O dia seguinte
Em 1999, fui à Costa do Marfim para dar palestras. Encontrei-me com vários colegas locais empolgados com o discurso de “ivoriedade”. Diziam estar preparados até às últimas consequências para evitar que o país fosse governado por um “estrangeiro”. Referiam-se a Outtara, a quem acusavam de ser burquinabé. Disse-lhes que os entendia, mas que tivessem cuidado.
Falei-lhes da guerra civil em Moçambique. Disse-lhes ser fácil começar uma guerra. Acabá-la é que era o problema. E não só. O dia seguinte ao fim da guerra pode não ser o mesmo que sonhavam. Um mês após a minha partida houve golpe de estado, depois guerra civil, muitas mortes, muita destruição e, no fim, a pessoa que contestavam ganhou e continua no poder até hoje.
Nestes dias conturbados em Moçambique – sobretudo pelo silêncio cúmplice e pela inacção daqueles que nos deram a liderança que temos hoje – lembrei-me de Gadafi. Pensei que algumas pessoas pudessem agora perceber melhor qual foi realmente o problema com ele. Não foram os americanos, nem franceses, nem italianos. Foi a sua intransigência. Alguns líbios foram às ruas reclamar direitos cívicos. Ele soltou o aparato repressivo, como sempre. Só que daquela vez, ao invés de afugentar as pessoas, provocou-as. Foi morto e o país descendeu no caos do qual ainda não conseguiu recuperar.
Tem circulado uma tese interessante na esfera pública. Segundo ela, é melhor destruir tudo do que continuarmos assim. Diz-se, com certa razão, que os que estão do outro lado do poder não têm mais nada a perder – senão as correntes que os amarram. Que se destrua agora, mais tarde ver-se-á.
É uma tese interessante que volta a levantar a questão de saber porque quem se juntou à Frelimo por se identificar com o ideal de independência e dignidade humana para os moçambicanos (ou foi por outras razões inconfessas?) parece estar indiferente à gritante incompetência do governo do seu partido. Porque não diz “basta!” e exerce a sua cidadania exigindo do seu próprio governo respeito pela legalidade e, acima de tudo, uma resposta política à crise, não uma resposta que consiste na violência gratuita da polícia?
O problema da tese de destruir para reconstruir é duplo. Primeiro, ela faz parte da mesma lógica de poder que viu a Frelimo a descer tão baixo. É a lógica de quem acredita fanaticamente na sua razão. Uma pessoa assim não é receptiva a nenhum argumento. É impermeável à razão. Se só fosse isso, contudo, tudo ainda estaria mais ou menos bem. Mas não é. Quem acredita fanaticamente na sua razão, tem a tendência de ser cruel. Este é o segundo problema.
A crueldade é, talvez, o pior vício humano, muito mais do que a desonestidade ou egoísmo. Quem é cruel é indiferente ao sofrimento humano, não vê humanidade para além de si próprio e não tem nenhum incentivo para tentar ser a melhor versão de si próprio. À crueldade da Frelimo junta-se agora a crueldade de quem se considera injustiçado. Já vimos o filme. A luta da Renamo pela democracia foi feita de forma cruel. Os que sofreram os horrores dessa luta “justa” não se consolam facilmente com a ideia de que a Frelimo também foi cruel.
Estes dois problemas deviam levar a uma reflexão séria. Ninguém precisa de largar mão daquilo que considera justo. A questão, contudo, é que garantias tem de que a impossibilidade de resolver o que precisa de ser resolvido de forma civilizada agora será ultrapassada quando tudo estiver destruído. E um dos maiores desafios que a presente situação apresenta é que ninguém controla o que está a acontecer.
O partido no poder não controla nem o seu presidente, nem a polícia. Quem convocou as manifestações não controla quem se faz à rua. Segundo a tese de destruir tudo para reconstruir, contudo, isso é o de menos. Mas isso só será até quando a revolução começar a comer os seus próprios filhos.
Hoje, aumentam ameaças a tudo o que está do outro lado: famílias de polícias, membros do STAE, membros da Frelimo, funcionários públicos, pacatos cidadãos que querem ganhar a vida, analistas que dizem o que não encaixa, etc. Ninguém instruiu ninguém a fazer este tipo de ameaças, mas é o resultado do uso da frustração e desespero de gente sem organização política.
É como alguém disse a propósito daquele princípio sagrado do Velho Testamento (Mateus 5:38): olho por olho, dente por dente ... até ficarmos todos cegos e desdentados. Mas com razão, claro! Ou como um taxista inglês me disse em Berlim um dia quando lhe perguntei como era para um inglês exercer aquela profissão na Alemanha: “aprendi que o alemão está preparado a morrer para mostrar que tem razão!”. E ele achava isso ridículo...
Uma mudança precisa, para além do sentimento de ultraje, duma teoria de mudança. Neste momento, a Frelimo não tem uma teoria de mudança porque, por um lado, seja quem for que controla o Presidente da República apostou no manual da autocracia ao estilo de Gadafi e de muitos autocratas que levaram os seus países ao caos e, por outro lado, porque quem podia contribuir de forma constructiva decidiu esconder-se por detrás da ideia de que uma pessoa que ao longo de dez anos desgovernou não lhes deixa falar. Quando homens e mulheres crescidas deixaram que lhes fosse imposto um candidato que mal conheciam ficou claro para mim que essas pessoas tinham desistido do país e, por isso, deixei de ligar à tese de que tudo isto é por culpa duma pessoa.
A teoria da mudança pode vir de quem se opõe ao actual estado de coisas. De momento, para além da catarse e daquilo que o saudoso sociólogo Carlos Serra chamava de “crenças anómicas de massas”, não vejo nenhuma teoria da mudança. Essa teoria de mudança tem que ter uma ideia clara, não difusa, de como se constrói o dia seguinte, não de como se destrói o dia de hoje. Não ter nada a perder não ajuda, ainda que seja verdade.
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