVDC, participara ativamente na revolta e agora com uma
viatura, ajudava os comandos do Exército Português a desertarem rumo a
Rhodésia. Fugirá por sua vez para a África do Sul.
A opressão é grande em
todo Moçambique. O Governo dá praticamente a colónia de presente à Frelimo, que
nem efetivos tem em número suficiente para controlar apenas a capital. Tropas
da Tanzânia, fantasiadas de "guerrilheiros nacionalistas" começam a
entrar no território.
Chego em Lourenço
Marques a tempo de participar da revolta dos comandos. Inconformados com
que viam, com a covardia das tropas regulares assistindo mulheres brancas sendo
violentadas e mortas, os grupos especiais se sublevam e nas ruas da capital
atacam os homens da Frelimo que se pavoneiam como vencedores da guerra. Estes
se defendem até com lança-foguetes RPG-2, aumentando o número de mortos civis.
Batalha nas ruas.
Os nativos invadem
novamente a cidade. Em um carro particular enfrentamos nas esquinas, com
granadas e armas ligeiras, a corja de assassinos que a tudo saqueia e destrói.
De Portugal vem a ordem
para embarcar os comandos; muitos fogem para a Rhodésia, engrossando as
fileiras dos que pretendem retornar de armas na mão.
A violência da Frelimo e
dos marginais, agora livres para saciar seus instintos, aumenta contra os
brancos. Escondo-me numa paróquia - sempre os padres me salvando! -e aguardo os
ânimos se acalmarem para fugir daquela fogueira.
Os africanos fazem
controles nas ruas em grandes grupos, barrando e roubando os carros que se
aventuram a passar. Muitos são incendiados e caso reajam os ocupantes são
imediatamente massacrados. As brancas, em hipótese alguma podem sair às ruas.
Foi restabelecido o
tráfego ferroviário e resolvo partir. Levo minha arma na bolsa tiracolo,
juntamente com quatro granadas de mão.
O padre me dá uma carona
em seu VW e mal dobramos a primeira esquina deparamos com uma turba armada, que
revista os carros e as malas! Na calçada ainda arde um Ford Escort, tombado por
eles...
Somos barrados e cercados pela multidão negra. Minha bolsa está à vista no
banco de trás, mas nunca conseguiria sacar a arma ou as granadas a tempo. E
irão revistá-la! Sinto-me empalidecer intensamente, acabou-se, me vejo
massacrado até a morte. Se puder agarrar minha arma venderei caro minha pele.
Só sinto pelo padre, estou desolado, o infeliz não sabe de nada e pagará
igualmente. Decido que tentarei reagir quando forem apanhar minha valise, pois
estarei perdido de qualquer maneira.
O padre abre o
porta-luvas para mostrar que não há nada e o negro, com a cabeça metida dentro
do carro olha para a tiracolo no banco traseiro. Deixo de respirar.
Subitamente pergunta:
- Não é o senhor padre?
- Sou sim, meu filho.
- Ah, bom, passa, passa!
E a massa humana abre
caminho para o VW, que arranca devagar, levando como passageiro um aprendiz de
guerreiro semimorto de tensão...
Não mais abri a boca,
afundado no assento, até me despedir daquele santo padre!
Com o bilhete comprado
não mais me arriscaria inutilmente, agora que faltava pouco para abandonar um
inferno em que muitos brancos haviam deixando o pêlo. No banheiro desfiz-me do
pequeno arsenal no cesto de lixo e tranquilo fui esperar a hora da partida.
Ainda seria revistado
duas vezes durante a viagem por guerrilheiros armados, a quem tive que dar
explicações sobre o funcionamento do meu pequeno barbeador a pilhas, para eles
uma granada. Um inclusive saltou comicamente para trás, assumindo posição de
defesa, ao ouvir o zumbido do aparelho!... Foi com alívio que os vi saltar do
trem e 100 metros à frente cruzamos por uma placa onde estava escrito: Vila
Salazar-Rhodésia. Adeus Moçambique, ou melhor, até breve, voltarei! Fui ao
vagão bar e deixei que as "Lions" vazias se enfileirassem em minha
frente...
III
RHODÉSIA
- ZAIRE
Quando
a locomotiva freou suavemente na agradável estação de
Salisbury, já sabia para onde ir: 11, Baker Avenue. A pensão era só de
portugueses, pequena e bem localizada. Já lá estivera da outra vez e
me tornara amigo do proprietário, que fazia questão de pertencer à chamada
"reação"!
Cumprimenta-me
efusivamente, relata suas aventuras (havia passado a fronteira
quando da revolta de 7 de setembro) e me informa que a desforra está
em marcha.
Telefona de imediato para um dos "chefes",
segundo ele:
- Tenho um "gajo" importante para vocês, foi
legionário, é piloto e esteve metido no 7 de setembro também. Está aqui na
minha frente. Escuta algo que não lhe agrada, responde rapidamente:
- Não, não lhe dei
seu nome, fique tranquilo, OK, OK, ele ficará aqui.
Desliga e diz que o contato virá à pensão
me entrevistar, tratando de arrumar um
quarto em seguida, enquanto me deixa a pardas
novidades.
Nos arredores de
Salisbury estão os "Flechas" da DGS, que juntamente com seu
chefe, Major Alves Cardoso, fugiram de Moçambique
com todo equipamento possível. São recebidos pelo Rhodesian Army, com o qual passam a trabalhar.
Constituem uma
excelente "task-force" para uma provável contra revolução
e o que é mais importante, continuam unidos.
Espalhados pelas
pensões e guest-houses, muitos comandos desertores, entre
eles alguns que foram auxiliados pelo meu amigo E.C. durante
a fuga. Dão-me notícias suas, no momento está em Johanesburg com
uns membros do Wild Goose Club; está em boas mãos.
Os "planos" de
contra revolução se fazem nos bares, em calorosas
"discussões regadas a Lion e Castle, as cervejas locais...
Travo
conhecimento com o Capitão Valdemar, dos comandos e o
Alferes Esteves, dos Pisteiros de Combate e nos tornamos amigos.
Sou
rapidamente entrevistado pelo emissário do grupo em formação,
que diz contar com apoio da África do Sul e Rhodésia e passo
a ter minha estadia paga por eles. A única ordem é esperar.
Passo
a conhecer melhor o esquema quando sou requisitado para
o grupo de Segurança nos escritórios da Organização. Trata-se de
uma série de salas num dos andares de um edifício na própria Baker Avenue, a poucos
metros do Centro de Recrutamento do Exército. O chefe, ou melhor, o que
apareceria como chefe é o dissidente da
Frelimo, Miguel Murrupa, que ocupara um alto posto quando ainda na
Tanzânia. É pró-ocidental e pretende criar um governo
de harmonia entre brancos e negros.
Mas
está completamente desorganizado, entregue às mãos oportunistas
ou inexperientes, como seu lugar-tenente autodenominado "Capitão
Gravata", um sonhador e despreparado contra-revolucionário, a quem
entregou a organização militar.
Os
mapas cobrem as paredes, com setas, círculos, quadrados, triângulos,
nas mais variadas cores e tamanhos, tudo extremamente decorativo
e "igualzinho aos filmes de guerra"!
Este
ridículo é trágico, pois para aí são desviados os esforços, verbas
e pessoal operacional que poderiam ser úteis se bem dirigidos. Desta
maneira vão sendo diluídas as forças contra revolucionárias, num momento
que o governo de transição de Moçambique era tão frágil que
cairia até com um simples empurrão.
Chega
à Rhodésia Jorge Jardim, um político e homem de negócios, bem
conhecido em Moçambique pelo seu dinamismo e a quem se imputava
a cri ação de um grupo mercenário para reagir contra a Frelimo. Hospeda-se
no Salisbury Motel, a 13 quilómetros da Capital com sua numerosa
família e o Major Abecassis, dito seu ajudante de ordens.
Sou
designado para observar seus movimentos e lá me instalo como
hóspede. Nos primeiros dias nada me escapa. O movimento dos
veículos, as pessoas que os visitam e os roteiros que percorrem.
Mas nada dessas informações é usado, pois se telefono
para que siga o carro tal, chapa tal, que saíra com o político às
tantas horas, a confusão está feita. Não conseguiam nem articular um simples
controle dos seus passos na cidade.
Neste
ínterim, E. C. chega à Rhodésia, vindo de Johanesburg e se
diverte com o que lhe conto. Também é recrutado como "especialista em
tanques" e tem sua estadia paga!
O
"sinistro" Capitão Gravata, futuro Comandante em Chefe do exército
invasor está escrevendo à máquina; E. C. está a seu lado verificando
uma lista de recrutas. Batem a porta.
O capitão não para de trabalhar e ordena em voz baixa:
- Se eu parar de escrever, você salta para o lado!
E.C.,
sem muita vontade para farsas, explode em uma gargalhada, constrangendo o
"herói" e prejudicando a carreira, como me confidenciou mais tarde, divertido, o brasileiro que já com sua dose de
aventura em Moçambique, decidiu
retornar à Pátria.
Por
minha vez não perco mais tempo também e prefiro observar as simpáticas
e charmosas filhas do político, ao invés de brincar de espião...
Passo
a ter discussões homéricas nos escritórios, tentando induzi-los
a realmente produzirem algo, mas nada surte efeito.
Vivem de sonhos...
NOS COMANDOS
Os Flechas começam a se
aproximar e um dia avisam que o "patrão" (Alves Cardoso) quer falar
comigo.
Nos arborizados jardins
atrás do Monomatapa Hotel será o encontro. Enquanto converso com o segundo
em comando, o Major entrevista outro indivíduo contatado. Despedem-se e
saem em sentido contrário, o Flecha manda-me segui-lo.
Encontro-o mais à frente num banco e me apresento.
Pede minha opinião sobre a Organização em
que eu estava (que muitos diziam ser ele o verdadeiro chefe) e não tenho pejo
de criticá-la como inoperante e ridícula; é sua opinião também e
categoricamente avisa que nada haverá em Moçambique. São apenas boatos e
bravatas, os recursos foram desperdiçados irresponsavelmente.
Seu grupo, o único
realmente operacional fará a contra-revolução, não diz onde nem quando e eu lhe
interesso como piloto.
Sem qualquer dúvida
acredito no homem que é o militar mais condecorado em combate do Exército
Português; não se trata de outro nebuloso' 'Capitão Gravata'' e ao contrário
dos outros grupos, tem realmente o apoio da Rhodésia, através do Special Branch
(Serviço Secreto).
Mudo para um apartamento
da Gail Flats, na Jameson, a avenida principal e ali tenho a função de captar e
anotar toda a transmissão referente aos combates entre os grupos rivais
angolanos. Nada é certo, mas começa a ficar claro que nosso objetivo será
Angola.
Aceleram-se as
entrevistas e realmente uma seleção rigorosa é feita. Somos avisados que iremos
contribuir para uma independência, não como mercenários - nada receberemos -
mas sim como futuros membros das forças armadas em formação.
Um visto de entrada
turística me é dado para preencher. País: Zaire, ex-Congo Belga; endereço:
Delegação da FNLA, Frente Nacional de Libertação de Angola, de Holden Roberto,
o líder pró-ocidental.
Alves Cardoso fora
contratado pela FNLA, com o intuito de treinar e enquadrar os novos comandos
do ELNA, o exército de Holden, que se preparava para uma batalha pelo poder
contra seu rival Agostinho Neto, marxista e seu movimento fantoche dos russos,
o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola).
Este último recebia
ajuda dos cubanos e da Brigada Internacional, constituída de alemães orientais,
checos, etc. e Holden tinha que se precaver ou seria esmagado.
Em julho de 1975,
embarquei num Boeing 737 da Rhodesian Airways com destino a Johanesburg,
juntamente com Simões, um Flecha de quase dois metros de altura.
Lá, no próprio aeroporto
Jan Smuts, orientados pelas instruções recebidas, encontramo-nos com o Major
Alves Cardoso e juntos partimos em um voo da Sabena para Bruxelas que escalará
Kinshasa, ex-Leopoldville, a capital zairense.
NO ANTIGO CONGO BELGA
O DC-10 belga aterrou no
aeroporto N'Djli; no estacionamento, dois gigantescos aviões cargueiros C-191
do Military Air Transport, da Força Aérea dos Estados Unidos. Placas nos
prédios avisavam da proibição de fotos.
Ainda na escada o Major
é recebido por um Ministro da FNLA e nos dirigimos para a sala VIP, onde somos
apresentados a outros membros da Frente de Libertação. Éramos os precursores do
grupo, vínhamos preparar sua chegada e os angolanos não escondiam o quanto
esperavam de nós.
Em minutos nossa bagagem
é liberada sem passar pêlos demorados trâmites legais e levam-nos para o
Intercontinental, o melhor hotel do Zaire, onde, confundidos como guarda-costas
do major fomos alojados no apartamento ao lado do seu, após o ocupante
anterior ser delicadamente transferido para outro!
Da janela vejo o rio
Congo, preguiçoso e inteiramente coberto de plantas aquáticas, a contornar o
hotel. Na outra margem, o para nós incómodo Congo-Brazaville, que apoia o MPLA.
Ocupamos o tempo de
espera dividindo-o entre a piscina e os dois bares do Inter. Cinco dias
passados e chega a primeira leva, sob o comando do Capitão Valdemar,
assessorado pelo Alferes Esteves.
Haviam sido secretamente
transportados de Salisbury para a Base Aérea de Gwelo, no interior da Rhodésia
e ali embarcaram num velho mas sempre eficiente C-47 pilotado por belgas.
Atravessaram a proibida Zâmbia e escalaram em Lumumbashi, ex-Elizabethville,
onde dormiram, seguindo finalmente para o aeroporto de N'Djli onde os
esperávamos.
Maldizendo a sacolejante
viagem rasante através das montanhas, subiram apressados para as Kombis (made
in Brazil) da FNLA e foram levados para o Hotel Matonguê, nos arredores.
Entrei no C-47 com alguns sacos vazios e transportei para
………………………………………..
IV
ANGOLA
A primeira localidade,
Luso, estava praticamente abandonada. Em um prédio sujo e com os vidros quebrados,
onde ondulava a bandeira amarela e branca da FNLA, meia dúzia de guerrilheiros
fizeram o controle de nossas viaturas sem opor obstáculos, graças ao passe
assinado pelo próprio Holden.
Nas poeirentas estradas
antes atulhadas de transportes militares portugueses, nada se via. Não cruzamos
com nenhum veículo até chegarmos em São Salvador, uma próspera vila nos tempos
anteriores à revolução de 25 de Abril.
Na pista de pouso ainda
estacionavam dois aviões particulares e pelo menos uma centena de brancos ainda
ali viviam, desprezando o êxodo para a Europa e confiando no futuro. Fomos
acolhidos com alegria e ali almoçamos.
Seguimos em frente até
chegarmos ao litoral, na agradável vila Ambrizete, que também demonstrava
sinais de esvaziamento com o comércio praticamente paralisado e poucos brancos.
Dali, uma estrada asfaltada corria até Ambriz, nosso destino.
Já era noite feita
quando penetramos na cidade. Ali o movimento aumentava, notava-se grande
atividade de militares, inclusive grupos femininos, sempre armados com a
pequena Uzi, a eficiente pistola-metralhadora israelense.
Ambriz, à beira mar, assentava-se sobre uma ponta escarpada, que ia
progressivamente suavizando até se transformar em praia. Possuía algumas ruas
pavimentadas e a avenida principal terminava em uma praça, defronte da qual
destacava-se a silhueta baixa e escura da fortaleza, uma centenária construção
militar portuguesa, agora transformada no principal quartel do Exército de
Libertação Nacional.
As Kombis passaram pelo
portão do forte e estacionaram no centro do pátio. Saltamos para fora,
esticando o corpo cansado da longa e incómoda viagem.
Os soldados negros, de longe, nos miravam com curiosidade.
Dá-nos as boas vindas
Hendrik Vai Neto, Ministro da FNLA, talvez o mais influente de todos, pois
realmente trabalha na linha de frente, longe das mordomias de Kinshasa e Holden
lhe é grato por isso.
Explica-nos as pobres
condições de vida do local, a falta de alimentos e conforto, desculpando-se
pelo mínimo que nos pode oferecer. Um pequeno lanche foi preparado numa pensão,
a única que ainda funciona e de lá mesmo somos distribuídos pêlos diversos
alojamentos na vila, pois no momento não é possível ficarmos todos reunidos.
Isto não me agrada, pois
divididos e espalhados nos tornamos fracos num local onde sabemos que nem todos
pensam como o presidente Holden, muitos são contra a presença de brancos no
ELNA.
Alguns ficam na própria
pensão, outros em casas particulares cujos donos fugiram para a Europa e eu
fico só, alojado no hotel dos oficiais, construção de dois andares em frente à
pensão.
O quarto é razoável, o
comandante que me instala consegue um mosquiteiro e procuro tomar um banho. Não
há água corrente e o pessoal lava-se no pátio, com latas que enchem num
reservatório... os banheiros estão imundos, ninguém se preocupa com a limpeza.
Recordo-me que afinal
estamos em guerra, que mais queria eu! ? Sem banho, resolvo dormir, que o
cansaço já se faz presente e amanhã é dia de trabalho, pois ajudar a construir
uma nação é serviço pesado e não se pode perder tempo!
Às seis da manhã estamos
tomando café na pensão. Um padeiro ainda trabalha na Vila, embora com
limitadíssima produção e num louvável esforço consegue nos oferecer pequenos
bolos doces. Produz também diariamente uns 50 pãezinhos, para consumo na
residência do Presidente, quando este permanece em Ambriz.
………………………………………..
O PRIMEIRO AVIÃO
Durante o almoço chega o
Major Alves Cardoso que me ordena deslocar até Carmona, a mais populosa cidade
do norte de Angola, a fim de conseguir um avião no aeroclube local, que
usaremos para reconhecimento.
O Major pretende
deixar-nos, o mais rapidamente possível, independentes em termos operacionais,
para que nossas ações não sejam prejudicadas pela natural incapacidade militar
dos africanos, acostumados com guerrilhas e não guerra clássica como se estava
desenvolvendo aquela.
Num Land-Rover, parto na
manhã seguinte e embora continue em trajes civis, levo comigo agora o
inseparável fuzil.
Em Carmona a vida
transcorre quase normalmente, não fosse os restaurantes servirem prato único e
a cerveja escassear. Sou hospedado num bom hotel, de vários andares, a serviço
da FNLA.
Nas ruas ainda se
encontram as Patrulhas Integradas, constituídas de soldados portugueses,
UNITA e ELNA; a Polícia da Segurança Pública ainda controla o tráfego, sem
muito interesse. Os carros, repletos de africanos, rodam com gasolina de
aviação em sua maioria; foram simplesmente apanhados no aeroporto ou nas ruas,
abandonados pelos donos e funcionam com ligação direta.
Ao chegar no aeroporto
posso sentir os efeitos da guerra civil; dezenas de famílias brancas se
amontoam pelo chão do saguão principal, sem condições de higiene e alimentação.
Esperam pêlos aviões da FAP, que fazem uma ponte aérea diária com Luanda, de
onde serão repatriados para Lisboa.
É um espetáculo
degradante, mas nada posso fazer; cada chegada do avião provoca cenas de quase
pânico, dos que temem serem deixados para trás.
No aeroclube, jogados às moscas, além de uma dezena de valiosos pára-quedas
esportivos para-commander, papillon e outros, estão dois Cessnas, um
Auster e um Cherokee. Este último é particular e dos outros apenas um pequeno
150 não está em pane. Para voos de reconhecimento o Auster seria o ideal, mas
na sua falta o Cessninha poderá fazer o serviço satisfatoriamente, pousa
e decola curto de qualquer estrada ou terreno!
O piloto do Cherokee se
oferece para me instruir no comando do 150, pois eu estava acostumado com um
jato, pesado e não com o leve e frágil aparelho. Voamos quase duas horas,
até que eu deixasse de entrar alto na pista e passasse a aproveitá-la no
início.
Realmente era engraçado
pilotar algo tão delicado em guerra, quando na paz do Brasil pilotava um
versátil e rijo T-37, birreator!
Após rebuscar as gavetas
da secretaria do Aeroclube e conseguir mapas, régua, transferidor e um
computador manual Jeppsen, tudo o que eu necessitava para navegação aérea,
considerei-me apto a voltar para Ambriz.
O Major Moura, do
Exército Português, que se passara para a FNLA, pede-me uma carona e na manhã
seguinte mal clareara o dia empurramos o avião para a bomba de combustível,
enchemos os tanques e partimos, sem que ninguém perguntasse por nada!
Na cabeceira da pista
olho o tempo; não estava nada bom, mas não quero demorar mais em Carmona, meu
trabalho é preciso na frente de combate. Manete ao máximo, acelerei o 150 pela
faixa asfaltada, segurando-o rasante até conseguir uma boa velocidade; puxei o
manche e numa chandelle (curva em ascensão) ganhei altura, aproando
Ambriz a 270 graus.
Mas Carmona era cercada
por montes e tive que subir para transpô-los, penetrando sem mais alternativas
na densa camada de nuvens que cobria a região.
Somente aí é que
procurei pêlos instrumentos de navegação e simplesmente nada encontrei, apenas
um indicador de curva, trabalhando com grande retardo. Cercado pela densa massa
branca, desorientei-me e quando dei por mim o avião estava saindo da camada, em
parafuso!
Os reflexos falaram mais
alto e ao notar as montanhas "girando" abaixo, acordei, lancei
o manche à frente e chutei o pedal com violência, saindo da perigosa manobra
sem maiores consequências que um susto. O leigo major nem deu pela coisa, todo
sossegado em sua cadeira.
Já desperto, com mais
respeito pelo avião, penetrei cuidadosamente na camada até rompê-la, quase 4000
pés acima. Com o sol a aquecer-nos e o tapete branco aos nossos pés, voei pela
bússola magnética fazendo de quando em quando correções do vento, às cegas,
instintivamente, pois nenhum ponto tinha para me localizar.
Passado pouco mais de
uma hora, tempo previsto para a viagem, as nuvens continuavam sólidas lá em
baixo. Resolvi, sempre no palpite, voar mais 15 minutos na rota e depois
iniciei a descida.
- Olho aí fora, Major, se vires alguma montanha me avise!
-OK!
No litoral não havia
elevação, mas a nossa "navegação por palpite" não me oferecia a
certeza de que fora realmente para lá.
Reduzi o motor e comecei
a penetrar na camada, suavemente e em cinco longos minutos aterra apareceu,
estávamos exatamente em cima da praia, com Ambriz à nossa esquerda, visual!
Mostrei a vila ao meu
companheiro, que não acreditou na "eficiência" dos cálculos feitos:
- Não é possível, deve ser Luanda!
- Que nada, é Ambriz -
retruquei, seguro de mim... e com uma rasante sobre o quartel, anunciei
minha chegada.
Preparava-me para o
pouso quando fui cortado e saudado por um bimotor Beech, era Holden Roberto que
também regressava de Carmona. No solo, estava o jeep Toyota do nosso grupo
esperando, mas antes, perfilei-me à saída do bimotor para receber e
cumprimentar o Presidente, como fizeram todos os presentes.
Magro, alto, sempre com
óculos escuros, Holden demonstrava no falar e no agir simplicidade e calma.
Depois que os conflitos entre os movimentos de libertação se transformaram numa
aberta guerra civil, ele permanecia a maior parte do tempo em Ambriz, seguindo
de perto as operações militares, muitas vezes debaixo de fogo para desespero de
seus auxiliares.
O FIM!
MOÇAMBIQUE ATIRADA, PRECIPITADAMENTE,
PARA O
"ABISMO"
Ela irá sofrer o seu holocausto. Traída pelo
próprio Portugal, por alguns dos seus próprios filhos, será entregue de uma
maneira traiçoeira, miserável e cruel.
Minha querida Moçambique!
Eis que chega mesmo o seu Apocalipse. Passavam-se
já dez anos de guerra e o terrorismo já pouco aparecia. Ele em nada afectava o
seu andamento. O Comando Supremo anunciava que o terrorismo estava acabado.
De Lisboa começaram a chegar notícias de que
Moçambique ia ser entregue a um dos movimentos empenhados na sua independência,
a Frelimo. Mas a que propósito? Se havia outros movimentos empenhados no mesmo
e que para isso também lutavam, porque só à Frelimo iam ser entregues os
destinos de Moçambique? As maquinações para esse desfecho repentino tinham sido
feitas na sombra e até já vinham de longe.
Um pequeno grupo que se apercebera da traição
procura tomar medidas para alertar o povo moçambicano da tragédia eminente e
fazer ver isso ao Governo em Portugal. Em Lourenço Marques, toma de assalto o
Rádio Clube e emana para toda a Província um alerta que a electriza.
Como nos últimos anos
os salários foram sempre aumentando, uma percentagem enorme de negros já
possuía os seus rádios. Facilmente contrabandeados da Rodésia e do Malawi,
era-lhes facílimo adquirirem-nos.
Calculava-se em perto de meio milhão o número de
rádios lá dentro. Ávidos de notícias e propagandas, juntavam-se aos magotes
para as ouvir.
A não ser uns poucos traidores, míseros
tartufos e oportunistas internos, ninguém, pode dizer-se, ninguém, concordava
que os seus destinos fossem entregues a esse partido, que já se mostrava
absolutamente comandado pela Rússia. O acordo de Lusaca não estava ainda
totalmente assinado. Estava, sim, por alguns que atraiçoaram Moçambique e que a
seguir atraiçoariam quase todo o Ultramar Português. Quando se diz quase é
porque faltou Macau que, de momento, não interessava à China, e os Arquipélagos
da Madeira e dos Açores. Este último, como estava hipotecado aos Estados Unidos
da América não seria entregue com tanta facilidade, pois na verdade qualquer
destes dois arquipélagos foram na mesma "colonizados”.
Apela-se então angustiosamente para um General
que, como chefe supremo da nossa Pátria, esteve nesse posto o tempo suficiente
para que a traição se consumasse e, como é óbvio, foi pouco. Ele subscreveu o
miserável Acordo de Lusaca. Acordo, rendição, tratado, venda, chamem-lhe o que
quiserem: rigorosamente, o documento mais traiçoeiro e covarde de que os
portugueses foram vítimas em toda a sua história. Há quem diga que esse
movimento foi idiota, que, para ter efeito, devia ter sido feito mais cedo. É
muito fácil ser-se estratega de café. Ele falhou. Tinha que falhar. A traição,
bem planeada, já vinha de muito atrás, teve uma virtude: alertou o Mundo,
sobretudo este Mundo Ocidental cego sobre o futuro a que a África Austral se
condenava.
Dava a impressão de que o nosso exército
tinha sido miseravelmente derrotado, quando isso não acontecera. Pelo que diz o
Dr. Marcelo Caetano no seu livro, "O 25 de Abril e o Ultramar", vê-se
que já havia artistas para esta grande farsa.
Logo a seguir, o chefe da Frelimo, Samora Machel,
badalava aos quatro ventos, que tinha derrotado o exército português. Meu Deus!
Ao que chegaste, querido Portugal! Os teus próprios filhos a apunhalarem-te por
todos os lados. Em Lourenço Marques aquele grito de angústia é calado.
Segue-se uma
carnificina horrorosa. Milhares e milhares de portugueses, que o foram até esse
dia, são selvaticamente chacinados - portugueses de todas as raças. Mas o
exército, esse exército ido da Metrópole, já virava costas. Deve-se a uns
poucos militares dos comandos, pára-quedistas, grupos especiais, fuzileiros
navais que agiram, por conta própria e a muitos civis, a carnificina não ter
sido maior. Começava a informação a ser controlada com todos os requintes para
introduzir novas ideologias e, sobretudo, o ódio contra o português, o branco,
que tinha de ser acusado como opressor, escravizador, colonialista e
imperialista, para a seguir sofrer toda a casta de humilhações a que o ser
humano pode ser sujeito. De que resultou essa carnificina? Hábeis agitadores
tinham levado a ideia de que o Rádio Clube estava nas mãos dos
"opressores" brancos. Era necessário toma-lo. A Frelimo era agora
quem mandava. Abaixo os brancos! Morte aos brancos! Viva a Frelimo!
Mais de duzentos mil negros, habitavam à volta de
Lourenço Marques. Então um número incalculável, armado de catanas, facas,
ferros e armas começam a convergir de todos os lados e com um objectivo: chegar
ao centro da cidade, ao Rádio Clube, matar todo o branco que lhe apareça à
frente. E foi a chacina. Eles não chegariam ao centro da cidade, mas o saque,
os incêndios, os crimes atingiram proporções terríveis. Foram três dias de
horror naquela bela cidade.
No fim, em valas abertas por “bulldozers” seriam
enterrados milhares de corpos horrivelmente mutilados, marcando a primeira
consequência do Acordo de Lusaca. Nesse confronto, a maioria dos mortos seriam
negros. Na caminhada para a cidade matavam os brancos que iam encontrando,
incendiavam-lhes as casas, saqueando lojas e armazéns. Completamente
embriagados, desvairados e desorganizados ainda chegaram bem dentro, mas foram
violentamente sustidos.
Mas os agitadores,
porém, continuavam o seu trabalho. Tinham morrido muitos negros: à volta de
dois mil. Agora tinha de ser dada uma lição aos brancos, foi o 21 de Outubro!
Na baixa da cidade um grupo de comandos responde a tiros aos insultos e vexames
que elementos da Frelimo proferiram atingindo mesmo a Tropa. Estava lançado o
rastilho! Milhares de negros bloqueiam todas as saídas da cidade; dá-se
novamente o assalto a lojas e casas. Começam a chegar carros que levam e trazem
quem trabalha na cidade: Começara a matança. Desprevenidos, carros e camionetas
de passageiros vêm cair numa ratoeira que jamais previam. Obrigados a parar,
não deixam que os passageiros saiam. São virados e incendiados.
Quando, num carro, ao longe, os ocupantes
pressentiam a armadilha em que cairiam, paravam e saíam numa tentativa vã de
salvação. Eram imediatamente perseguidos por uma multidão em fúria, e
massacrados impiedosamente.
Um amigo meu, o velho
Tomás, a quem chamavam o Vovô Tomás, dos Serviços Meteorológicos, onde
trabalhava, muito bom homem e muito querido por todo o pessoal, foi agarrado
quando regressava do aeroporto, do serviço, e depois de bem seguro por meia
dúzia de facínoras, outros meteram-lhe um ferro de construção, muito afiado, do
ânus à garganta, tendo morrido aos gritos lancinantes, perguntando porque lhe
faziam aquilo. "Porquê? Porquê?" No fim, meteram-no no próprio carro
onde ficou carbonizado.
Mulheres de qualquer
idade e raparigas, mesmo miúdas, eram levadas para o meio do capim e
violentadas, algumas até à morte, por feras humanas, que nelas despejavam o
ódio selvagem e lúbrico de que estavam possuídas. As poucas que sobreviveram,
ficaram patetas para toda a vida.
Morreram assim com uma barbaridade diabólica,
portugueses, brancos, cujo número é difícil de calcular. Há famílias que jamais
saberão dos seus entes queridos. Ainda àqueles que conseguiram desmantelar a
primeira grande investida contra a cidade, outra vez se deve a não ter ido mais
longe esta nova carnificina. Quando milhares de negros se preparavam de novo
para invadir a cidade, um punhado de portugueses, daqueles que não se fez
história, mas provando a raça, reunidos e um tanto organizados à última hora,
fez-lhes frente e dispersou-os. Mas os habitantes da cidade são tomados de
terror. Os que podem, começam a dirigir-se para o cais, onde, navios, alguns
portugueses, mas a maioria estrangeiros, são ocupados por indivíduos
desvairados. Estes, largam, superlotados e, muita daquela gente é evacuada para
Durban, havendo quem tivesse seguido para a Índia. Ainda eram as consequências
imediatas de Lusaca!
Mas antes, bastante antes deste sinistro acordo, uma companhia de
infantaria, lá para o Norte, rende-se vergonhosamente a meia dúzia de Frelimos
e é obrigada por essa meia dúzia a atravessar o Rio Rovuma, prisioneira, sendo
logo a seguir visitada pelo chefe da Frelimo que lhe chama restos miseráveis de
um exército imperialista, que ele tinha derrotado. Operadores habilmente
manipulados, filmam esta vergonha que a seguir é projectada em todos os cinemas
de Moçambique e do Mundo. Pelo Chire, na Zambézia, onde os terroristas nunca
tinham conseguido pôr os pés, entrava um grupo chefiado por Bonifácio Gruveta,
um dos bons guerrilheiros da Frelimo, uns vinte homens, dão meia dúzia de tiros
e instalam-se. Pronto! A Zambézia estava ocupada!
Do nosso exército, havia uma companhia em Milange e outra no Chire.
E quem escreve estas linhas, porque voava nessas
regiões, é uma testemunha desgraçada e infeliz do que havia de acontecer.
Por detrás de tudo já havia traição.
Os altos comandos desviam para o Chire uma
companhia de Fuzileiros navais que, à primeira vista, irá dar ânimo à que lá
estava e reforçá-la. Qual!
Os componentes da companhia que já lá estava, andavam pelo mato, com
bandeiras brancas à procura de terroristas para pedirem, não sabia eu bem o
quê! Os da companhia de Milange faziam o mesmo. Eu contactava diariamente com
todos. Levo, no meu avião, de Quelimane para o Chire, dois Capitães que, a
mando dos altos comandos, iam ver o que lá se passava, fazer um inquérito. Lá
aterrámos e, chegados ao quartel, mesmo ao lado da pista, fomos recebidos por
dois oficiais dos Fuzileiros Navais. Essa companhia, dada a desmoralização,
aparecia-me também como um espectro miserável do nosso Exército. Quase duzentos
homens, a maioria desfardados, deambulavam por aquele grande quadrado, apáticos
a tudo. Para reunir a companhia de infantaria, que era o objectivo, passaram-se
horas. Então, simples observador que também já tinha sido soldado, começo a
suspeitar que algo de muito grave haveria por detrás de tudo. No meu tempo um
traidor era sumariamente fuzilado. Por fim, lá formou a companhia na parada do
Quartel. Aquilo, de tropa não tinha nada. A maioria apresentava-se em calções e
sem camisa. Era tempo quente. Calçados de sapatilhas desportivas, eram um
escárnio ao exército. Mas lá formaram. Um dos tais Capitães que eu levara,
falou, mas de que maneira! Que tinha vindo ali para se inteirar do
comportamento da companhia, pois havia notícias de que ela se recusava a combater.
Que estava ali a companhia de Fuzileiros Navais, chegada três dias antes para a
reforçar, e que não havia qualquer justificação para a atitude que eles estavam
a tomar, o que podia ter gravíssimas consequências. O homem, que me parecia
algarvio, falou, falou e eu, colocado meia dúzia de passos atrás, só notava na
cara da rapaziada sorrisos irónicos, que ainda mais me baralhavam. Até que
ponto chegaria a sinceridade daquele Capitão? O que estava a acontecer ali não
passava de uma farsa. O Alferes mais antigo, como aquilo já durava há muito,
percebendo que a rapaziada se preparava para destroçar, virar as costas ao
Capitão, falou também alto e em bom som: "Olhe, meu Capitão! Aqui a guerra
acabou! Não há mais guerra, façam o que quiserem. Acabou!"
Julgava eu que dali resultaria uma reacção
enérgica de quem tanto falara, mas fui logo surpreendido pela maneira suave
como ele deu ordem para destroçar. Já eram mais que horas para se comer
qualquer coisa. E lá fomos, eu, os dois Capitães e os Oficiais da companhia de
Infantaria, todos Alferes. Eu notava que naquela fase final não havia Capitães
de carreira à frente das companhias. Só milicianos.
Depressa se comeu uma boa caldeirada daquele
peixe "pende" do Rio Chire. No fim, sentados, o Capitão puxa da sua
pasta de inquérito e, um por um, foi questionando todos os oficiais. Fosse pelo
caminho que fosse, no fim ele obtinha sempre uma resposta firme e concreta:
“Acabou a guerra! Não fazemos mais guerra!"
Único civil no meio
daquela tropa, comecei a sentir-me francamente mal disposto. Resolvi
levantar-me e ir lá para o fundo da sala, onde havia um mapa, e disfarçar,
fingindo calcular rumos e distâncias, mas a minha cabeça era um turbilhão. Lá
para cima, em Milange, andava o Capitão miliciano, claro, e os Oficiais, atrás
do Bonifácio Gruveta, a pedir paz. Ali, era o que estava a ver. O que se
passaria por detrás de tudo isto? O Capitão levanta-se e diz para os Oficiais:
"Vocês fizeram afirmações muito graves, mas uma vez que as fizeram, eu
aconselho-vos a que as mantenham sempre, senão será muito pior. Têm de manter o
que disseram!" Ainda mais baralhado fiquei. Virou-se então para o outro
Capitão, o que nos tinha acompanhado e disse: "O que diz o camarada a
isto?" Este levanta-se e eu jamais poderei esquecer a resposta. Porque
éramos amigos, esperava que algo de concreto saísse dali e saiu: "Merda!
Merda! Merda!" Foi esta a sua resposta!
Foi assim que para mim acabou o exército na minha querida Zambézia,
foi assim que acabou o nosso exército ! Era o fim. Regressamos a Quelimane e,
dali, os dois Capitães seguiriam para a Beira, a dar contas, e eu, para o
Gurué. No dia seguinte passaria por Milange. Vergonha das vergonhas! O
Bonifácio Gruveta tinha mandado colocar duas minas anti-carro na estrada
Milange-Quelimane, que tem trezentos e oitenta quilómetros e avisaram:
"Não passa carro nenhum por essa estrada, nem pela de Milange/Gurué,
duzentos quilómetros, nem Milange/Mopeia, outros duzentos quilómetros. Assim
ficou toda aquela área isolada durante um mês. Só eu, de avião, nunca deixaria
de fazer as ligações, sobretudo com Quelimane, onde estava a sede do Governo do
Distrito da Zambézia, A resposta do nosso exército era deambular agora
por toda a parte, com bandeiras brancas, pedinchando paz! Começam então a
aparecer descaradamente Frelimos. Frelimos? Sim. Grupos de vadios que se diziam
Frelimos, que assaltavam as lojas e exigiam roupas, botas, tudo o que fosse de
vestir e de comer. A maioria das roupas, nas lojas, eram de caqui. Então, com
umas calças ou calções, qualquer daqueles vadios, a maioria criminosos, se
dizia Frelimo. Começa a desgraça de todos os comerciantes. Deitavam mão a
qualquer carro, fosse de quem fosse. Saqueiam tudo. Em vez de fugirem de uma
situação desgraçada que lhes foi criada, sem o saberem, há portugueses que
fazem frente, procurando defender o que era seu, seguido de anos e anos de
maiores sacrifícios por aquele mato. Esses eram barbaramente abatidos - homens,
mulheres e crianças!
Outros fogem, levando o
que têm no corpo. Por toda a parte acontece o mesmo. Dada a propaganda incutida
através de anos, chegava a altura em que eles impunemente podiam actuar com o
seu ódio selvagem. Os brancos, contra quem tinha sido assanhada toda a
propaganda, estavam desgraçados. O Exército, único sustentáculo que ainda podia
evitar aquela situação, desaparecera. Nos próprios carros do exército, os
vândalos iriam depois continuar toda a série de tropelias. "Sai português
de merda! Sai branco de merda! Vai para a tua terra!" E foi assim que a
Zambézia praticamente se despovoou daqueles tantos portugueses que há
muitíssimos anos para lá tinham ido trabalhar e não oprimir, nem escravizar,
como a propaganda fazia crer.
Uns morreram, outros conseguiram sair, mas sempre
ficariam alguns que terão de se sujeitar a viver miseravelmente em tais
condições. Por toda a Moçambique acontecia o mesmo.
Mas é fácil avaliar-se a razão da situação tão
repentina e trágica criada àquelas centenas de milhar de portugueses. Note-se
sempre que, bem antes da assinatura do tal acordo, o exército se portava
daquela maneira infame. Era tudo segredo!
O negro apercebeu-se e
toma força, sabendo-se senhor absoluto de toda aquela Moçambique, onde, para
oito milhões que é o seu número, somente trezentos mil brancos estão a mais -
os tais opressores com que é preciso acabar. “Atirem-nos aos tubarões”! Este
incitamento até vinha da Metrópole. De frisar que muitos daqueles negros não
concordavam com esta situação, mas não tinham outra alternativa, senão eram
também eliminados.
A seguir, o Reverendo
Uria Simango, chefe de outro partido pró-independência, era traiçoeiramente
preso no Malawi, levado para Milange e dali, infelizmente num avião nosso, da
minha Companhia, pelo colega Marques, para Metwara, do lado de lá do Rio
Rovuma, na Tanzânia, onde algozes da Frelimo o esperavam e lhe deitaram a mão!
As últimas notícias que tive da Joana Simeão, outra chefe de movimento
pró-independência, que usava óculos com lentes fortíssimas foi que, meia louca,
sem óculos, porque lhos arrancaram, só com uma tanga, porque a querem assim
meia nua, por ali anda - ou andava - até que a morte a liberte de mais
sofrimentos, no campo de concentração da Gorongoza.
Mas foi sobretudo um triste e desgraçado fim para
esta geração de portugueses que, por infortúnio, o teve que sofrer.
Juntou-se tudo: a traição, a morte, a humilhação, famílias desfeitas e
misérias.
Quando
acabará isto?
Entretanto, da Metrópole, os responsáveis por
tudo bradavam para o Mundo que se estava a realizar uma descolonização exemplar!
Será que esses homens esperam chegar até ao fim
da vida impunes? Será que só o peso que sentem na consciência, se é que
a têm, constituirá a pena a pagar?
Este Portugal, de história tão maravilhosa que,
por elevados ideais, se expandiu pelo mundo, marcando uma posição ímpar em toda
a História Universal, viu-se de repente reduzido às dimensões da sua fundação,
mas com uma população imensamente superior. Para onde irão amanhã os
portugueses com mais aptidões para o trabalho? Para onde?
Estava eu entre os milhões de portugueses que
acreditavam que aquela Moçambique, em espantosa evolução em todos os domínios,
se transformaria nas décadas seguintes num dos países mais felizes do
Continente Africano. Dispunha de todas as condições para isso, todas as raças
que a ocupavam se entendiam e cada vez melhor. Fora, de todos os territórios de
África, da África Austral, aquele onde houvera menos racismo e esse pouco, com
o tempo, acabaria. O Acordo de Lusaca incendiou o racismo! Logo a seguir a
propaganda redobrou: "Acabar com os opressores portugueses, colonialistas,
imperialistas!” Para o negro esse opressor era o branco, português. Existiu
então um governo de triste memória, que mediou entre a data da assinatura e a
entrega.
Roma caíu entre orgias e bacanais!
Moçambique cairia,
seria entregue, por um governo que parecia querer mostrar ao Mundo que todos os
portugueses, mesmo os que lá estavam radicados, não passavam de uns covardes.
Esse Governo desarmou todos os portugueses, que foram brutalmente obrigados a entregar
qualquer arma que possuíssem e ai do que fosse apanhado com alguma! Ficaram
assim indefesos e sujeitos a tudo.
Depois desceriam os Chefões da Frelimo,
desde o Rovuma até ao Maputo, entre festas, discursos e banquetes sempre bem
servidos e melhores regados. Eles traziam a Taça de vencedores, oferecida de
qualquer maneira, já explicada. Constatei, que de todos, o mais aberto, com
quem conversei à vontade, ao contrário de outros, foi o Joaquim Chissano, mas
nessa marcha por Moçambique abaixo, todos voariam comigo. Falei com todos. Tal
como falava tempos atrás com oficiais do nosso exército - alguns responsáveis
pela traição - dentro do meu avião, falava agora com estes. Auscultei-os a
todos. O último com quem voei, foi com o Samora Machel, que a seguir seria o
1°. Presidente da República Popular de Moçambique. Mostrei-lhe tão bem quanto
pude, as belas terras, as belas plantações de coco, sisal e chá que sobrevoamos
e faziam parte das riquezas da Zambézia. Mostrei-lhe, lembro-me bem e ele devia
lembrar-se também, se vivesse, as terras do Ile e de Namarrói que produziam a
mandioca de mais fina qualidade de Moçambique e em quantidades fabulosas. O
homem mostrava-se interessadíssimo e ávido de saber. Contudo, esquivava-se à
conversa.
Mas, desde Marrupa, lá bem ao norte, por onde entrara, que as suas
frases predilectas, nos seus longos discursos, eram: Abaixo o opressor
colonialista! Abaixo o Imperialismo! E aquela massa do povo delirava.
Num banquete, na Morrumbala, onde não faltava
nada, daqueles banquetes à velha Zambézia, notei que, comendo galinha, peru e
um ou outro doce, ele só bebia água. Só no fim e porque uma senhora insistiu,
bebeu um pequeno copo de vinho Clarete. O grande discurso seria a seguir no
Campo de Futebol, com um enorme auditório e lá terminou, como todos os outros:
"Abaixo! Abaixo! Abaixo!"
A uma conclusão eu ia
chegando: a minha posição passava agora para a de opressor colonialista ou
imperialista e a dele para a de "O Novo Imperador de Moçambique".
Depressa, como muitos outros, veríamos e sentiríamos os efeitos de tais
discursos, em que se baseava toda a propaganda da rádio levada a todos os
cantos. O povo, na maioria inculto, bebia daquilo e vomitava ódio contra os
portugueses. Eles eram os opressores colonialistas. Completamente desarmados, a
tropa a cavar, absolutamente desamparados, como seria a vida a seguir?
O Luís, esse belo companheiro
de toda aquela aviação, desistia de voar mais sobre Moçambique. Qualquer
cretino se achava com sabedoria e poder para desfeitear profissionalmente fosse
quem fosse, e também a ele, que tanto trabalhara. Mais de trinta mil horas ele
tinha voado sobre Moçambique que tanto amava. Cansado e desiludido, voltou à
Metrópole onde, a princípio teve de cavar batatas, para sobreviver, numa
pequena quinta que o pai lhe deixara. Só mais tarde lhe seria atribuída uma
reforma. As caminhadas que teve de fazer por esse labirinto burocrático, onde
os que vieram de lá só encontravam resistência, ia dando com ele em doido. Em
tempos tinha mandado de Portugal para Moçambique umas centenas de contos,
herança do pai, e construíra na Matola, bem perto de Lourenço Marques, uma
belíssima residência onde pensava acabar os seus dias. Essa casa foi-lhe
roubada e nacionalizada pelo novo Governo.
O nosso último encontro, numa fugida que
eu dei da Rodésia a Portugal, teve muito de alegria e muito de tristeza, ao
recordar tudo aquilo. E ele, sempre e sempre ligado aos aviões e às
possibilidades que eles proporcionam, chamou-me a atenção para esta juventude
actual e para o muito que ela poderia fazer a favor deste povo infeliz, metendo
aviões, claro, e então divagava: "Esta mocidade que estuda, sobretudo a
que tem por finalidade a medicina ou o professorado tem uma oportunidade única
de alcançar o objectivo de voar. A massa estudantil é hoje respeitada por
qualquer destes governos, que queira subsistir. Que exijam desses Governos que
o seu serviço militar seja prestado na arma da aviação. Em seis meses, faz-se
um piloto. Não se compreende que até hoje os serviços médicos não cheguem ao cantinho
mais escondido deste Portugal pequeníssimo, acontecendo o mesmo com os serviços
de alfabetização. A gente só ouve falar em milhões e mais milhões a gastar para
suprir esse mal! Pois com umas dezenas de pequenos e seguríssimos aviões, como
há hoje, e são baratos e, não falemos já em helicópteros, amanhã os jovens
médicos poderiam chegar a todos esses cantinhos, juntando à alegria, que por
força das circunstâncias, lhes dá a profissão que abraçaram, a alegria também
de voar. Depois, com uma dúzia de pequenos aeródromos, umas faixas com umas
centenas de metros, abertas ao longo de uma linha longitudinal deste pequeno
rectângulo que se chama Portugal, puxando um pouco para o interior, pois o
litoral sempre está mais bem servido, resolver-se-ia o problema de uma maneira
alegre, simples e barata, que os grandes políticos querem resolver com os tais
muitos milhões, sempre em tristes imitações de países que têm tentado
resolvê-lo também, acabando tudo em fracasso.
Juntem o agradável ao útil! Voar e trabalhar!"
Será isto uma quimera?...
Eu continuei a voar. A minha
mulher ficava lá para trás, em casa e, embora não mo dissesse, notava, ao fim
da tarde, quando voltava, que ela vivia cheia de temor. Possuíamos no campo da
aviação uma Pousada com restaurante que, de repente, começou a ser frequentada
por toda a casta de malandros, que queriam comer e beber de borla. O
encarregado avisou-nos logo que era impossível aquilo continuar. Fechei-a
imediatamente, alegando que era um encerramento provisório, para obras.
Aparecia-me à tarde o próprio comandante da
Frelimo a exigir que abrisse, acompanhado pelo seu grupo, armado de pistolas
metralhadoras e baionetas, para me intimidar. Até ali eu tinha sido, dada a
minha vida e até porque era amigo de todos, das pessoas mais respeitadas da
região.
Mas aquilo era gente que tinha vindo de toda a
parte, inclusive da Tanzânia, e que não respeitava ninguém. Valeu-me ter
conhecido o guerrilheiro que entrara pelo Chire, Bonifácio Gruveta, que já
então governava a Zambézia e que deu ordens para não me aborrecerem, pois ele
reconhecia-me como elemento útil, que não interessava sacudir. Continuei a sair
todas as madrugadas para os meus voos. Puseram um grupo de dez frelimos de
guarda ao campo da aviação, que grosseiramente revistavam as bagagens dos
passageiros que partiam ou chegavam, à procura de armas.
Transformaram em
quartel uma casa minha, que ocuparam sem qualquer cerimónia. Colegas meus, da
minha Companhia Aérea, eram presos e vexados por toda a parte, onde aterravam.
Mas eu já arranjara outro conhecido da Frelimo, lá em Quelimane, que era o
braço direito do Bonifácio Gruveta e chefe militar da Zambézia,
"comandante" Maquival. Procurava defender-me com mais esse
conhecimento. Este seria mais tarde irradiado da Frelimo e metido num campo de
reeducação. Quando planeei a minha fuga, ele, sem o saber, abriria as portas.
Contactávamos muito e ele ganhou confiança absoluta em mim.
Numa tarde, quando
cheguei, depois de todas as revistas, dirigia-me para casa quando fui abordado
pelo chefe daquela guarda, naturalmente analfabeto, que me disse: "Não
entras em casa, não. Está aqui uma bala que foi encontrada à tua porta. Tens lá
armas com certeza. Vamos passar revista à tua casa". Eles distribuíam
assim balas para comprometerem qualquer um. Não concordei. Vinha cansado e
adoentado, queria descansar. Que passassem revista no outro dia, pois até iria
trazer o Comandante Maquival e então todos podiam revistar tudo. O que eu fui
dizer! Falar no Comandante Maquival! "Aqui não há comandantes. Comandantes
somos todos nós. Quem manda agora é o povo. Vais abrir já a porta. Tens lá
armas. Também és um colonialista". Esta conversa passava-se comigo cercado
por dez homens irresponsáveis, com nove baionetas apontadas ao corpo, por todos
os lados , já todos a berrar, apodando-me de reaccionário.
Era o primeiro passo, se não me acontecesse pior,
para me levarem para o Quartel, onde estavam já vários amigos e porem-me com
eles a cavar de manhã à noite, nos campos em volta. A minha mulher que, de
perto, assistia a tudo sem nada poder fazer, aconselhou-me a que deixasse mesmo
revistar a casa. "Quando acabar a revista a gente quer também falar
contigo" - dizia-lhe o comandante. Mais de uma hora a revistar
minuciosamente tudo e, como nada encontraram, largaram a casa e viraram as
atenções para ela.
À volta da casa havia limpeza mas, lá para trás,
como o terreno era grande, apareciam naturalmente ervas, capim, até um riozito
que passava abaixo. Este chefezito era o protótipo de todos os que eu via ao
passar em Milange, Tacuane, Chire, Mopeia, Morrumbala, Mocuba, Luabo, Chinde e
por tantas outras terras que visitava constantemente - ele, com uma pistola, e
os nove companheiros com pistolas metralhadoras russas, com baionetas. Todos,
de uma maneira geral, analfabetos, mas com "slogans" metidos na
cabeça, que tinham como finalidade, sempre, amedrontar e afugentar os poucos
portugueses que teimavam em ficar na terra a que do coração se agarravam e não
queriam deixar. Nós fomos desses. Tivemos depois que abandonar tudo, após trinta
e dois anos passados só naquele maravilhoso Gurué!
"Mamã! (era dessa maneira que ele a
tratava). Tens que pegar na enxada e capinar ali atrás, onde tem capim. Mamã
também é povo e todo o povo faz a mesma coisa. Também tem que fazer
latrina". Isto foi na altura em que houve uma ordem para se fazerem
latrinas por toda a parte, um simples buraco bastante fundo no chão, com uma
tábua em cima para se fazerem as necessidades e onde muitas crianças viriam a
morrer afogadas no tempo das chuvas, pois aquilo não passava de autênticas
ratoeiras onde elas caíam. Mas a arenga continuou e ele foi mesmo buscar uma
enxada nossa que estava sempre à mão, e entregou-lha. "Compreendeu mamã?
De amanhã em diante toca a capinar!” "Está bem, oh! Comandante !- dizia-lhe
ela. "Está bem!" Daí para a frente, ou me acompanhava no avião ou se
metia no carro mesmo antes de eu sair e ia para casa de amigos, lá na Vila,
regressando a casa só quando eu chegava. Mas ele ficou furioso com essa
atitude. As revistas aos aviões passaram a ser muito mais morosas e
contundentes.
Tínhamos dois cães de grande estimação e, uma tarde quando chegámos,
vimos que tinham vazado um olho a cada um, com as baionetas. Tornava-se
impossível continuar assim. E então, decidi e planeei ir-me embora. Deixaria
Moçambique, a Minha Zambézia, o meu Gurué, os meus amigos e iria. Bem! Para
onde, eu não sabia ainda.
Eu tinha de salvar a própria pele, a da família e
a de colegas que me quisessem acompanhar. Sabia que muitos, por circunstâncias
diversas, não o poderiam fazer. Mas aos muitos que acreditavam naquilo, nos que
batiam palmas por aquilo, que no íntimo pensavam vir a ser "gente
grande", como por lá se dizia, para o que bastava colaborar, mesmo que
tivessem de ser esbofeteados, ninguém se podia aventurar a dar um conselho.
Infelizmente, logo a seguir, alguns colegas,
voando, seriam traiçoeira e miseravelmente abatidos nas regiões de Cabora Bassa
e do Chimoio (Vila Pery), sofrendo mortes horrorosas, o que nada me
surpreendeu, pois a esses eu tinha pessoalmente avisado que, pela força das
circunstâncias, chegara a hora de abandonar a terra que todos nós amávamos.
Retirando três de uma frota que possuía mais de
uma dúzia de aviões, que eram quantos voavam por aquele Norte de Moçambique,
sob a bandeira da T.A.Z., que possuía também vários hangares e Oficinas de
manutenção, cujo valor era altíssimo, a minha consciência estava tranquila,
pois não roubava nada a Moçambique nem aos meus sócios.
Retirava o que era meu e para benefício, se isso
viesse a ser possível, para quem a vida se tornara dificílima.
Por um então, o Mário Ramos, que fugira para a
África do Sul, onde conseguira um emprego e viria a morrer logo a seguir num
trágico desastre no avião que pilotava, a uns escassos quinze quilómetros do
aeroporto de Durban, tendo lá deixado a viúva e dois filhos de dois e quatro
anos numa situação desesperada, era necessário que alguém olhasse.
Tinha um filho, piloto
como eu, que não podia ficar para trás. Por vontade dele, já tínhamos saído há
mais tempo. Havia também um outro motivo forte: constava que no discurso de 7
de Abril de 1976, Samora Machel iria comunicar a nacionalização das crianças, e
ele tinha já um filhito. A criação e educação foi também uma das grandes causas
de muitas fugas que se verificariam em Moçambique.
Acertámos a largada para 6 de Abril, véspera do tal discurso.
Teríamos de resolver
problemas de última hora, que foram resolvidos. Sairiam dois aviões “Islander”,
de dez lugares cada um, na madrugada desse dia, rumo a Salisbury, na Rodésia,
em beleza, sem que ninguém se tivesse apercebido disso. Tínhamos de afastar ou
destruir aquele maldito grupo que não largava. Eles mesmo iriam dar o flanco.
Mas eu, que já expliquei vários desastres
que tive na minha vida de piloto, omitindo mesmo outros de menor importância,
não posso terminar, sem mostrar também como se ia dando o último que, não sendo
eu um crente absoluto, quase sou levado a acreditar num milagre, pois
tecnicamente ainda não consegui saber como me safei. Era um "dia da
Frelimo”, e o Administrador fez uma convocação obrigatória para uma capinação
"histórica" no Gurué. Tinha de ir toda a gente! Resolvi não ir. Nunca
tinha ido a nenhum comício, nem a uma capinação: a que propósito havia de ir
naquele dia? Se ficasse em casa iam-nos buscar. Disse para a minha mulher:
"Amanhã vamos para Quelimane. Não ficamos aqui". Pela manhã levantei
voo num bimotor “Piper Aztec”. Fomos sobrevoar o local de capinação - e até era
interessante. Estavam lá uns largos milhares de habitantes, tudo a capinar.
Tinham começado às cinco horas da manhã. Segui normalmente para Quelimane, onde
deparei com uma nevoeirada tremenda.
O controlador avisou-me que o nevoeiro era muito denso mas, eu, batido
como estava com aquele aeroporto, pedi para tentar aterrar pelo sul, e fui
autorizado, àminha responsabilidade. Fazia tantas vezes assim! Era mais uma.
Fiz a primeira tentativa, que abortou. Fui fazer a segunda e então aconteceu-me
o pior. Não muito longe da cabeceira da pista, passava o Rio dos Bons Sinais. A
uma velocidade de cento e quarenta milhas, bato com o avião na água. Foi como
que uma pedra que a gente atira a rasar a água e, ela bate, levanta, só indo
mergulhar bem lá à frente. O altímetro e. nessa altura, não tínhamos mecânicos
para verificar instrumentos, já quase todos tinham abandonado Moçambique - em
vez de zero, marcava quinhentos pés. Eu ia com toda a atenção no rumo do rádio
farol e à altitude, quando a minha mulher grita de repente e apavorada:
"Água!" Instantaneamente puxei o manche, remeti motores e
instantaneamente também, um grande estrondo e um grande estremeção. Ouvi os
sinos de S. Bento a tocarem alegremente. Felizmente que eu ainda não tinha
arreado o trem de aterragem. O avião batera na água! Fora para o ar, porque eu
o puxara no tal ponto milagroso, e lá vamos nós através do nevoeiro,
experimentando os comandos, que obedeciam, até ver o sol radioso lá por cima.
Rumei para a direita, onde estava o mar, e dirigi-me para a praia do Farol da
Olinda, onde através de tantos e tantos anos, tantas vezes aterrara, e lá fui,
pela última vez, dizer adeus a areias onde penso nunca mais poder voltar. Com
preocupação fiz descer o trem, que actuou bem. Deslizei cautelosamente por
aquela praia fora. Saí do avião para ver o que lhe tinha acontecido.
Apetecia-me afagá-lo, como fazia noutros tempos ao querido “Tiger”. O que tinha
ele sofrido? Ao puxá-lo, devo ter-lhe dado uma pequena inclinação para o lado
direito e, assim, desse lado, o hélice tinha entrado na água e estava levemente
torto. Parte da blindagem, onde está uma boca que dá para a entrada de ar para
o sistema de carburação, tinha desaparecido, e daí para trás, o material,
feito de uma espécie de fibra comprimida que parecia metal, estava todo
esgaçado. A patilha, onde se põe o pé para subir à asa, desaparecera. Por
baixo, o “aileron” e uma parte da barriga do avião, tudo esgaçado. A pancada
tinha sido ali. De bicicleta, aparece-me um negro com um bocado de blindagem
que se soltara no momento da aterragem. Ainda hoje me arrepio quando penso
neste caso, pois não encontro explicação para ele. Dada a posição em que o
avião bateu na água, apesar de eu o puxar, o embate, por pequeno que tenha
sido, devia obrigá-lo a mergulhar, o que não aconteceu. Teria ele batido
somente numa onda? Mas mesmo assim!...
No íntimo acredito que teria sido um fim digno
para uma vida alegre dedicada aos aviões, que em breve teria de deixar para
sempre.
Em análise, para mim era mais uma consequência do acordo de Lusaca.
Não concordei com tal traição e nunca me
submeteria, mesmo que tivesse de pagar com a vida. Dali para a frente a solução
era fugir.
Um belo dia à tarde, chego do
meu voo, e a guarda do campo forma para me entregar uma carta. Era uma carta
solene e reparei nos sorrisos de toda aquela malandragem. Era simples, muito
mal escrita, mas compreendia-se o que eles queriam: "Patrão comandante
Faria. Ouve bem isto. Nós precisamos de camas e colchões e tu tens muitos ali
naquela casa. Dá a chave da casa, porque ela é nossa, é do povo. Não chateia,
ouviste?" Depois vinha uma assinatura ilegível do tal chefe do Grupo.
Disse-lhes que no dia seguinte daria resposta. Queriam a resposta
imediatamente. Convenci-os que tinha de tirar de lá umas pequenas coisas e,
depois, sim. Usei um processo que me foi sempre odioso. Mandei-lhes fornecer
cerveja à vontade para eles adormecerem as ideias. O que eu queria era ganhar
tempo.
No dia seguinte, cedo, segui para Quelimane, mas
desta vez com o propósito firme de me encontrar com o Maquival, a quem dei a
carta a ler e fui esclarecendo: "A continuar assim tenho que abandonar o
Gurué. Pelo menos o avião passa para Quelimane e assim já não servirá tão bem
aquela gente. Parece que é isso que eles querem!”...
O Maquival seguiu nessa mesma tarde comigo e a
esse, eles tinham mesmo medo. É que ele, com a sua pistola, abatia logo quem o
desrespeitasse. Não seria o primeiro a quem já o tinha feito, e eles sabiam-no.
Mais: o Maquival deu ordens para que abandonassem imediatamente o campo de
aviação, pois não havia necessidade de tal vigilância.
Tinha confiança em mim e nessa noite mesmo, eles
recolheram ao Quartel! Estavam abertas as minhas portas!
Desconfiando de fugas de aviões, o governo
obrigava o piloto que se deslocasse de um distrito para o outro, em voos fora
das carreiras autorizadas, a munir-se de uma autorização emanada somente pelo
Ministério que abarcava a aviação, em Lourenço Marques. O meu filho, mandou, de
Quelimane, um pedido para fazer um voo na 2a. feira, dia 5, para o
Gurué, onde ia buscar uns passageiros convidados para um casamento a realizar
no Namialo, Distrito de Moçambique, perto do Lumbo, lá para o Norte, donde só
regressaria na 4a. feira. E veio a autorização absolutamente legal,
por mensagem aeronáutica. O resto foi simples e fácil. O objectivo seguinte era
a Rodésia. Como seríamos lá recebidos, não sabíamos! Mas iríamos alegremente
entregar-nos ao Destino.
Pior do que aquele Inferno que transformaram
Moçambique, não podia haver.
NA
GUERRA DE INFORMAÇÕES
Deixei-me ficar
mergulhado na banheira. Com alguns milhares de dólares, na Europa, sem ninguém
tentando me dar um tiro... deveras repousante, para o corpo e para a mente.
Mas trazia a revolução
portuguesa atravessada na garganta e não iria me acomodar tão cedo.
Contemplando os despidos galhos das árvores através das embaçadas janelas,
telefonei para o Coronel.
Atendeu o capitão
Barata, que estava atuando como uma espécie de ajudante de ordens de Santos e
Castro. O coronel não estava, mas sabia da minha vinda e queria falar comigo.
- Amanhã vou a Lisboa, Barata!
- Esqueça, você agora está por conta do coronel, precisamos de ti!
Adiei minha viagem
“quase turística'' com prazer, afinal logo estaria operacional de novo e não
podia perder oportunidades, principalmente junto a um homem da estirpe de
Santos e Castro, que devolvera sua farda e condecorações ao Exército Português
após a famigerada revolução que enodoou as Forças Armadas.
Na manhã seguinte
instalei-me no confortável hotel Flórida Norte, a uns 300 metros da Plaza de
Espana e da Gran Via, no coração de Madrid. No bar do Flórida, sentei-me com o
capitão Barata e Lopes, o velho companheiro de luta que, encarregado do
recrutamento de novos elementos em Portugal, acabara ficando na Europa, com o
fim abrupto dos combates.
Esperava minha vez para falar com o coronel, mas este, ao me ver,
interrompeu sua conversa, vindo ao meu encontro. Apesar de ser um militar de
linha dura, dava valor aos seus subordinados, respeitando-os da mesma forma que
o era por todos. Queria que eu ficasse em seu "staff"; eu e Lopes
seríamos seus homens operacionais, preparados para qualquer eventualidade.
Como piloto,
pára-quedista, chefe de carro de combate e comando, me transformara num oficial
polivalente, podendo ocupar o mesmo lugar que vários outros de uma só
especialidade. Era veterano, passara por guerrilhas e por uma guerra
convencional; saltara pêlos postos hierárquicos e tinha plena confiança em
minha capacidade militar. Eu era, finalmente, o que me propusera ser. O
aprendiz de guerreiro já não existia.
Adiei indefinidamente
meu período de recuperação em Portugal, permanecendo na Espanha
"patrocinado" pelo coronel, que por sua vez tinha seus
patrocinadores. Que não eram os propalados ELP (Exército de Libertação de
Portugal) nem muito menos o MDLP (Movimento Democrático para a Libertação de
Portugal), as duas organizações contra-revolucionárias que nasceram devido ao entreguismo
do novo governo.
Aos contatos destes,
ansiosos para poderem usar a força de seu nome, Santos e Castro respondia com
trocas de ideias, conselhos, mas mantendo distância. Ainda estavam
"verdes" demais, teriam que crescer e organizar-se melhor se
quisessem sobreviver e produzir algo de concreto.
A primeira semana foi
deixada para minha climatização. Nas Galerias Preciados e no El Corte
Inglês renovei meu surrado guarda roupa, adaptando-o ao ainda inverno
europeu. Em Puerto Cerrado, a poucos quilómetros de Madrid, divertia-me na
neve, com tobogãs e esquis que me faziam permanecer mais tempo na horizontal do
que na vertical... Passeava longamente pelo grande zoológico, pelo Parque de
Atraciones e vendo as crianças brincando despreocupadamente, os adultos
alegres, pisando o tapete de folhas douradas que caiam secas das árvores, fui
aos poucos entrando em forma, ganhando tranquilidade e peso...
Numa pizzaria italiana na calle de Los Libreros, onde sempre jantava,
reunia-me com os membros da Ordine Nueva, com Walter, ex-capitão dos Panzer de
Wehrmacht na II Grande Guerra, que muito tinha de interessante para contar e
outros espanhóis e sul americanos.
Cantavam-se hinos e degustavam-se boas pizzas e lasanhas num ambiente
militarizado.
O coronel, que não se
fiava em boatos, queria saber a verdade sobre a situação do povo português,
principalmente acerca das infiltrações de técnicos e agitadores profissionais.
Partindo em dias diferentes para pontos diferentes, Lopes e eu deveríamos,
separadamente, vasculhar Portugal de cima abaixo, colhendo informações.
Embarquei no aeroporto
de Barrajas, para Lisboa. Teria também, agora, a chance de rever os ex-comandos
do ELNA e fazer um mapa de suas posições atuais e ocupação, o que poderia
ser-me útil. Pensava, já, em organizar as Brigadas Lusíadas, que haveriam de
reconquistar pela força, a independência de Portugal.
Já pela parte
sentimental gostaria de reencontrar pessoas que me trataram com amizade, quando
dos meus primeiros passos em território africano: os padres de Nampula e
outros, que agora se encontravam no norte de Portugal. Iria visitá-los, se tudo
saísse bem.
Corria o ano de 1976,
apenas quatro da minha primeira estada em Portugal. Mas a revolução fizera sua
obra, fiquei desolado com o país que agora encontrava.
Que diferença dos bons
tempos, severos sim, mas seguros, de Marcelo Caetano. Onde estava a ordem, a
limpeza exemplar que vira em anos atrás? O que era aquela imundície nas
paredes, nas ruas, no metro? Por quê aquela multidão de mendigos? Por quê
aquela garota bonita, que estudava no Liceu em Moçambique, engraxando sapatos
na praça do Rossio para ter que ganhar a vida? Por quê não houve controle na
alfândega do aeroporto, por acaso a ninguém interessava se eu trazia uma mala
com drogas para semear vícios e destruir jovens? Ou armas? Onde estava a lei e
a ordem?
Onde estava, sobretudo,
o orgulho de uma nação que mantinha suas colónias em África, firmemente decidida
a não deixá-las nas mãos de oportunistas de Leste e aos poucos, com
sacrifícios, ia dando-lhes autonomia e progresso, ganhando uma batalha que as
grandes potências haviam perdido por falta de garra, deixando suas posições
entregues às lutas tribais e à escravidão marxista...
Contemplei um Portugal doente.
Um povo que se dividia
ostensivamente em ex-colonos, sofridos, que tudo haveriam perdido, chamados de
"retornados" e os que não deixaram o solo europeu e egoístas, se
sentiam prejudicados pêlos irmãos que voltavam precisando de casa, comida e
trabalho.
Quem vinha da praça dos
Restauradores e entrava no Rossio, à direita, na primeira calçada iria
encontrar os retornados de Moçambique às centenas, tomando todo o espaço, em
torno de um café ou em grupos, comentando os tempos passados e os magros dias
do presente. Mais à frente, no segundo calçadão, os retornados de Angola. Do
outro lado da praça, em frente à Confeitaria Suíça, misturavam-se timorenses e
outros. Em todos os grupos, a mesma conversa. E a mesma vontade de se rebelar
contra aquela situação estúpida. Faltavam líderes e organização suficiente,
para terem condições de luta contra os maquiavélicos esquerdistas e suas
revoluções pré-fabricadas, modelo padrão, made in URSS.
Faltavam as
"Brigadas Lusíadas", para receber estes homens e criar uma nova
Pátria.
Comecei minha missão
pelo sul, por Faro, passando por Beja e Évora, nas quais demorei-me bastante.
Estava por ali o cancro que fazia Portugal adoecer... Ao mesmo tempo ia
contatando ex-comandos das localidades, cujo endereço trazia comigo desde
Kinshasa. Preciosa e segura fonte de informações, deixava com eles o número de
minha caixa postal em Madrid, que comprara unicamente com este fim.
Animava-os e pedia que
permanecessem alertas. O fato de me verem chegando às suas casas, demonstrava
que havia algo em marcha, nem tudo estava perdido. Se por um lado cumpria minha
missão colhendo informações, por outro ia solidificando meus planos da Brigada.
Nunca gostara de sonhar acordado, haveria de conseguir.
Em um carro alugado
pesquisei, juntamente com Azevedo, (do grupo blindado), zonas do campo onde se
localizavam "fazendas coletivas", comunas que eram verdadeiros ninhos
de víboras. Havia armas de guerra, principalmente G-3, espalhadas pelo sul de Portugal
e notadamente um sem número de granadas.
Se bem que infiltrações cubanas fossem difíceis de detectar devido ao seu
tipo físico semelhante ao português, o que se via e recebia informações era
sobre a presença de um grande contingente de portugueses praticamente criados
em países socialistas de Leste, aluando de forma aberta na mentalização do povo
mais humilde, sustentando-se sem trabalhar, o que constituía um mistério bem
fácil de ser elucidado.
À medida que caminhava
para o norte o vermelho se transformava em rosa e acabava desaparecendo já nas
proximidades do Porto, berço de grandes tradições de amor à Pátria.
Hospedado no Grande
Hotel da Batalha após contatos valiosíssimos, resolvi visitar meus amigos
padres que viviam nas cercanias da velha cidade.
Qual não foi meu espanto
e desilusão, quando em meio a evasivas apressadas, os representantes do Senhor
na terra fugiam esbaforidos diante da minha presença, visto no mínimo como
embaixador plenipotenciário de Satanás em Portugal! Haviam perdido todo aquele
entusiasmo por Marcelo Caetano e o Império Português, que de sobra
extravasavam. Pensavam em sua própria sobrevivência, entocando-se de medo ao
menor sinal de alguém que não estava nas graças do revolucionário governo.
Voltei para o Porto a fim de que saíssem finalmente debaixo de suas camas. Era
a hora do terço, pois!
Voltei à Espanha com meu
relatório, encontrando Lopes, que me havia precedido por dois dias. Também
trouxera informações interessantes.
Mas a exemplo do
acontecido com a contra revolução moçambicana, o ELP e o MDLP se debatiam em
intrigas e rivalidades internas, perdendo pouco a pouco suas forças e diluindo
outras que por ventura houvesse. Ainda voltei a Portugal para assistir e
fotografar certo comício e como ponta de lança, segui para o sul da Espanha,
tratando da segurança de um encontro sigiloso perto da fronteira. Foi meu
último serviço.
Depois de uma conversa
com o coronel, que para mim teve o valor de um curso pós-graduação,
dissolvemo-nos. Despedi do "velho" e fui tratar de meu futuro, pois
muito pretendia ainda fazer. E se Angola fora a escola prática, Espanha e
Portugal, com os longos monólogos de Santos e Castro, fora a teoria que me
faltava.
Entre dois goles de Águia Real resolvi dar um salto ao Brasil, de onde
estava ausente há quatro anos. Foi uma decisão repentina, mas acreditei que me
faria bem. Comprei uma passagem para o Rio e pela primeira vez, em dezenas de
viagens aéreas, resolvi num ímpeto de xenofobia vir pela companhia
brasileira. Mal o voo começou e eu já me arrependera. O péssimo atendimento, a
comida em nível de restaurante de 3a categoria, as comissárias
arrogantes. Pisei no Brasil irritado, mas logo voltei ao normal a caminho de
São Paulo. Em quatro anos o valor do dinheiro mudara bastante e ficava
estupefato ao ver os preços, pois não seguira seu paulatino aumento. A solução
foi indo transformando-os mentalmente em dólares ou pesetas, para ter o valor
real de cada coisa.
Em São Paulo encontrei
E.C., de quem não tinha notícias há muito, já veterano num curso de Direito e
com uma filha ao colo. Adaptara-se bem, o guerreiro part-time!
Em minha pequena cidade
natal, a 190 quilómetros da capital do Estado, a tranquilidade de estar com a
família e outras pequenas grandes coisas.
E lá mesmo a surpresa de
encontrar, enriquecendo o Corpo Docente da Faculdade de Direito com uma
colaboração semanal, o grande Ministro do Ultramar e ex-governador de
Moçambique, Doutor Baltazar Rebelo de Souza, com quem tive a honra de conversar
e passei a manter correspondência, para dar-lhe notícias de Moçambique, que
realmente amava e sofria com a atual situação da antiga província que
governara.
Mas a roda do carro de Marte, Deus da Guerra, não pára.
Recebo cartas de vários
pontos por onde se espalham ex-comandos. Como se escutassem a um apelo pensam
em voltar para a Rhodésia, não estão se adaptando à vida que agora levam e
ainda não se conformaram com a escravidão que sofrem seus países adotivos,
Angola e Moçambique. E Rhodésia, que sempre nos acolhera bem, está ali,
encostada no bosque enfeitiçado de Samora Machel...
Mal passaram dois meses
de minha chegada e já pensava em voltar à atividade. Alguém tinha que ajudar a
libertar aqueles países; por que não nós, outra vez, atuando como catalisadores
da legítima revolta de um povo oprimido?
Desta, porém, eu queria
dar as cartas. Ao meu modo. Queria africanizar minha ideia das "Brigadas
Lusíadas".
Há meses os portugueses
refugiados em Rhodésia tentavam criar com os experientes ex-comandos especiais,
grupos de guerrilha que servissem de bola de neve, na avalanche que soterraria
Machel e seus lacaios. Faltava um chefe que fosse aceito por todos eles, um
tanto rebeldes após os sofrimentos de Angola. Cogitaram meu nome e não houve
opiniões contra. Sofrera com eles, do princípio até o último dia da guerra
civil e nunca me acomodara na retaguarda.
Daí foi um passo para me
ver sentado diante da simpática funcionária da South África Airways, adquirindo
meu bilhete para Salisbury. Voltaria à África, desta vez plenamente consciente
do que me esperava e com know-how para enfrentar as circunstâncias.
Após cruzar o Atlântico
pela quarta vez, desta feita pelo sul e escalar em Joahnesburg, cheguei a
Salisbury. No rígido controle alfandegário os turistas que não portassem
passagem de volta nem comprovassem possuir suficiente dinheiro para a estadia
que se propunham, eram "devolvidos" no mesmo avião. Apesar da minha
passagem ser apenas de ida, um telefonema do Special Branch, o serviço secreto
rhodesiano, bastou para que fosse liberado com votos de boa estadia...
VI
RESISTÊNCIA MOÇAMBICANA
Eleven, Backer avenue,
again. Ao chegar à pensão recebo as boas vindas de Godinho, ex-condutor de
pesados do grupo dos comandos e a novidade é que a pensão pertence agora ao
Theófilo, ex-agente da DGS que conseguira após dificuldades iniciais se firmar
em Salisbury. É um amigo dos tempos difíceis, que também teve que fugir pela
fronteira rhodesiana, na mesma odisseia que tantos outros. Antes de atravessar
a pé a divisa dos dois países incendiou seu carro, para que a Frelimo não o
incorporasse às suas mordomias.
Tudo bem, estou "em
casa" novamente e até o Farinha é um dos hóspedes. Agora vamos trabalhar;
à guerra, senhores!
Repetindo o trabalho de
Alves Cardoso em 1975, faço um levantamento de pessoal, ex-comandos ou não e
seleciono-os. Pretendo formar um grupo de guerrilha que entre em Moçambique
recrutando elementos da população africana e então procuraremos criar bases
dentro do território agora inimigo. Os papéis se inverteram, Frelimo é o
governo e nós os guerrilheiros!
Reunir e equipar
militarmente um grupo, mesmo pequeno custa caro. Passamos a contatar os
empresários portugueses e as contribuições em dinheiro ou material começaram a
chegar. Póvoa, ex-comando, conseguiu quase a metade da verba que temos, são
mais 1O mil dólares, suficientes para o início. Godinho também é o grande
relações públicas, incansável.
Por Rh$ 700 (dólares rhodesianos), compramos um Land Rover e com ele
passamos à fase final, que seria a aquisição das armas e equipamentos. Para
evitar qualquer indiscrição ou movimentos em demasia, reduzo o efetivo ao
número de um grupo forte de guerrilha, 8 homens. Desligo os outros, que
permanecerão em disponibilidade, mas sem participar dos últimos preparativos.
Em lojas de campismo encontramos mochilas,
botas, facas, capas especiais para caçadores; em farmácias adquirimos o
indispensável para nossa empresa, desde ataduras, grampos de sutura, injeções
anti-hemorrágicas, até soro antiofídico. O maciço montanhoso por onde passava a
linha fronteiriça na região de Untali, local que escolhera para nossa entrada,
era infestado de cobras cujo veneno matava em poucos minutos.
Conseguir armas era a tarefa mais difícil
e dispendiosa. Teria que escolher entre os tipos civis disponíveis, aqueles que
aguentassem um combate ou pelo menos sustentassem o primeiro embate com o
inimigo, de quem conseguiríamos bom armamento.
No meu quarto, na "Coimbra Boarding
House", acumulavam-se as mochilas empilhadas, cheias, e as armas no
armário. Com o dono da pensão, Theófilo, nenhum problema tínhamos, é claro. O
quarto permanecia trancado, só aberto pelo homem da limpeza, ex-carcereiro da
DGS e atual informante do Especial Branch, que ia seguindo ao longe nossa
evolução.
Conversara longamente com Jack Berry, o
chefe do S.B., que embora achasse minha ideia boa, indo de encontro inclusive
com outra que ele tinha, foi sincero ao afirmar que nada conseguiria com os
portugueses, ao seu ver "heróis de bar", muita bravata e pouca ação.
Expliquei-lhe que eram homens já com experiência em guerra, com bons serviços prestados
em Angola.
Jack, cujas mãos pararam de tremer após o
primeiro copo de cerveja com conhaque, pediu a segunda rodada, sorriu e disse
que ficaria a ver-nos, duvidava que eu chegasse, ao menos, à organização
completa do grupo.
Pois veria, assegurei, tomando minha Black
Label, a mais forte cerveja rhodesiana.
E ele estava recebendo seus informes
agora. Nosso "arsenal" se completava. Três Remington .22 com
silenciador e mira telescópica que seriam usadas para a abertura de emboscadas,
desorientando o inimigo, uma Winchester 33, uma Lee Enfield 303, uma Hornet,
uma pistola Beretta 9mm e uma pistola Colt 32 para mim.
Biltong, a carne seca
rhodesiana, era a base de nossa alimentação, enriquecida com vitaminas e
proteínas em cápsulas. Um binóculo, uma bússola, mapas e uma máquina
fotográfica completavam nosso equipamento. Num bosque dos arredores de
Salisbury foram afinadas as pontarias das Remington; um amigo rodou 400 cópias
de um panfleto, escrito por mim, explicando quem éramos, o que pretendíamos e o
que deveriam fazer para ajudar-nos. Pensando no nome que deveríamos receber,
veio-me a ideia de Resistência, que completei finalmente com Resistência
Moçambicana.
Nascia ali hoje a poderosa e mundialmente conhecida Renamo.
Nada faltava, marquei o
dia da partida e designei os relações públicas que atuariam na retaguarda,
através de informes e propaganda. Estávamos prontos.
-Telefone para ti:
-Diga!
- Jack quer falar
contigo e quer que lhe apresente o grupo. Vamos te ajudar... Esteja na esquina
da Mofatt com a Jameson hoje às 14:00h.
A velha raposa esperara
até o último instante e finalmente convencera-se que eu não blefara! Mas quem
telefonara em seu nome falava português correto e Jack não tinha assessores
portugueses...
Não sabia até onde
chegava o serviço de informações da Frelimo e embora tivesse certeza que este
era fraquíssimo, resolvi me precaver.
Compareci ao encontro
coberto à distância por dois elementos de meu grupo, preparados para alguma
surpresa. Anotariam a matrícula do carro que me apanhasse e suas características,
seguindo-o de longe com o Land Rover.
Na hora marcada surgiu
um Renault R-16 dirigido por um indivíduo um tanto quanto gordo, cabelos
escuros. Embora alto, tinha o fenótipo latino, aparentando uns 45 anos. Com o
motor funcionando, apresentou-se e subi ao veículo. Tratava-se de Peter, um
rhodesiano nato que vivera muitos anos na fronteira com Moçambique, falando
português sem nenhum sotaque. Sempre alegre, simpático, tornou-se um elemento
precioso nas relações do grupo com o Special Branch, até a sua morte, meses
depois.
Lá atrás o Land Rover
arrancou, seguindo-nos à distância, num trajeto que nos levou ao Beverly Rocks
Motel, bem afastado da cidade. Numa mesa protegida por guarda-sol, no bem
tratado relvado, Jack me esperava, com seus inseparáveis conhaque e cerveja.
Pediu-me uma descrição
detalhada dos nossos progressos e propósitos, ouvindo pacientemente por uns dez
minutos.
- Well - principiou ele
com sua voz pausada - "o que tenho a oferecer, e lhe aconselho a aceitar,
visto que em seu plano a audácia entra com a maior porcentagem de
responsabilidade pelo sucesso, é o seguinte: pela insegurança de seu armamento
civil, dou em troca Kalachnikovs, granadas, RPG-2 ou 7, minas, todo o explosivo
que necessitarem, de origem comunista".
Estiquei-me na cadeira
com a atenção dobrada, deixando a cerveja esquentar no copo. AK-47 Kalachnikov
era a arma que mais desejávamos para ações contundentes e rápidas. Continuei a
ouvir, sem nada dizer.
- Vocês não têm uma base
e criá-la em território inimigo leva tempo e muita resistência física, que os
brancos não possuem; dou-lhes urna fazenda, com sede, instalações completas,
inclusive com piscina, a 5 quilómetros da fronteira, um ex-motel abandonado por
causa da guerra".
Comecei a desconfiar de tanta generosidade.
-Dou ainda treinamento
adicional, comida, transporte. Que pensas?
- Bem até agora, tudo ótimo. E o que daremos em troca? A resposta de Jack
foi sem rodeios:
- A libertação do campo
de prisioneiros da Gorongosa. Aos outros lhes comunicará quando estiverem todos
concentrados na fazenda; terão o direito de aceitar ou não. Realizarão uma
missão difícil, mas que será boa tanto para nós como para vocês,
aumentando-lhes o efetivo e podendo combater melhor a Frelimo, nosso inimigo
comum.
- Não preciso pensar nisto, a princípio aceito, Jack.
Um aperto de mão e
retornei à cidade, recebendo instruções de Peter para a apresentação do pessoal
a Jack no dia seguinte, numa das saídas de Salisbury.
Meus companheiros,
sentados em meu quarto, ouviram as novidades. Tive dificuldade de convencer a
todos, pois alguns não queriam se comprometer com o governo rhodesiano, fazer
algo só "lusíada", voltado única e exclusivamente para Moçambique.
Lembrei-lhes que a
própria Frelimo sobrevivera porque suas bases principais eram na Tanzânia, a FNLA
no Zaire, o MPLA na Zâmbia, a UNITA na Namíbia. Não podíamos prescindir da
ajuda do governo ou ficaríamos entre dois fogos. O argumento das AK-47 foi,
porém, decisivo. Os veteranos não resistiram à tentação de trocar seu
heterogéneo armamento por aquela máquina de fazer guerra. Conservaríamos,
porém, as Remington, usando-as como previsto.
O encontro do pessoal
com Jack foi curto, mas de impressão favorável. Apesar dos resmungos, pedi-lhes
que fizessem ou aparassem as barbas, cortassem o cabelo, coisas indispensáveis
à visão inglesa do chefe do SB... Tudo combinado, partiremos às 04:30h, máximo
sigilo, nada de despedidas ou bebedeiras comemorativas. Dormir cedo é minha
ordem.
Reúno-me com um
colaborador e delego-lhe autoridade para receber correspondência em meu nome e
respondê-la, como Delegado da Resistência Moçambicana em Salisbury. Que, aliás,
se transformara em Resistência Nacional Moçambicana, ideia do Special Branch e
que poria no ar uma rádio pirata, a "Voz de Moçambique Livre".
Toda notícia relativa a
combates e progressos da Resistência seria divulgada na imprensa falada e
escrita; o mundo deveria saber que a reação contra a escravidão começara no
jovem País africano banhado pelo Índico.
À hora marcada somos
recolhidos por dois Land Rovers do S.B. Vou no da frente, dirigido por Mike, um
agente dos mais operacionais que conheci. Tinha gosto pela aventura e aventuras
era o que não lhe faltava. Só lamentava não poder participar da nossa missão.
Eu ainda não sabia o local exato da fazenda, só seu nome, para mim
desconhecido. Dirigimo-nos para o sul, sempre bordejando a fronteira, por boas
estradas asfaltadas, mas desertas. Por ali, os civis só trafegavam em comboios
protegidos. Subindo sempre, o clima tornava-se frio e úmido. Transpúnhamos
belas florestas e não raro, bandos de macacos cruzavam à nossa frente.
Em Mellsetter, última
vila branca antes de chegar ao destino, Mike parou para compras. Depois
penetramos por uma agradável estrada de terra, cheia de curvas e estreita, por
locais mais altos e frios. Estávamos junto à fronteira, cada vez mais sós. Logo
à frente, uma pequena placa indicava: Alice Dale.
- Here we are! - exclamou Mike.
Curvou para a esquerda
subindo por um íngreme atalho, que contornava um morro. Lá em cima, toda
cercada por alambrados, estava nossa Base, uma aprazível
"Guest-House" desativada devido ao terrorismo. Alice Dale, com sua
sede tipo suíço, sua lareira e sua piscina! Nada mal!
Distribuí o pessoal
pelos quartos de hóspedes e me instalei na suíte. Afinal, não iria abrir mão de
um pequeno privilégio como este!
Mike mostrou-me o
depósito de víveres, atulhado de rações de combate rhodesianas. Poderíamos
usá-las como reforço alimentar enquanto lá estivéssemos.
A região era "zona
100%" e logo atrás de nossas instalações se erguia uma montanha, a última
antes de Moçambique. Em caso de ataque com morteiro estaríamos como patos em
barraca de tiro. Mas quanto a isto nada havia a fazer; organizei um sistema de
sentinelas, apenas para evitar a aproximação excessiva do inimigo e dar o alarme.
Todos dormiriam com as armas ao alcance das mãos.
O motor gerador seria
desligado às 20 horas, diminuindo assim o perigo de sermos ofuscados durante a
noite. Conhecendo nossos domínios, a escuridão nos ajudaria na defesa.
Naquele cenário
aparentemente tranquilo, cercado de verdes montanhas e respirando um ar
privilegiado, fomos dormir. A alvorada seria às sete horas e antes do breakfast
havia prometido que teríamos corrida. Tinha que tornar meus homens novamente
operacionais, fazê-los expelir a cerveja do corpo e agora era a oportunidade.
Temia que me dessem trabalho em matéria de resistência física, o que logo ficou
demonstrado.
- Um, dois, um, dois! Vamos lá pessoal! Descendo pela ladeira ninguém
reclamava, esbanjavam forma. No sopé do morro dei meia volta e ao contrário do
que esperavam, atirei-me estrada acima, lembrando que a minha única medalha
ganha em esportes fora em Cross Country, na EPCAR em Barbacena, sempre gostara
de corrida rústica. Silva, o mais gordo da turma, ex-membro da PATU (Patrol Anti
Terrorisrn Unit) do Rhodesian Army, começou a empalidecer e ficar para trás,
mais dois o imitaram. Acelerei o passo para ver com quem teria que forçar a
barra futuramente. Entramos em fila indiana pela "farm" e ao
redor da piscina voltamos à calma. Ali, nas espreguiçadeiras, estavam Mike e um
estranho, haviam cruzado por nós na subida, no Land Rover do S.B. com mais dois
africanos.
-Helo, Pedro!
-Hei, Mike!
Apresentou-me Danny,
outro agente, um dos campeões de tiro da Rhodésia (sua esposa era a campeã
feminina) e instrutor dos Selous Scouts, a taskforce de elite do
Exército. Sem dúvida um profissional competente, mas com quem viria me
antipatizar, por causa de seus métodos.
Danny ficaria conosco
para acompanhar minha instrução e para ministrar outras. Quis conversar comigo
imediatamente sobre a missão e do treinamento a ser dado. Após o banho e o
café, reuni-me com Mike e Danny, munidos de mapas e fotos.
O campo de prisioneiros
da Gorongosa, no coração do antigo parque do mesmo nome, distava uns 150
quilómetros da fronteira em percurso a pé. Mantinha em suas instalações em
regime de escravidão, cerca de 1200 dissidentes da Frelimo, grande parte deles
por motivos fúteis.
Em duas partes distintas
separadas por um riacho, ao norte estavam localizadas as casas dos guardas e do
comandante e ao sul, as instalações reservadas aos prisioneiros. A Força Aérea
Rhodesiana fizera um bom trabalho de fotos, tiradas à grande altitude, mas
perfeitas.
Danny fez sinal para que os dois africanos se aproximassem. Quem aqui
chamarei de Paulo fora um comandante da Frelimo, entrara em dissidência por não
participar da corrupção que grassava entre os oficiais logo após a
independência e com isso ganhara uma estadia para "reeducação" no
campo da Gorongosa, de onde fugira para a Rhodésia juntamente com Jonas, outro
recluso. Ambos falavam português, inglês e os dialetos africanos locais.
Todas as minhas dúvidas
foram por eles esclarecidas, tais como efetivo, armas, turnos de sentinela,
entradas e saídas de campo, obstáculos naturais e artificiais, moral dos
prisioneiros e guardas, etc. E melhor notícia, era que nos iriam acompanhar
como guia e combatentes. Apresentei-os ao pessoal e passaram a participar do
treinamento.
Obrigava o grupo subir
pela montanha várias vezes, sempre seguindo técnicas de combate, observando
silêncio, apagando pistas, etc, etc e fomos aos poucos nos entrosando. Num
stand escondido em meio aos pinheirais exercitamo-nos com as Kalaschs no tiro
de precisão, instintivo, rajadas curtas, pois três dos homens ainda não conheciam
a AK-47.
Apesar de alguns atritos
com Danny chegamos ao final do período de reaquecimento inteiros e prontos para
a partida. Fomos fechados na traseira de um Land Rover e, escondidos, rumamos
para as cercanias da vila de Umtali, cuja rodovia e ferrovia ligavam-na à
cidade da Beira, nas costas do Índico. Agora, ambas vias estavam cortadas e
minadas na fronteira.
No período colonial era
por ali que transitavam as centenas de turistas rhodesianos em busca da praia e
dos afamados camarões da Beira, Inhambane e outras localidades moçambicanas.
Era pela estrada de ferro também que o bloqueio económico contra a Rhodésia era
furado com maior intensidade, com a concordância do sensato governo português
da época.
Umtali igualmente era
procurada pêlos portugueses pelo seu clima de montanha, bons hotéis e boa
bebida, além de abrigar como residentes uma grande colónia lusa.
Num clube de campo
abandonado, saltamos finalmente de dentro da carroceria do Land Rover,
ofuscados pela claridade. Esticamos as pernas e preparamos uma espécie de
pic-nic, enquanto aguardávamos a chegada de Mike e Taborda para as instruções
finais.
O velho Taborda, que lutara em Angola, estava como chefe de uma base de
S.B., onde treinavam africanos vindo de Moçambique e de onde Paulo e Jonas saíram.
Muitas das informações que seriam dadas eram secretas e para evitar qualquer
deslize, só agora é que nos revelariam.
- Reunir o pessoal!
O veículo esperado se aproximava.
Sentados em semicírculo,
iniciamos o briefing. Mapas no solo, Mike mostrou rapidamente e com eficiência
os pontos minados, as zonas de patrulha que deveríamos evitar, trilhas, etc.
Ponto de partida: uma
fazenda ao lado de Umtali; ponto de chegada: um maciço montanhoso ao norte, j á
perto de Tete, o território inimigo encravado na Rhodésia. Taborda e seus
homens lá estariam, passados 10 dias, em vigília diária.
Sempre camuflados no
Land Rover, partimos para o ponto de saída, seguidos pelo segundo veículo, mas
bem afastado.
Eram pouco mais da
17:00h; de um caixote retiramos uniformes da Frelimo e despimos nossos trajes
civis. Perto, alguns homens do S.B. mantinham-se alertas, porquanto logo abaixo
da estrada onde estacionamos iniciava-se o outro país, inimigo.
Uma novidade foi a pasta
denominada de "Black is Beautiful", que tivemos que passar nas partes
do corpo que não eram cobertas pelo uniforme. Com o rosto, mãos e pescoços
enegrecidos pela miscelânea criada pelo Rhodesian Army, seríamos facilmente
confundidos, à distância, com tropas africanas.
- Em forma! Preparar para a revista!
À minha ordem, os 9
homens se perfilaram, mochilas colocadas, armas cruzadas e abertas. Sem perda
de tempo, inspecionei em cada um a munição, arma, cantil, comida, a perfeição
do "Black is Beautiful" e a ausência de metais que pudessem criar
reflexos luminosos. Tudo em ordem. Chegou a hora, mais uma vez. Depois de uma
pausa, aqui estávamos nós. A guerra de Angola ainda estava bem viva nas mentes,
todo aquele sacrifício, aquele esforço do qual não pensara recuperar tão cedo.
Mas o tempo passou rápido e Angola transformou-se em apenas uma batalha, a
guerra continuava e nossas armas romperiam seu silêncio.
Enquanto pensava, com a
bússola tirei o 1° azimute a seguir na longa j ornada. OK, não falta mais nada!
- Boa sorte! - Mike a
Taborda, cumprimentaram um por um e o grupo seguiu-me trilha abaixo, rumo a
Gorongosa.
DE VOLTA AO COMBATE
Um combatente se sente
renascer quando, afastado finalmente de tudo que não seja a situação de guerra,
caminha através de mata, arma em punho, cantil na cintura, olhos e ouvidos aguçados.
Naqueles momentos ele é rei, é lei, é vida e é morte. E perto desta, a vida
passa a ter mais valor, mais sabor.
Avançamos pela trilha,
distanciados de cinco homens, em silêncio. Uma chuva fina começa a cair para
nosso júbilo, pois apagará pistas e confundirá ruídos.
O declive termina, vamos
entrar na planície; a fronteira foi deixada para trás. Levanto o braço esquerdo
e me agacho. Todos me imitam sem ruído e passo a ordem: sair da trilha,
camuflar-se na vegetação e esperar o anoitecer. Todos se acomodam da melhor
maneira, cobertos pela lona individual, pois a chuva engrossou e parece que vai
durar. Entregues aos pensamentos, deixamos a tarde morrer. Só se ouve o barulho
das gotas caindo...
A noite ainda não
chegara, mas uma neblina adensava-se entre as árvores, tomando-as apagadas.
Achei por bem avançar.
Dei o sinal e como
fantasmas em suas capas de lona negra foram saindo de suas tocas, sacudindo-se
da água acumulada. Debaixo da garoa fina que volta e meia aumentava progredimos
em território inimigo. Logo o suor produzido pela marcha forçou-nos a retirar
as capas, embrulhadas e colocadas de novo nas mochilas, deixando nossa roupa
molhar, mas equilibrando melhor o calor do corpo.
O terreno, que há muito deixara de ser limpo ou habitado, agora cobria-se
de alta vegetação que agarrava-se a nós e procurávamos evitá-la, serpenteando
entre as "ilhas" de mato, mas sem escapar do capim, que me preocupava
bastante devido ao rastro deixado. Era impossível apagar todos os sinais numa
longa caminhada ou progredir em linha aberta, o que marcaria menos, mas os
acidentes de terreno não permitiam.
Paulo ia à frente,
conhecia a região, seguido de mim e fechando a coluna ia Alex, um português que
não fora aceito nos comandos em Angola por intrigas de inimigos pessoais, tornando-se
depois desta chance negada quase um vadio, sem trabalhar, sem cortar a barba e
o cabelo, andando inclusive descalço.
Resolvi lhe reabilitar
contra todas as opiniões, sabia que era um elemento valioso.
Uns dez dias antes da
partida, lhe comuniquei que haveria algo e ele seria aceito se obviamente
mudasse seu comportamento. No dia seguinte um novo homem aparecia à minha
frente: barba raspada, cabelos cortados à militar, porte ereto e botas!
Cheio de entusiasmo,
passou a fazer exercícios físicos pelas manhãs, deixando inclusive as
costumeiras bebedeiras de lado. E não me enganei, tornou-se um combatente
eficaz, sacrificado, fiel, conquistando o lugar de "cerra-fila",
importantíssimo numa guerrilha, pois é o indivíduo que apaga os rastros,
permanecendo atento à retaguarda, nos ruídos de uma possível perseguição, um
posto para homens de confiança.
As nuvens baixas do
temporal eram instáveis, às vezes deixando surgir uma lua enorme, clareando
tudo e semeando sombras.
Depois de andar por
horas chegamos a locais habitados, com grandes machambas (plantações), de milho
principalmente. E nos milharais havia vigias quase sempre acompanhados de cães
vadios, aquecendo-se na pequena fogueira que queima por toda a noite, debaixo
de um abrigo de palha. Aqui e ali, extensas faixas de terra preparadas para
plantar complicavam-nos a progressão, pois nossa passagem deixaria profundas
marcas no solo macio e molhado.
Um cachorro desata a latir feito um desalmado, sentindo a nossa presença,
denunciando-nos. Era o primeiro cão comunista que encontrava, mas na hora não
senti graça alguma. Afastamo-nos com rapidez, dando uma longa volta, mas caindo
em uma plantação que além de maior, era limitada por um profundo riacho,
estreito, mas não o suficiente para que passássemos sem ter que afundar até o
pescoço, erguendo armas, munições e mochilas acima da cabeça, produzindo
inevitáveis ruídos.
Depois do rio, um
barranco alto e despido. Quanto estávamos no meio da subida, as nuvens se
espaçaram e a lua brilhou sobre nós. Angustiado, vi as sombras projetadas,
compridas silhuetas em negro, cortando o aclive.
Um vigia começou a bater
numa lata, rompendo o silêncio da noite, fôramos vistos sem dúvida e as
batidas, fortes como as do meu coração no momento, prometiam caçada para o dia
seguinte. Sabia que com pista ou sem ela, amanhã nos procurariam por todo o
lado.
Tinha que tirar o
pessoal daquela perigosa zona fronteiriça em marcha forçada, mas Silva, o
gordo, começava a apresentar problemas que eu j á esperava e temia. Caíra
várias vezes e as paradas para descansar tinham se tornado frequentes, alguns
outros também estavam fatigados devido à progressão pelo terreno molhado, mas
era preciso seguir.
Empurrava-os, ora
ameaçando deixá-los para trás, ora animando-os; não queria amanhecer em perigo,
numa má posição, teríamos que acampar em terreno que nos favorecesse e para
isso urgia sair daquele buraco, chegar aos morros que se delineavam no
horizonte.
Malgrado meus esforços e
a tentativa de aliviar o peso das mochilas de quem estava mais estafado,
transferindo parte da carga a outros mais resistentes, não foi possível
levá-los adiante. A chuva, a lama, a vegetação, o peso do equipamento e a
marcha forçada haviam colocado dois dos homens completamente esgotados, sem
condições de caminhar alguns metros.
Estávamos em uma pequena
elevação, no sopé de outra bem maior onde pretendia passar o dia, mas a única
solução foi sairmos do capinzal, espalhados em linha, cada qual apagando seu
rastro e enfiar-nos numa "ilha" de mato cerrado que se erguia no
declive adiante, distante uns 200 metros. Péssima posição, escondida, mas de
maneira que o inimigo nos pegaria sempre de cima para baixo e à retaguarda só
escaparíamos rolando ladeira abaixo, caindo provavelmente em campo aberto.
Cada qual isolou-se num
canto entre as árvores, num raio de uns 15 metros e cobertos pela capa
adormeceram de imediato. Permaneci sentado algum tempo, esticando-me depois no
solo, mas sem pregar o olho. Estava excitado demais para dormir, sentia-me como
caça que pressente o perigo, fôramos detectados e ainda estávamos cerca de uns
4 quilómetros distanciados do maldito milharal, embora caminhássemos muito mais
devido aos zigue-zagues que nos vimos obrigados a realizar, progredindo num
terreno cheio de obstáculos e um famigerado rio, repleto de curvas fechadas,
com o qual topamos umas três ou quatro vezes.
O dia amanheceu limpo,
dando-me um nó na garganta. Mas só restava continuar deitado ou sentado,
esperando a acolhedora noite voltar.
Aquela zona era bastante
habitada e ouvíamos ruídos de conversas e trabalhos domésticos, em casas que
provavelmente teríamos encontrado se progredíssemos mais algumas dezenas de
metros à frente!
Por associação de
situações, veio-me a lembrança de anos atrás estar sentado na porta de um
pequeno Piper Cub que sobrevoava a praia de Itajaí, Santa Catarina, a uns 1200
pés de altura e eu, com as pernas dependuradas para fora e o pára-quedas às
costas, preparava um salto no vazio. Era o terceiro ou quarto que dava,
principiante, e só naquele é que tive bem a noção dos fatos, antes encobertos
pelo entusiasmo. Veio o medo se infiltrando e pensei: "ninguém mandou me
meter nesta fria, podia estar muito bem lá embaixo tomando uma cerveja..."
E agora também, podia
estar em Pinhal, minha cidade, tomando uma batida no bar do "Tekila",
com "muitos anos de vida pela frente" ao invés de estar aqui contando
os minutos, esperando a qualquer momento a visita da morte, velha namorada...
"quem mandou me meter nesta fria?...".
Logo identificamos
barulho de armas e guerrilheiros da ZIPA -Zimbabwe (Rhodésia) Independence
People Army - iam e vinham à vontade em suas casas!
Havíamos caído num vespeiro de guerrilheiros rhodesianos, tropas
tanzanianas e advisers cubanos, que substituíam a decadente Frelimo naquela
zona perigosa. O mínimo movimento desastrado e o barulho poderia atrair o
inimigo para cima de nós, visto que deveriam ter recebido informações sobre
nossa passagem e estavam em alerta.
O sol apareceu,
aquecendo-nos e dei a contragosto, permissão para tirarem as botas e secarem as
meias. Não era aconselhável, mas por outro lado a caminhada que nos esperava
logo mais exigia pés e meias em boas condições. Preferi ficar calçado,
sentia-me nu sem as botas quando em situação de guerra.
Outros dois problemas
logo apareceram: a tosse e o cigarro. Os corpos molhados durante várias horas
se ressentiam e a tosse veio, irreprimível e violenta. Os homens tornavam-se
roxos, tapando aboca com as mãos fortemente e agitando-se em espasmos para
contê-la.
Uma mistura de licor
Cointreau com mel, que, precavido trouxera, amenizou um pouco o problema, mas
criou outro, a falsa crise de tosse para poder bebê-lo!
O vício do fumo, que eu
não tenho, obrigava-me a não proibi-los totalmente apesar do perigo, porque não
sei aquilatar a intensidade desta vontade, desta falta e suas consequências no
estado psicológico dos meus companheiros. Fumava-se por turnos, tragando e
espalhando com as mãos a fumaça que escapava, precauções que não dissipavam o
odor, sentido à distância na mata, pelo menos por um não fumante.
Embora alguns glutões
passassem o tempo a mastigar o biltong, nada comi, sem apetite. Chegamos
ao meio dia incólumes e a tarde seguiu-se, com todos nós acompanhando as horas
pelos relógios, uma por uma. O pôr do sol séria às 18:30h e isto significava
uma mão estendida para nos tirar de um atoleiro.
14,15,16 horas,
chegaremos lá, apesar do movimento à nossa volta! Já esperançosos, víamos o
ponteiro ir chegando às 17 horas, quando à minha esquerda pressentiu-se o
caminhar de guerrilheiros conversando entre si, demonstrando que não imaginavam
nossa proximidade e pelo lado que vinham não podiam estar seguindo pista
alguma. O barulho de galhos se partindo aumentou, estavam penetrando na mata
justamente na direção onde estavam Póvoa, eu e mais perto deles, Rui, um caçador
em cujas terras que perdera com a Independência, passaríamos, servindo-nos de
guia.
A lombada e o mato
fechado fariam que, se continuassem a progredir, só viessem a nos avistar
praticamente cara a cara. Devo lembrar que não nos interessava qualquer confronto
antes de libertarmos Gorongosa, a missão principal. Evitar tiroteios era a
ordem.
Estes momentos de
pré-combate à curta distância, de expectativa, é uma sensação angustiante,
completamente diferente de um embate com blindados, por exemplo, ou mesmo o
ataque e defesas de cidades ou posições, em que se vê o inimigo ao longe e
ainda que depois possa se transformar numa luta corpo a corpo, não há
surpresas. Ali sabíamos que antes mesmo de visualizar um rosto, os estaríamos
matando ou sendo mortos.
Não gosto de esperar a
luta deitado. Sinto-me mais frágil, mesmo que esta posição me favoreça.
Ajoelhei-me e Póvoa fez o mesmo, assim veríamos e seríamos os primeiros a serem
vistos. Destravamos as armas segundo eu lhes instruíra, forçando a pequena
tecla para fora antes de abaixá-la, a fim de que não produzisse ruído.
Mas Rui, o primeiro na
linha de fogo, deitado e talvez nervoso, colocou a tecla em posição de rajada
num só movimento, com o estalido característico alertando o inimigo, que
claramente ouvimos fazer o mesmo e calarem as conversas. Deram dois ou três
passos cautelosos e não sei quem apertou o gatilho primeiro, creio que Paulo, o
ex-comandante da Frelimo que embora afastado, estava em posição mais alta.
Praticamente todos atiraram juntos, por segundos de diferença, nós e o inimigo.
Na frente vinha um negro
de calções brancos e chapéu de palha pintado com tinta vermelha (!) com sua
Kalash. Todos os outros portavam as mesmas AK-47.
Quatro de nós, melhor
colocados, abriram fogo: eu, Póvoa, Paulo e Zeca. O dono do chapéu teve seu
peito arrebentado por dezenas de balas, mas creio que ainda foi sua rajada que
nos atingiu com mais danos. Os que vinham atrás já surgiam, mas com rajadas
desordenadas, tentando fugir ladeira abaixo. Rui gritou de dor e Zeca apenas
disse - "já estou!".
Balas por todo lado, eu e Póvoa descarregamos juntos os carregadores de 30
cápsulas 5.56 das AK-47 e rastejando, de costas, protegendo-nos mais na
lombada, trocamos os pentes e aproveitei para sacar também uma granada
chinesa, de meu colete peitoral.
Metralhando em leque
para baixo, ainda pegamos dois ou três guerrilheiros, que gritavam o mais que
podiam. Zeca estava bem, com apenas o braço atingido, mas Rui tinha suas pernas
arrebentadas, principalmente a esquerda, quase cortada fora. No cotovelo de
minha blusa dois furos indicavam a entrada e saída de um projéctil que não me
tocou!
A aldeia agitava-se,
mulheres faziam alarido, correria, tiros eram dados a esmo. Em nossa volta,
capinzal e acima, o sol que teimava em brilhar. Ao derredor, enxames de
guerrilheiros.
- Vamos dar o fora
daqui! Vamos sair na marra e tentar chegar ao topo do morro maior de
qualquer jeito! Dois de vocês abandonem as mochilas e carreguem o Rui!
Após gritar as ordens
saí em frente, para o descampado. Paulo recolheu a arma do morto mais próximo,
haviam outros dois estendidos atrás e abaixo, feridos que gemiam. O capim
dava-nos pela cintura e agachados ficávamos cobertos, mas não abrigados.
Progredi pelo campo, pronto para disparar, girando em torno de mim. Meus homens
acompanhavam, bem espaçados e logo à direita já havia uma casa, mas abandonada
às pressas para nossa sorte ou dali seríamos ceifados com facilidade. O barulho
de um motor de veículo soou como uma condenação - podia significar o
deslocamento de tropas, cortando nossa retirada.
Em verdade, o inimigo,
sofrendo um ataque em pleno dia, superestimou nosso grupo, fugindo sem saber
que éramos pelo menos 10 vezes inferiores em número ao efetivo lá existente.
- Onde está Rui? Quem
está com ele? - perguntei, quando já havíamos avançado uns 300 metros em
direção ao morro. Ninguém respondeu à minha interrogação, só vi cabeças
apontando do capim, caladas. Não fora socorrido...
Voltei imediatamente com Paulo e penetramos novamente na mata. O ferido
estava no mesmo lugar, sofrendo, e a pequena sacola que continha injeções
descartáveis de morfina rolara para fora de meu alcance. Mesmo sem proteção
tivemos que dependurar as armas a tiracolo e suspendemos Rui em cadeirinha, com
seus braços em nossas costas. Para ele, ser transportado sem a morfina era uma
verdadeira tortura, urrava devido à dilacerante dor que sentia, sua perna
esquerda balançava-se com os ossos partidos e expostos.
Avançamos com ele o mais
que pude, ladeira acima, mas rapidamente esgotei minhas forças. Nossa fuga
estava se atrasando e ali não havia modo de contemporizar; ou desaparecíamos ou
ninguém escapava.
Quando do recrutamento
fora claro ao informar que, se um ferido ameaçasse todo o conjunto, seria
abandonado e isso se aplicava mesmo se o ferido fosse eu, assumindo o
subcomandante, e embora teoricamente este fosse o Silva, apenas pela idade,
entregaria o comando ao Póvoa ou ao Zeca, mais audaciosos.
Deitei-o no chão. Eu
quase não conseguia falar, extenuado pelo esforço.
- Vamos ter que deixar
você aqui, não há outra maneira de salvar o grupo com segurança. Você tem que
ser medicado logo e se o pegarem irá para um hospital.
- Vocês continuam? - perguntou;
- Não, voltaremos para a Rhodésia.
Pêlos seus olhos passou
uma ténue esperança, a salvação ali tão perto e íamos deixá-lo. Não
prosseguiríamos justamente porque ele seria capturado e debaixo de tortura
podia revelar o plano da Gorongosa e a missão ser desbaratada. Eu não o
levaria, embora duramente penalizado, devido ao seu estado e ao mesmo terreno que
teríamos que enfrentar, desta vez debaixo de perseguição e em marcha forçada.
Inclusive ficaria para trás o "gordo", se não aguentasse.
O ferido escutou sem se
rebelar ou implorar que o salvássemos. Portou-se com dignidade e calmo,
pediu-me que guardasse seu anel e relógio, para levá-los à sua mãe.
Apertando-lhe a mão o
deixei, juntando-me aos outros, mais à frente.
Progredimos morro acima, e a chuva que nos
negara a proteção, aparecia agora, pesada, mas tarde demais, pelo menos para
Rui, cujos gemidos ouvíamos ao longe. A dor provocada pela água a escorrer-lhe
pelas feridas abertas deviam o estar deixando fora de si.
Uma atadura foi colocada
no braço de Zeca, que não apresentava maiores problemas nem mesmo hemorragia;
fora uma bala traçante, ela própria praticamente cauterizara o ferimento.
Tratamos de realizar uma
grande curva, descendo o morro ao escurecer e debatendo-nos mais uma vez contra
o maldito rio. Interceptamos uma estrada, haviam pegadas de botas militares e a
abandonamos, apagando o local por onde cruzamos. Com o inimigo aos calcanhares,
não houve ninguém caindo de cansaço... chegamos são e salvos à fronteira,
apesar de seguir por locais ditos minados. Quanto a Gorongosa, teríamos que
esquecer por enquanto ou os pegaríamos prevenidos.
A RESISTÊNCIA SE
FORTALECE
Permanecemos na
clandestinidade e o S.B continuou a nos ajudar, além de entrarmos em contato
com outros resistentes isolados, que engrossaram nossas fileiras.
Alguns portugueses
desistiram ou foram excluídos por mim e no ambiente de intrigas que se seguiu
ao fracasso da primeira missão, acabei injustamente por eliminar do grupo o
Godinho, excelente elemento, mas vítima de inimigos - por sua mania de falar
demais -que com falsas informações o colocaram em "desgraça" perante mim.
O fato de ser o chefe
não me tornava infalível e iria cometer mais erros, mesmo durante missões, mas
que serviram para ensinar-me a ser mais humilde e menos egocêntrico.
Diriam inclusive em
Salisbury, mais tarde, que eu matara Rui, sacrificando o ferido para que não
fosse interrogado pela Frelimo. Carreguei com a falsa acusação até que os
jornais o mostraram vivo e curado, mas para na verdade padecer durante dois
anos de cativeiro e ser, posteriormente, fuzilado como "mercenário"
numas das ridículas e funestas demonstrações de força que periodicamente o
governo de Samora Machel realizava, para se autoafirmar.
Contudo, crescíamos em força e tamanho...
Um novo ponto para
entrar em Moçambique com tranquilidade foi achado: o Skecleton Pass. Altos
paredões de pedra cercavam um vale, cavado em forma de "U", como
feito por uma geleira nos tempos glaciais. Aqui e ali, estranhamente isolados,
enormes blocos de granito jaziam no meio do quilométrico corredor.
Por ali, segundo os
mapas históricos, passaram os primeiros colonizadores com suas carroças de
quatro rodas puxadas por bois, cujos vestígios ainda estavam presentes,
intocados em sua solidão, na forma de objetos de ferro e restos de madeira.
Neste desfiladeiro
muitos homens perderam suas vidas, colhidos pela febre ou animais selvagens.
Mudamos de fazenda,
passando para uma onde se cultivara fumo e o grande galpão de secagem das
folhas serviu de alojamento aos moçambicanos que apareciam de todas as partes,
contatados por nossos colaboradores.
Gorongosa por sua vez
seria libertada, não por mim, mas pelo comandante André, outro ex-Frelimo que
se juntou a nós. Profundo conhecedor da região e também ex-prisioneiro, dirigiu
um grupo constituído só de moçambicanos negros, que pela sua resistência física
percorreriam os pelo menos 300 quilómetros de ida e volta sem problemas, façanha infelizmente quase
impossível para homens brancos que não possuíssem constituição atlética. Ao
mesmo tempo em que ele chegava a Gorongosa, no campo chamado Sacudzo, meu grupo
realizava missões de sabotagem, para desorientar a Frelimo.
André perdeu apenas um
dos libertos, morto durante a fuga e o caudal da Resistência aumentou ainda
mais com essa adesão maciça de novos elementos.
Eu e meu grupo original
nos constituiríamos em advisers, recebendo um curso de demolição dado por
Danny, na base aérea de Gwelo. Durante uma semana trabalhamos com os mais
variados tipos de material, tanto ocidental como dos países de Leste,
aprendendo todos os truques na arte do manuseio de explosivos e confecção de
minas e armadilhas.
Fisicamente não podia competir com os africanos e em sã consciência sabia
que um branco só atrasaria as progressões, além de até atrapalhar em caso de
terem de passar despercebidos em vilas e cidades. Eu lançara a semente, a
Rhodésia cedera-nos o adubo e daí nasceu uma planta forte, vigorosa, a
Resistência Nacional Moçambicana, que antes de nós já existia, na forma de
ações individuais e isoladas de reação armada.
Aglutinamos tudo isso e
dei-lhes um nome. A planta frutificou e já não precisava de mim, reles
jardineiro. A fim de não criar divisões tentando impor meu método pessoal sobre
a vivência dos africanos, compreendi que havia chegado a hora de partir.
Fizera o que devia, mas
além disto não poderia ir ou seria ultrapassado. E deixando tudo aos africanos,
dissolveria como sempre o inevitável circo de parasitas da retaguarda, homens
que em Salisbury já se intitulavam porta-vozes do nosso grupo e criaram um
"conselho da Resistência", desfilando com ar misterioso pelos bares,
alimentando sua sede de glória, incapazes de a conseguirem de arma na mão.
Deixara a fazenda
equipada, havia idealizado e construído uma pista de treinamento, distribuíra
trincheiras estrategicamente colocadas, abrigos contra morteiros e dera
instrução militar a todos os civis voluntários.
Devo me apressar, a
Europa é minha meta - tenho que divulgar esta luta ao mundo. Voltei a Salisbury
e à civilização, com mais uma etapa cumprida contra o comunismo internacional.
VII
ESCRITOR "REACIONÁRIO"!
Mas não seria fácil,
mesmo na "civilizada" Europa, onde as influências da esquerda e de
uma parte altamente corrupta das direitas se consumiam, muitas vezes, pelo
assassinato puro e simples de quem se constituísse num obstáculo. E eu
pretendia falar aos jornais, escrever um livro, reunir o pessoal, lutar como
sempre contra a corrosão comunista. "A Europa está sendo cercada",
nunca me esquecia.
Mike trouxe os travelers
checks em dólares americanos que pedira para me conseguir e que seriam
suficientes para os primeiros meses no velho continente. O próprio agente me
acompanhou ao aeroporto, desvencilhando sem problemas os complicados trâmites
legais, usando para isso a "palavra mágica", S.B.! (Special Branch ou
Serviço Secreto).
Na cabine de revista
corporal o policial encarregado sorriu e sem me tocar pediu que "desse um
tempo" e depois saísse. Sem complicações e com votos de boa viagem...
O meu Rhodesian
Herald anunciava que tropas do exército rhodesiano estavam a 120
quilómetros dentro de Moçambique numa expedição punitiva. Eram 6 de junho de 1977
e na sala de espera aguardava o embarque no 737 da Rhodesian Airways, para
Johanesburg. A guerra nesta parte do mundo prosseguiria sem mim, já dera meu
quinhão.
Após um voo normal,
passei a tarde no Aeroporto Jan Smuts, acompanhado de duas simpáticas rhodesianas
com quem almoçara e que seriam minhas companheiras na longa jornada de 11 horas
para Madrid. As duas viajavam desacompanhadas e logo nos tornamos amigos, em
que pese a diferença de idade: ambas juntas somavam uns 150 anos! Alegres e
descontraídas velhinhas!
O Boeing 747 Jumbo da
South África Airwais não era tão confortável como se esperava do maior avião
comercial do mundo. Reformado para transportar um máximo de passageiros, as
poltronas eram muito próximas, incómodas até para mim, um mignon.
Durante a noite, após o
jantar, assistimos, enquanto sobrevoávamos o Atlântico, o filme Guerra nas
Estrelas e depois de um pouco de música clássica, adormeci num sono agitado
e desconfortável.
Aterramos em Barrajas,
onde desci em companhia de uma das velhinhas que iria para Almeirim. A outra
seguiria no mesmo avião para Londres. Esperava apreensivo que minha valise
passasse pela rigorosa revista da Polícia espanhola, mas surpreso verifiquei
que a morte de Franco tivera seus efeitos: os policiais, antes severos,
limitavam-se agora simplesmente a apalpar a bagagem pelo lado de fora,
liberando-a.
Recolhi as malas da
rhodesiana; depois uma das minhas, só faltando o que continha documentos
reservados. Porém, para minha angústia, o policial tateou algo rígido dentro
dela e pediu-me para abri-la! Como se um jovem viajando em companhia da
"avó" pudesse portar algo proibido... Enfiou as mãos para dentro,
descobrindo que o que tocara eram minhas botas e deu-se por satisfeito.
"Maldito suspense", pensei, "parecia até filme!".
Depois de servir de
intérprete para minha colega que embarcaria em um voo doméstico, tomei um táxi
para Madrid, não sem antes ouvir mil conselhos maternais na despedida.
Minha passagem pela
capital espanhola deveu-se a dois motivos: o reencontro com amigos de outros
grupos, para atualização, em especial com os portugueses e italianos e também
porque queria entrar em Portugal pela fronteira terrestre, mais tranquila e
menos rígida que o aeroporto. Não queria que alguns inimigos me detectassem
logo de início.
Estive com o pessoal da
Ordine Nova, italiana, da Fuerza Nueva, espanhola, e conversei nos pontos de
encontros dos portugueses acerca da situação da velha e maltratada nação lusa.
Como sempre, por lá havia muita conversa e pouca ação, apesar do descontentamento
quase geral da população.
No guarda-volumes da
estação ferroviária de Atocha deixei minha mala maior, que continha muitos
documentos e fotos que no momento ainda não poderiam vir a público. Caso fosse
revistado com maior rigor, devido ao meu passaporte que continha carimbos de
países como a Rhodésia e África do Sul, não haveria problemas com a polícia
portuguesa, nada de anormal encontrariam. Sobretudo, queria proteger os
remetentes da farta correspondência que trazia comigo, pois muitos ocupavam
cargos de importância em seus países ou eram muito conhecidos.
Embarquei mais uma vez
para Lisboa, agora de trem. Na fronteira não encontrei dificuldades de maior
importância e decidi que mandaria algum português com ficha limpa a
Madrid para trazer o resto da minha bagagem, o que fiz logo que cheguei ao
destino.
Lisboa, já sem segredos
paramim, recebeu-me com seu clima agradável e logo à noite encontrei-me com o
capitão Valdemar. Estava hospedado em um casarão particular na rua das Flores,
junto com o alferes Esteves. Lá também me instalei e comecei meus contatos com
os conhecidos.
A primeira grande
surpresa que Portugal me reservara foi uma reportagem num jornal, em que
apareciam "perigosos mercenários" da FNLA, que capturados em combate
viviam em prisões na capital angolana. Seis fotos mostravam meus colegas,
alguns dos quais julgávamos mortos, como o motorista Pereira e o municiador...
Remédios! O "bandido" estava vivo! Diziam que era o preso que
divertia a prisão com suas palhaçadas de sempre, fora retirado da Panhard pelos
inimigos e conduzido a um hospital -tivera seus joelhos estraçalhados pelo
tiro, mas salvara as pernas e hoje já andava, embora claudicante. Tenente Paes
falecera realmente em combate. Os outros eram Fernandes, capturado no Caxito, Quintino,
idem, e os dois tripulantes da Panhard 60, capturados na batalha de
Quifangondo, Oliveira e Serra. Estes últimos deram entrevistas criticando a
FNLA e desconfiava-se que haviam se entregado, e não capturados.
O Coronel estava às voltas com a criação de um partido político e foi na
sede deste que o encontrei. Ali igualmente fui apresentado para um
representante da FUMO - Frente Unida de Moçambique - que pretendia estar
lutando em guerrilha, contra o regime de Samora Machel.
Tratava-se na verdade de
mais um grupo que vivia de boatos e bravatas, servindo com isso apenas para
desviar os esforços de pessoas e entidades verdadeiramente interessadas na
libertação de Moçambique, atuando como um autêntico agente do inimigo, pois o
favorecia. Mais grave ainda é que o FUMO assumia na Europa os feitos militares
de nosso grupo de Resistência, tendo dado entrevistas com alarde sobre a
libertação do campo de concentração da Gorongosa, realizado por André. Nunca
vimos sequer um "guerrilheiro" deste pretenso movimento...
Perguntei ao
representante da FUMO, que não me conhecia, sobre Gorongosa. Ouvi uma
explicação por alto, pois "tratava-se de assunto reservado", mas
assegurou-me que foi um sucesso a missão de seus homens.
O capitão Valdemar
começou a rir e me apresentei, deixando o "revolucionário"
desconcertado. Avisei-lhe que possuía fotos e documentos e que deviam se
retratar nos jornais, sob pena de serem desmascarados. Assim foi feito e
alegaram que a confusão foi criada devido à "grande distância entre as
Bases (?) de sua guerrilha e o comando central, dificultando por isso a
comunicação"...
Continuavam com o uso da
mentira para aferir lucros, sendo que nunca provaram terem pelo menos meia
dúzia de homens armados em África.
Aos marginais deste
tipo, com máscara de idealistas, tanto de esquerda como de direita, me tornava
frequentemente um espinho pequeno, mas incómodo, pois não me estagnava em
palavras, agia sempre, atrapalhando-lhes a "caixa".
Mas não era espaldado
por ninguém poderoso, ao contrário de meus inimigos, e ao mesmo tempo em que
dava entrevistas a jornais portugueses e a correspondentes estrangeiros, o
tapete estava sendo preparado para ser puxado sob meus pés...
Parecia difícil, principalmente para a esquerda, que eu, tendo lutado em
todos os países recém invadidos por cubanos, tendo viajado constantemente entre
três continentes pregando o movimento armado contra a infiltração comunista,
não tivesse respaldo de alguma organização.
Certos jornais me chamavam de "mercenário a soldo da CIA",
"lacaio dos imperialistas" e outros chavões.
O BEST-SELLER
Numa tentativa da
reerguer o moral dos ex-combatentes portugueses lancei, com a ajuda do capitão
Valdemar e o Alferes Esteves, o livro "Angola - Comandos Especiais contra
os cubanos", com prefácio do coronel Santos e Castro, que descrevia a luta
armada contra a venda das colónias de Portugal aos russos, embora omitindo
muitos detalhes, pois o objetivo era propagandístico, político. Queria mostrar
que um grupo de portugueses não se rendera e lutava ainda em várias partes de
África. Por que não em Portugal, povoado de traidores que precisavam ser
extirpados?
A Brigada Lusíada criava
forma, os Comandos Especiais poderiam atuar na Europa.
O livro saltou logo
entre os dez mais vendidos em Portugal e os exemplares de duas edições
esgotaram em um mês, demonstrando que batera na tecla certa e o pequeno espinho
mais incómodo se tornou para a esquerda e a direita corrupta, de onde, creio
eu, partiu uma “miniconspiração'' para me desacreditar.
Fui contatado pela FLEC
- Frente de Libertação do Enclave de Cabinda - parte de Angola encravada no
território do Zaire e moçambicanos em Lisboa vieram me sugerir outra frente de
combate no norte, a partir de bases no Malawi. Aos poucos ia fazendo planos e
conseguindo adeptos, homens que queriam realidade, não a verborreia dos
pseudogrupos de reação.
Quase toda noite encontrava-me com amigos na boate Gruta e foi ali
que uma conhecida me revelou ser agente de Polícia Judiciária, enviada para me
observar. A P. J., que perdera seus bons agentes com a revolução era agora um
clube de amadores. A missão da jovem era travar amizade comigo, o que conseguiu
a bom tento, culminando com noites bem passadas no Sheraton Hotel.
Segundo ela, queriam
saber de onde eu conseguia verbas para sobreviver e havia pessoas insistindo
junto à P. J. em me relacionar com assaltos à mão armada, ocorridos em Lisboa,
ainda sem solução, isto é, tentavam encaixar-me em vários crimes sem autores
conhecidos, o que solucionaria os problemas de diferentes grupos, inclusive da
P. J. Até "testemunhas" seriam encontradas...
Mas o meu círculo de operacionais
abrangia também a P.J. e um de seus inspetores, na madrugada de 22 de Março
de 1978, bateu na janela do apartamento térreo que estava ocupando, a três
quarteirões do Cassino do Estoril, para onde me mudara à cerca de dois meses
atrás.
- Abra a porta, rápido! Preciso falar contigo!
A CILADA
Ainda sonolento ouvi a
informação que pela manhã, cerca das 07:00h, a P.J. desencadearia uma operação
de cerco das duas residências onde me hospedava alternadamente e eu seria
detido. Ao mesmo tempo, alguns jornais me relacionariam com os tais
"crimes sem dono", que serviriam de pretexto para me manter na
prisão.
Despedi-me agradecido
daquele que arriscava seu emprego e sua liberdade para me ajudar, mas o momento
não era para lamentos e preparei a fuga do País. Iriam me atingir da forma mais
baixa possível - ser eliminado só serviria para fortalecer a causa que defendia
- alvejando-me moralmente, fazendo descer sobre mim um véu de suposta desonestidade,
justamente o crime que eu impedia com minha ação contra os falsos movimentos
que só buscavam dinheiro. Cerca das 02:00h tinha uma valise pronta. Havia
raspado o bigode e mudado o tipo de penteado.
Às 05:00h dirigi-me ao
guichê de tickets da Estação Santa Apolonia, onde comprei dois bilhetes para
duas localidades diferentes. Embarquei no primeiro trem a sair e quando ele
começou a mover-se, mudei rapidamente de vagão e saltei de volta à plataforma
no meio da multidão que aguardava sua vez - para alguma coisa servem os filmes
e romances de espionagem!
Aí então tomei o trem
para uma vila onde havia um entroncamento para a fronteira. Lá desci já com
outros trajes e embarquei para Vilar Formoso, local que conhecia bem e sabia
ser um ponto pouco controlado.
Metade do dia
transcorrera quando cheguei ao destino e a operação em Lisboa se frustrara, mas
quais seriam as providências que adotariam? Comunicariam os postos
fronteiriços? Ou pensariam que estava algures na capital, sem nada saber?
A pé, dei um passeio
"despreocupado", passando pela frente do posto policial e depois
pelas imediações da Alfândega. Tudo normal.
- Pois é aproveitar agora - pensei.
Tomei um táxi e mandei
rumar para Fuentes Onoro, no lado espanhol.
- Para onde? - perguntou o motorista.
- Para o melhor hotel
que houver por lá - respondi, evitando revelar o lugar para onde
verdadeiramente me dirigia, a estação ferroviária.
No controle alfandegário
havia uma fila de uns cinco carros e sugeri ao motorista que levasse os
passaportes para carimbar, o que fez sem problemas. Permaneci no veículo, com
um ar indiferente de "turista cansado". Um guarda civil indagou se eu
levava alguma bagagem além da valise e diante da reposta negativa e dos
passaportes já carimbados, mandou-nos avançar e ultrapassando a fila, entramos
em território espanhol.
Saltei diante do hotel e
mal o táxi se afastou entrei no primeiro bar para tomar um bom vinho tinto da
terra, com a tranquilidade de não se sentir com a cabeça a prémio. Depois fui a
pé até a estação onde comprei uma passagem para Madrid, de olho nos policiais
portugueses que lá estavam, conversando com seus colegas espanhóis como de
costume.
Algumas horas depois o
trem partiu e vendo a fronteira se perder ao longe respirei mais aliviado.
Outro "cerco" que não se fechara...
Na capital espanhola
instalei-me num hotel que ficava ao lado do restaurante italiano na Calle de
Los Libreros, que tinha a vantagem de estar a 50 metros da Gran Via e ser ponto
de hospedagem de outros conhecidos. Teria que passar dez dias esperando até que
um "correio" mandado por amigos me trouxesse as novidades, meus
arquivos e dinheiro: receberia um cheque no dia 24, referente aos direitos
autorais do livro.
Mas as coisas se
complicaram. Apesar de terem recebido o dinheiro não conseguiam enviar-me, pois
eram vigiados de perto pela P. J. O capitão Valdemar foi chamado para depor e
nada de concreto lhe disseram acercadas acusações. Enquanto isso os jornais de
esquerda acusavam fictícias "associações de malfeitores",
incriminavam-me como o "pistoleiro de Picoas", uma ocorrência de
tiroteio havida em plena luz do dia no início do ano, no bairro deste nome etc,
apresentando-me como um marginal e mercenário da mais baixa qualificação.
Quanto aos jornais descomprometidos ou de direita, derrubavam uma por uma as
acusações, todas feitas sem muito conteúdo e convicção. Uma observação de
"O Dia" me fez sorrir, eu não poderia ser o "pistoleiro de
Picoas" visto o mesmo ter errado três tiros à queima roupa na vítima. Uma
falha impossível, devido ao meu "currículo"! E imputavam à DIS A, a
polícia política angolana, a montagem da farsa.
Mas haviam testemunhas
compradas e o esquema fora montado para vencer. O prudente seria não retornar,
quem me espaldaria? Estava só, e na "democracia" portuguesa, não
teria chance alguma. Senti pelos meus arquivos, centenas de fotos, documentos,
correspondência, medalhas e outras lembranças de África, arbitrariamente
recolhidas pela P.J. e que hoje deve servir de decoração nas casas de alguns
agentes.
Isolado em Madrid, um
tanto desgastado psicologicamente e enojado com a podridão dos políticos, senti
falta da disciplina da caserna; um quartel me faria bem. Uma ideia veio-me à
mente.
Era um ciclo que se
fechava: começara com a Legião Estrangeira Francesa, terminaria com a Legião
Espanhola, o famoso Tercio de los Estranjeros, de Franco. Nos primeiros dias de
Abril apresentei-me no quartel de Leganês, como voluntário.
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