segunda-feira, 8 de julho de 2019

A ciência como refúgio

A ciência como refúgio
Anteontem participei num evento interessante na UNILAB, em São Francisco do Conde. Decorria a semana das ciências sociais e fui convidado pela Ana Cláudia e demais colegas para animar uma mesa redonda subordinada ao tema “Por uma sociologia das sociedades africanas” moderada por uma estudante angolana, Margarida Bendo, com a participação dum professor moçambicano da mesma universidade, Ercílio Langa. O debate que se seguiu foi muito animado. Das muitas perguntas excelentes que foram feitas, destaco uma colocada por uma professora sobre como conciliar o nosso compromisso político por uma sociedade justa com a objectividade do trabalho científico.
Não é uma questão nova. Já vem sendo discutida desde que a ciência existe, na verdade, sobretudo nas ciências sociais e humanidades. No passado distante, quando havia uma espécie de consenso sobre o mundo ideal – essencialmente a visão eurocêntrica dominante no auge do imperialismo – a questão não se colocava como sendo particularmente difícil de resolver. Afinal, tudo quanto a ciência fazia era contribuir para o progresso. O próprio Brasil – com o seu cada vez mais enigmático compromisso com o ideal iluminista de Ordem e Progresso – foi pelo menos no momento da sua criação exemplo desse consenso algo hipócrita. Com o decorrer do tempo, o consenso fragmentou-se por obra de desafios que surgiram por dentro da visão eurocêntrica e, mais recentemente, por conta da exposição da hipocrisia eurocêntrica feita por perspectivas críticas do resto do mundo.
Talvez um dos elementos mais problemáticos dessa exposição da hipocrisia tenha sido o questionamento da própria utilidade da noção de objectividade que em muitos círculos intelectuais é vista (injustamente, diga-se de passagem) com muita suspeita. A ênfase do materialismo histórico na maneira como interesses de classe determinam a validação do conhecimento pode ter sido útil como forma de expor a hipocrisia da ideologia capitalista, mas nos dias de hoje, e nas suas várias manifestações – muitas das quais distantes do cerne da teoria marxista – tem, curiosamente, ajudado a ciência popular a fazer a sua guerra sem tréguas à razão. O elemento central nisso é a ideia de que conhecimento válido é aquele que conforta convicções. A ideia de que a relação devia ser inversa, isto é que o conhecimento testa convicções, tem poucos adeptos e o resultado é o que vemos um pouco por todo o lado. Cada vez mais gente sucumbe ao conforto sedutor das convicções, o que cria espaço para a amplificação da opinião em detrimento do conhecimento.
A minha resposta à pergunta foi dizer que embora essa tensão exista, o desafio devia ser de usar a produção do conhecimento para testar as convicções. Dei como exemplo um livro interessante de Jessé de Souza (A classe média no espelho – sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade) sobre a classe média brasileira, um best-seller como também foi o seu anterior livro (A elite do atraso – que infelizmente ainda não pude ler). O livro faz uma aposta interessante de leitura daquilo que o autor considera como sendo o elemento central para a compreensão da sociedade brasileira, nomeadamente a classe média. É uma leitura estimulante, sem dúvida, mas decepcionante do ponto de vista teórico, conceitual e, acima de tudo, metodológico.
Do ponto de vista teórico é decepcionante porque reduz a vida social à produção imbecil de práticas sociais funcionais à reprodução de narrativas ideológicas que tornam os indivíduos reféns de si próprios. Mais decepcionante ainda é que ele localiza essas narrativas numa suposta ideologia judeo-cristã que se impôs à escala mundial. Conceptualmente, a análise decepciona porque ele define a classe média de forma circular. Essencialmente, para além da renda – que ele considera também importante – Jessé de Souza define a classe média como espaço de reprodução de privilégios tornando assim o particular no geral que, até, não se deve verificar à escala desse espaço social. Finalmente, e é aqui onde queria chegar, metodologicamente o livro decepciona porque aquilo que passa por análise é na verdade a elaboração da visão do mundo do autor. Dito doutro modo, o autor procura nos depoimentos dos seus entrevistados os elementos que confirmam a sua ideia da produção imbecil de práticas funcionais à ideologia dominante, o que me parece grave por até ser uma falta de respeito aos “dados”. Mas isso talvez seja outro assunto...
O problema desta abordagem é de fazer das preferências políticas do pesquisador critério de validação do conhecimento. Isto torna difícil a compreensão dos desafios que o Brasil enfrenta – na minha opinião ainda pouco informada e insuficiente. Por exemplo, e de forma pouco surpreendente, o autor – que se considera de esquerda – confunde aquilo que ele critica com o liberalismo, incluindo nesse conceito o neo-liberalismo do actual ministro da economia e o extremismo imbecil do presidente. Na verdade, porém, é numa concepção crítica e reflectida do liberalismo, quer me parecer, onde o PT encontra o seu programa de recuperação do Brasil, sobretudo na forma feliz encontrada por Eduardo Giannetti (Trópicos utópicos – uma perspectiva brasileira da crise civilizatória) segundo a qual “a igualdade de resultados oprime, a igualdade de oportunidades emancipa”. É com esse desiderato que as classes médias não-reaccionárias” potencialmente se identificam. Ele abre espaço para um outro tipo de debate na esfera pública sobre a importância da noção de oportunidade e o que ela pode contribuir para fazer do Brasil um país que não desperdiça o potencial presente nos brasileiros.
Dei uma grande volta para, na verdade, falar de Moçambique! Estou a acompanhar a alegria de muitos compatriotas pela recusa de liberdade condicional ao ex-Ministro das finanças na RSA. Eu não escondo o nojo que sinto por essas celebrações e nisso sou motivado não tanto por ser fã confesso do Presidente que esse Ministro serviu, mas sim pela leitura que faço do assunto das dívidas ocultas. É uma leitura que considero objectiva na medida em que procura dar importância à toda economia política do desenvolvimento destacando, no processo, os constrangimentos enfrentados por qualquer governo dum país em desenvolvimento nos seus esforços de manter o equilíbrio num mundo estruturalmente viciado. A minha ideia é de que perceber essa economia política é mais fecundo do que reduzir decisões políticas que se revelam desastrosas à ganância individual. Isto não quer dizer que a ganância individual não exista. A questão é se ela explicaria alguma coisa ou se sem ela – se é que isso jamais seria possível – o país seria melhor. Portanto, interessa-me saber as circunstâncias exactas em que faz sentido dizer que a ganância individual conduziu a decisões políticas desastrosas.
Se os tribunais provarem que a minha convicção política a este respeito – que consiste em dar o benefício da dúvida a esse governo – está errada não vou ser o homem mais infeliz do mundo. Isso vai me fazer rever a minha abordagem analítica, algo que me enriquece como cientista social. Quem fica preocupado com convicções é aquele que tem medo de pensar e, por isso, procura conforto nas verdades simples. A ciência é o meu refúgio, uma afirmação algo curiosa porque, no fundo, isso também é uma convicção...
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