terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Audaciações

 
Canal de Opinião
Por: Ericino de Salema
 
“Esta é a República do Pandza…a gente briga mas depois se entende; é a nossa maneira de viver”, DJ Ardiles
Maputo (Canalmoz) - O que transpirou dos três “encontros de trabalho” que o Governo e a Renamo mantiveram em finais do ano passado, numa unidade hoteleira da capital do país, a pedido do maior partido da oposição, pode nos levar a concluir, talvez apressadamente, que aqueles tiveram como resultado nada, como, aliás, disseram vários meios de comunicação social, comentaristas e analistas, talvez até com razão. Mas será que não houve mesmo resultado algum ao cabo daquelas sessões? Se houve, que resultado em concreto? Alguma utilidade para a nossa democracia ou para o doméstico processo de democratização?
Antes de tentar avançar, ainda que seja de forma ecologicamente falaciosa, o que acho sobre essas indagações, começo por referir que me inclino a considerar, inspirado no que Hobsbawn diz em “A Era dos Extremos” sobre a contagem do tempo, que a realização daqueles encontros efectivou o início político do ano 2013, que, como se sabe, acolherá as quartas eleições autárquicas no país. Ano que, ainda na perspectiva aqui adoptada, pode não terminar necessariamente, pelo menos politicamente, a 31 de Dezembro, mas com a validação dos resultados dessas eleições, ainda que tal, conhecida que tem sido a nossa lentidão nisso, seja feito nos princípios de 2014.
Dois “factos políticos” antecederam, em boa verdade, as três audaciações – permitimo-me chamar-lhes, já que o Governo, com José Pacheco à cabeça, considerou-as “audiências”, enquanto a Renamo, sob a égide de Manuel Bissopo, as catalogou de “negociações” – que me levam a redigir estas linhas: (i) a realização, de 23 a 28 de Setembro daquele ano [2012], do décimo congresso da Frelimo; e (ii) a fixação, a 17 de Outubro, de Afonso Dhlakama, líder da Renamo, na Serra da Gorongosa, seu antigo bastião bélico-militar. Mas que interesse o congresso da Frelimo pode ter tido para Dhlakama? E que ligação o resultado desse evento do partido no poder pode ter tido com a instalação de Dhlakama onde se acha presentemente?
Como muitos, que pensaram, talvez inocentemente, que com o X Congresso Guebuza se sairia fragilizado, dado o exposé crítico que os seus contestatários internos fariam contra si em sede daquela que é a mais importante reunião dos camaradas, e, por via disso, aberto a fazer concessões, desconfio que Dhlakama pensasse que, se tal se materializasse, ele próprio poderia tirar partido, considerando que já forçara, pelo menos por duas vezes, Guebuza a ir tê-lo em Nampula. É claro que pessoas como o meu amigo Adelino Buque dirão, como tem dito, que Guebuza não foi lá ter com o líder da Renamo, mas, uma vez lá, tratando de assuntos de “interesse nacional”, “aproveitou” receber o mais famoso residente de Satunjira. Mas essas são, convenhamos, coisas doutro rosário!
Em boa verdade, nada parecido a isso se consumou no congresso de Pemba; antes pelo contrário, Guebuza saiu de lá até mais fortalecido, como o denota o facto de ter-se feito rodear de gente ou da sua confiança ou disposta a prestar-lhe vassalagem; aliás, a sua própria filha, conhecida e “reconhecida”, frise-se, “Combatente da Luta de Libertação Nacional”, fez-se “eleger” ao Comité Central, o mais importante órgão partidário no intervalo entre dois congressos. Dito de outra forma: Guebuza mostrou, em Pemba, que é um político eficaz, talvez o mais eficaz líder que a Frelimo – incluindo a FRELIMO movimento (1962-1977) – já teve na sua história. Os seus contestatários, para usar as palavras de José Jaime Macuane, foram lá mostrar que são politicamente incompetentes.
Terminado o congresso da Frelimo, não passou uma semana antes de Dhlakama iniciar o seu processo de mudança de residência, tendo ido a tempo de rever o “seu miúdo” Manuel de Araújo em Quelimane e de se reencontrar com Raul Domingos, seu antigo “número dois”. A 17 de Outubro, dia do seu partido, chegava ele, em grande (diga-se de passagem!) à sua antiga base, tendo sido recebido por cerca de mil war vets, que, até prova em contrário, são-lhe fiéis.
A 22 de Outubro, precisamente cinco dias depois de Dhlakama se estabelecer em Gorongosa, dá entrada no gabinete de Alberto Vaquina, Primeiro-Ministro (PM) naquele momento com menos de um mês de exercício de funções, uma carta a solicitar audiência com o Governo, este que, a princípio, parecia estar a ignorar, em absoluto, a sua [pedido] existência; alguns dias depois, o também nóvel porta-voz da Frelimo, Damião José, também ele “produto” de Pemba, veio a público anunciar os integrantes da comissão partidária a quem tinha sido dada a tarefa de receber a Renamo; uma comissão de “ilustres desconhecidos”, conforme chamou-lhe Salomão Moyana, e que se dissolveu liminarmente, até que o Governo aceitou receber aquele partido, através da comissão liderada por Pacheco.
De entre os pontos de agenda ou em reivindicação, constava a sempre actual questão da despartidarização da Administração Pública, repleta, conforme já se evidenciou em demasia, de células do partido Frelimo. Aliás, o próprio Governo está consciente disso: por exemplo, a 19 de Março de 2010, durante o encontro que manteve com o G19, Aiuba Cuereneia, ministro da Planificação e Desenvolvimento, disse que “a partidarização das instituições do Estado não constitui apenas preocupação para os partidos da oposição, mas igualmente para o executivo moçambicano” (edição de 25 de Março de 2010 do “Diário do País”).
Não passou despercebido, para mim pelo menos, o facto de a comissão governamental liderada por José Pacheco não ter sugerido, pelo menos até onde sei, a inclusão de pontos que fossem do seu interesse na agenda daqueles “encontros de trabalho”. E isso não foi, certamente, por acaso. Seria de esperar, em condições normais, que o Governo procurasse exigir, da Renamo, naqueles encontros, a imediata desmobilização (não sei se é esse o termo correcto para o caso aqui em apreço) dos homens armados da Renamo. Mas porquê tal me parece não ter sido por acaso?
Dois motivos terão concorrido para tal, com predominância do primeiro sobre o segundo: (i) é preciso ser muito ingénuo politicamente para pensar que a Frelimo não tira benefício da existência daqueles homens armados; em momentos eleitorais, aqueles constituem fonte primordial de discurso para Frelimo, que sempre os usa para “provar” que a Renamo ainda não se desmilitarizou; e (ii) se a Frelimo acrescentasse outros pontos à agenda, estaria, ela mesma, a desmontar a sua posição de que se estava em presença de “audições” e não de “negociações”. É por isso que sou dos que tem defendido, nos últimos anos, que, em bom rigor, aqueles são homens armados da Renamo e da Frelimo.
E sobre as eleições deste ano, que tem, naturalmente, alguma conexão com as audaciações de 2012, alguns dizem que pode não ser despropositado que o Presidente da República não tenha, até ao presente momento (12 horas do dia 01 de Fevereiro de 2013), promulgado a Lei Eleitoral. Nos termos da norma contida no número 2 do artigo 163 da Constituição da República, as leis são promulgadas 30 dias após a sua recepção. De acordo com a mesma norma, tal pode não ocorrer dentro desse prazo somente na situação em que a mesma tenha sido reencaminhada ao Conselho Constitucional, para este se pronunciar em torno da sua não inconstitucionalidade. Mas desconfio que o Presidente da República a tenha recebido nalgum momento em Janeiro, pelo que ainda pode estar dentro desse prazo legal; consta que a Assembleia da República não tem sido muito flexível no envio de leis aprovadas, o que, neste caso concreto, irá, potencialmente, afectar o processo de planificação pelos órgãos de gestão eleitoral.
A questão da legislação eleitoral constava, de resto, da agenda dessas audaciações. A Renamo, como é sabido, se opôs ao que a Assembleia da República aprovou (Frelimo e MDM) a esse respeito. E, tendo fé nas palavras de Sofrimento Matequenha, delegado político da “perdiz” em Manica (“O País” de 01 de Fevereiro de 2013), este partido insiste na inviabilização das eleições autárquicas. O que somente o tempo dirá é se a Renamo não irá, com essa inviabilização, se inviabilizar a si mesma.
Ao MDM, por exemplo, interessa muito que a Renamo boicote as “autárquicas” deste ano, não acontecendo o mesmo com a Frelimo. Em Quelimane e Beira, por exemplo, um eventual boicote beneficiará o MDM, que, sem muitas dificuldades, poderá ver garantida uma maioria absoluta nas respectivas assembleias. Acho não ter sido por acaso que Manuel de Araújo pôs Afonso Dhlakama a dar um “show” político em Quelimane a 4 de Outubro do ano passado.
Volto às questões iniciais: Mas será que não houve mesmo resultado algum ao cabo daquelas sessões? Se houve, que resultado em concreto? Alguma utilidade para a nossa democracia ou para o doméstico processo de democratização?
Bem, já disse, na verdade, que o mais “mensurável” resultado foi a abertura do ano político 2013; outro foi o espaço que a Renamo propiciou à Frelimo, através do seu Governo no caso aqui retratado, para que esta “mostrasse” que “estamos sempre abertos ao diálogo”. Apesar de a mesma Frelimo ter vindo a terreiro dizer, a princípio, que nada havia a dialogar. Se isso tudo tem alguma utilidade para a nossa democracia, confesso que não sei, pois, para usar as palavras cantaroladas pelo DJ Ardiles, resumindo a história de um casal problemático: “…a gente briga mas depois se entende; é a nossa maneira de viver”. Coisas da República do Pandza(Ericino de Salema)

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