A certeza do nada
Há quase trinta anos, fiz pesquisas na periferia de Xai-Xai sobre a forma como as pessoas lidam com crises e calamidades. A dada altura, as pessoas começaram a me falar dum fenómeno com o nome de “xingufo”. Diziam-me que ele vivia numa casa bem específica onde morava, sozinha, uma idosa. Este “xingufo” passou a ser a explicação para muita coisa que não estava bem na zona. Nunca ninguém tinha visto a coisa, embora quase todos tivessem a certeza de a ter visto, pois ouvi várias descrições desde algo parecido com um tigre até uma mancha preta flutuante.
O que mais me fascinou na altura foi a forte convicção com que as pessoas falavam da existência deste “xingufo” apesar de não terem aquilo que na minha socialização académica se chama de base “facto”. Na verdade, havia uma base factual. Era a forte convicção nos efeitos reais da presença desse fenómeno! Num primeiro momento, a gente facilmente refere isto ao reino das crenças e, por extensão, ao mundo da irracionalidade. Contudo, é mais do que isso. É um desafio às formas estabelecidas de apreender o mundo que estão hoje sob forte contestação em todo o lado. Rótulos como “pós-facto” ou “pós-verdade” não captam a essência do que está em jogo.
Por exemplo, nos últimos tempos tenho estado envolvido em várias discussões com pessoas diferentes sobre a crise pós-eleitoral no país. São pessoas que me dizem que houve fraude. Eu digo que não houve, ou que as irregularidades e os ilícitos não explicam a vitória da Frelimo anunciada pela CNE. As pessoas que discutem comigo dizem que estão a ser sinceras, apelam até à alma das suas avós. Eu também faço o mesmo.
Quero dizer, podemos ficar o dia inteiro a trocar essas conclusões a que cada um de nós chegou. Mesmo quando tentamos puxar por aquilo que consideramos “provas irrefutáveis” do que defendemos, o outro lado – meu ou deles – põem em causa essas “provas irrefutáveis” e voltamos ao único lugar onde nos sentimos bem: defender as nossas convicções.
O que é que está a acontecer aqui? Acho que está acontecer algo que nós que operamos dentro do espaço discursivo das ciências sociais não temos tido o cuidado de reflectir devidamente. As nossas abordagens dependem muito da projecção da ideia segundo a qual “factos” podem resolver disputas desta natureza. Nesse sentido, o desacordo para nós é sempre manifestação ou de ignorância (de factos) ou de incapacidade de avaliação de factos.
O que vemos nos últimos tempos em todo o mundo, contudo, é que sem esta soberania dos factos – como nós os entendemos – as premissas que sustentam a ideia que temos da realidade ficam bastante tremidas. É aqui onde descobrimos que por muita erudição que possamos ter, todos nós acreditamos em “xingufos” com alguns de nós mais capazes de fundamentar isso melhor do que os outros. Mas é crença em “xingufos” na mesma. Quem diz que houve fraude acredita em “xingufos”. Quem diz que não houve fraude também acredita nos seus “xingufos”.
E pode ser aqui onde reside a nossa crise pós-eleitoral. Para além de todas as razões legítimas que todos nós temos para nos sentirmos órfãos duma independência privatizada por um partido político dominante que virou as costas ao seu próprio projecto de independência, o grande problema neste momento não é se os números mentem ou não, mas sim se isso importa para a formação de opinião sobre o que aconteceu. Está visto que não importa de tal maneira que se tornou até fútil discutir a questão de saber quem realmente ganhou. Já que nenhum facto ajuda para a gente dirimir essa discussão, também deixa de fazer sentido insistir em qualquer que seja a posição.
Não é não termos certeza. É não termos certeza do nada. Não ter certeza é ter dúvidas sobre a existência do “xingufo”. E não é esse o caso lá na periferia de Xai-Xai. As pessoas sabem que aquilo que não existe, existe muito bem. Como sabem? Pelos seus efeitos! As pessoas veem as desgraças que acontecem na comunidade e têm a capacidade de as associar às ideias centrais na base das quais lá na comunidade se torna o mundo intelegível. É aquilo que o filósofo escocês, Hume, chamava de relações de ideias e questões factuais. A discussão só é possível ao nível das primeiras, não das últimas, pois os factos sempre podem ser diferentes. As ideias não. Têm dois valores constantes: certo e errado.
Ou por outra, queremos discutir, mas sem uma ética discursiva comum que enquadre essa discussão. É impossível. Esta é a verdadeira tragédia que o país vive neste momento. É uma tragédia que veio se anunciando ao longo de vários anos de autismo político temperado pelo gosto salgado da hostilidade à diferença de opinião. por parte de quem detém o poder político.
Estamos todos reféns dos nossos “xingufos” e o pior é que alguns de nós, de ambos os lados, estamos dispostos a fazer mal aos outros na defesa do nosso cárcere.
Nizete Monteiro Cassamo
Obrigagada, Professor. É o texto que precisava de ler para encontrar um.pouco de paz. É mesmo, estamos todos reféns dos nossos "xingufos". Já agora, Luly Silvestre e Cristina Salia. Peço para lerem o texto. Ando tão cansada dos nossos "xingufos."
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Rui Miguel Lamarques
“(…) e o pior é que alguns de nós, de ambos os lados, estamos dispostos a fazer mal aos outros em defesa do nosso cárcere”, eis a síntese destes dias.
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Reginaldo Ernesto Massango respondeu
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2 respostas
Luís José Loforte
Na minha terra também existe o "xingufu', mas com a designação de "txitukutuane". A sua aparição acontece sempre em tempos de crises, ou para as anunciar. Acredita-se que quem o veja estará imune às consequências da crise. A crise mais comum é a seca, sendo abençoado quem ainda apanhe "txidokomelani" (erva daninha trepadeira) na machamba deserta. Quanto às analogias, não acredito é nos "xingufos" dos "autistas políticos". E Brasão Mazula parece tê-lo dito de forma mais objectiva.
4 d
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Cristiano Matsinhe
Penso que falta, nesta equação, Elísio, a ponderação sobre o novo factor. Restrospetivamente, nunca houve ano eleitoral, em que não tenhamos tido crise pré, eleitoral ou pós, independentemente da magnitude! A diferença está nas formas como cada critico ciclo foi gerido. Entre concessões, acomodações e idas às matas, navegamos, e isso tornou-se um nosso normal padrão de interação. Desta vez, saímos do padrão e o mais estranho é que nenhum, dos habituais donos da bola, tem a bola para condicionar o jogo. Excepcionalmente, a bola está na cabeça de um único individuo, numa sociedade habituada a tomar decisões centradas em consenso holisticos, ainda que sobre instruões de uma casta dominante. Desta vez, uma parte da suposta massa amorfa, ou legião de vândalos, como se costumou chamar, terá optado, consciente ou messianicamente, não conformar-se à já “tradicional” arquitectura e plataforma de gestão de conflito pós eleitoral, gerando perplexidade e impasse, sobre a dinâmica sociopolítica. Nisto, a inabilidade de rearticular uma narrativa que concorra para a coesão social, parece-me sintomática de uma cultura autoritária e liderança que abandou os seus ideiais independentista, e com a visão tolhida pelo gosto e gozo do poder que a bel prazer vem exercitando. Em outros termos, o que é realmente confuso, desta vez, é que não há uma contraparte com a qual “negociar”, senão esperar a boa vontade de uma “live”, para tentarmos remendar um dia de vida, de cada vez. Assim visto, como país, conseguimos a extraordinária façanha de nos fazermos reféns, do nosso manequeismo eleitoral. É Obra!
4 d
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Donaldo Tovela respondeu
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Jose Luis
Pela crença absoluta dos nossos "xingufos" nos tornamos intolerantes. De certeza que esse "xingufo" enquanto facto nunca vai ser explicado. A vida vai ser assim, de crises pós eleitorais!
4 d
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Joao Carlos Frade
Existe um dito popular que diz que duas coincidências são uma certeza. Várias coincidências reforçam a certeza.
É interessante notar que estes "xingufos" aparecem sempre, antes, durante e depois de todas as eleições, municipais e gerais.
O mais grave ainda é que os acusados de abrigar os "xingufos" nunca aceitam abrir a porta para deixar a "população" investigar devidamente o "fenómeno".
4 d
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Filipe Ribas
Quando visito as partes que entendi, das muitas intervenções em que analisas o país, estou em crer ser este post um " já vos fui dizendo". Isto porque, de facto, o que encontrei aqui foi uma explicação de um que se tivéssemos agido ou perspectivado daquele certo modo, não estaríamos como e onde nos encontramos. A frequência da calamidade já devia ter gerado melhores soluções em vez de criar, ela própria, resistência.
4 d
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José Pinhão
Em vez de confiar nos vossos "xingufos" e acreditar em crendices para justificar o impasse na resolução do conflito eleitoral ou simplesmente apelar a manifestos de intenção para uma cidadania segura (sempre desejável), não seria melhor chamar "os bois pelos nomes", falar claro sobre os factos que são as fraudes eleitorais documentadas e exigir a publicação do ficheiro excel ou outro com a identificação e soma das mesas de votos com a possibilidade de verificação dos editais que deram origem a esses dados?
Parece que tal como a elite moçambicana os venezuelanos também acreditam em xingufos...
4 d
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Joaquim Huo
Os Moçambicanos exigem a devolução do seu XINGUFO: "a independência [roubada] e privatizada por um partido político dominante que virou as costas ao seu [nosso] projeto de independência." Digo nosso enquanto movimento de libertação de Moçambique. " tudo que não está bem na zona [Moçambique] passará a ter explicação quando todos estiverem envolvidos, não um grupelho que acha que são iluminados por nossos deuses.
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Ilda Filipe Jotamo
E o ...basta basta...do comandante DA PRM também mostra que existe "Xingufu"
3 d
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Mass Art
Prof esperei muito por um texto seu que falasse da actual realidade social. Esperei que falasse do conceito "Terrorismo Urbano" e do impacto das acções que podem ser geradas em defesa da ideia de um terrorismo urbano que se diz ser praticado por gente indefesa que reivindica os seus direitos, afinal me enganei? Um xingufo me fez crer nisso... E o texto veio com uma abordagem imprevisível. Mas sobre o conceito em causa, sei que texto seu consultar para matar a sede de reflectir sobre a operacionalização dos conceitos.
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Ivan Amade
“Ou por outra, queremos discutir, mas sem uma ética discursiva comum que enquadre essa discussão. É impossível.”“
12 h
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