A despolitização
Todos os anos, ofereço uma cadeira com o título “questões centrais dos estudos africanos”. Um dos temas que sempre abordo é histórico: o movimento Xhosa (de 1850) de chacina de gado. Uma menina de 12 anos, Nongqawuse, voltou do rio (Gxarha, no Cabo Oriental) e informou à comunidade que tinha falado com os antepassados. Estes teriam dado instruções à comunidade para abater o seu gado, limpar os currais, lavar-se e deixar de cultivar, pois os antepassados iriam ressuscitar, regressar à comunidade trazendo gado novo, afastar os invasores brancos e encher os celeiros de comida.
Para melhor compreensão do enredo é preciso saber que o gado tinha sido infectado por uma doença aftosa levada para lá pelos colonos brancos. Perante uma doença desconhecida e circunstâncias sociais completamente novas, os membros da comunidade ficaram vulneráveis à narrativa da rapariga. Estima-se que os Xhosa tenham abatido por aí 400 mil cabeças de gado e que tenham morrido de fome para cima de 80 mil pessoas. Esta deve ser uma das maiores tragédias humanas auto-infligidas, ainda que em reacção a circunstâncias fora do controlo das pessoas.
Gosto de abordar este tema por várias razões. Uma é de proporcionar um momento de reflexão sobre a complexidade da mente humana (e não apenas “africana”, pois coisas semelhantes têm acontecido por todo o lado; o destaque vai, por exemplo, para a famosa caça às bruxas na Europa que quase deixou a Suíça sem mulheres...). Por vezes esquecemos que estudar fenómenos sociais é tentar entender a mente humana naquilo que ela tem de universal e particular. A segunda razão tem a ver com a sempre presente questão da racionalidade. O que constitui uma acção racional e que direito tem quem pesquisa de rotular? Mas a principal razão tem sido de compreender a lógica que está por detrás da reacção africana a uma história adversa e o que é preciso para que ela seja quebrada a favor da transformação do futuro num projecto positivo.
A antropologia social é que tem dedicado mais atenção ao assunto com recurso ao conceito de milenarismo. É a ideia cristã segundo a qual estaria iminente o regresso do Messias à terra para salvar a humanidade e fundar um reino de abundância, harmonia e paz. Embora teológico, o conceito tem um fundo social, normalmente o sofrimento real às mãos de sistemas injustos de dominação. O estudo do fenómeno incide mais na tentativa de perceber o que leva pessoas perfeitamente racionais a assumirem atitudes que parecem “irracionais” até ao ponto de se prejudicarem a si próprias.
Há três factores que precisam de ser tomados em consideração nessa tentativa de compreensão. Primeiro, estes movimentos têm uma liderança (profética) constituída por um indivíduo (homem ou mulher) visto pelos seguidores como alguém com a prerrogativa (normalmente “divina”, ou´, no caso de Nongqawuse, vinda dos antepassados) de interpretar uma vontade superior a todas as vontades. A função desse indivíduo é de anunciar continuamente a chegada do grande dia ao mesmo tempo que explica porque ele não se materializou. O vínculo entre o indivíduo e os seguidores é a fé, portanto, crença total em tudo de bom que ele representa ao ponto de qualquer crítica de fora que lhe for feita ser vista como uma afronta a todo o grupo.
O segundo factor é a capacidade de o grupo interpretar o seu sofrimento real como algo que demonstra a sua “eleição” (vide os “judeus” da Bíblia) perante a vontade suprema. Isto é importante para a coesão do grupo, mas tem um lado perverso. Por se considerar vítima, o grupo passa a dividir o mundo entre os “bons” e os “maus”. Ao fazer isso, baixa a defesa ética permitindo que entre na cabeça dos seguidores a ideia de que o mal só é mal quando é praticado pelos opressores. Dependendo das circunstâncias, os seguidores podem se tornar não só intolerantes como também extremamente cruéis. Durante a chacina de gado entre os Xhosa, aqueles que não acreditavam na profecia foram vítimas de horrores acusados de serem os responsáveis pelo adiamento da chegada dos antepassados.
O terceiro e último factor é a polarização emocional dos assuntos. Problemas sociais verdadeiros deixam de ser estruturais e passam a ser a manifestação dum mal orgânico de que padecem aqueles que não são seguidores. Quando é assim, não é o argumento racional que pode fazer alguém mudar de ideias. É o exorcismo, portanto, a violência. Na política é este factor que explica a violência extrema de ideologias milenaristas como o Comunismo e Nazismo. Vimos isso no nosso País com a Frelimo e sua violência gratuita do período imediatamente a seguir à independência. Não se conversa com um “reaccionário”. Reeduca-se e se não quer ouvir, vai sentir.
Os Xhosa, infelizmente, foram os grandes perdedores. Os antepassados não vieram, apesar dos rumores segundos os quais já teriam derrotado os britânicos na guerra da Crimeia. Foi assim que se consolidou o poder colonial britânico com a expropriação dos nativos e sua integração forçada na economia monetária criada pelos colonos. Mas para não parecer demasiado negativo destaco aqui um facto histórico: foi um Xhosa, Mandela, mais dum século depois, que reconduziu a África do Sul à civilização. Não o fez com uma mentalidade milenarista. Fê-lo com um projecto positivo do futuro que apostava nas instituições (apesar de ilegítimas e desacreditadas), no debate racional de ideias e na transformação dos problemas do seu país em assuntos passíveis de serem abordados politicamente.
O problema com o milenarismo, como a nossa história nos mostra com muita clareza, é o da despolitização. As reticências que a Frelimo tem com a democracia têm a sua origem aqui. Ela considera, de forma racionalmente autêntica, que como ela sabe o que é melhor para todos nós, não há nenhuma necessidade de se fazer política. É só confiar nela, ou pelo menos ter fé. E o maior desafio que qualquer alternativa enfrenta é de não cair no mesmo equívoco, também racional e autênticamente convencida de que sabe o que é melhor para todos nós. Onde se perde a razão (porque os outros são maus), raramente se alcança algo palpável senão o sofrimento de todos nós.
O milenarismo é autodestrutivo na melhor das crenças e convicções.
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