A teia das soluções
Não sei se o fenómeno é novo. Interessa-me muito descrevê-lo aqui porque é uma das manifestações mais problemáticas da ciência popular. Esta, conforme tenho vindo a dizer, consiste no hábito de só aceitar como válido aquilo que conforta as nossas convicções. É uma atitude anti-intelectual, o que não significa necessariamente que seja prerrogativa dos não-intelectuais. Na verdade, é um hábito cultivado por muitos intelectuais, sobretudo aqueles que reduzem a sua formação apenas aos aspectos técnicos do que aprendem e pouco se importam com o sustento ético da própria ciência. Então, o fenómeno em questão é esta coisa que na falta de melhor termo chamo de “teia das soluções”.
A sua morfologia é simples. Consiste na obsessão com a ideia de que a melhor solução para qualquer problema é a melhor solução técnica para esse problema. Já explico. Se o problema é, por exemplo, o mosquito a solução é matar o mosquito e a melhor solução técnica, nesse caso, é pulverizar DDT. Não importam as consequências para a saúde e meio-ambiente. Se o problema é o crime a solução é encarcerar ou mesmo matar os criminosos. Não importa depois o que acontece nas prisões, nas comunidades, na confiança no seio da sociedade, aos polícias, etc. Se o problema é a ineficiência de empresas públicas a solução é privatizar. Não importa se isso vai criar monopólios piores do que os estatais, se vai relaxar critérios ambientais, etc. Se o problema é a dependência dos pobres da assistência social, então a solução é acabar com a assistência pública, não importa depois o que os mais vulneráveis fazem.
Há três problemas com esta ideia. O primeiro é que ela simplifica demasiado o mundo onde prestar atenção à complexidade podia ser útil. Atomiza os problemas e não vê como eles se articulam. Segundo, não tem necessariamente consciência de que a definição que faz dos problemas também é tão linear quanto a procura de soluções. Isso é assim porque os problemas não reflectem necessariamente a realidade empírica, mas sim o que as convicções filtraram. Por exemplo, o que pode levar um indivíduo sensato a pensar que exista o problema da dependência dos pobres da assistência pública é a convicção ideológica na meritocracia. Ela pode levar alguém a pensar que só é pobre quem é preguiçoso. Na cabeça duma pessoa assim o único dado empírico que entra é aquele que revela casos de indivíduos realmente “preguiçosos” que se “aproveitam” de fundos públicos. Todos aqueles outros que são realmente vítimas duma sociedade desigual não têm nenhum impacto nesse tipo de cabecinha. Terceiro, estas soluções são um fim em si, não promovem nenhum valor, nem protegem nenhum princípio. Atomizar, filtrar e marimbar-se para o resto.
Porque falo de “teia das soluções”? É porque este fenómeno se articula de forma dinâmica para produzir problemas maiores do que os que pretendia solucionar. Quando a gente perde de vista a ligação que um problema tem com outro a gente arrisca criar coisas novas, portanto, mais impenetráveis ainda ao nosso raciocínio. Não articularmos o que sabemos pelo prazer da simplificação traz consigo esse tipo de risco. Não existe o problema do mosquito, por exemplo. Existe o problema das condições em que as pessoas vivem, do tipo de acesso à saúde que existe, do funcionamento das instituições, do meio natural em que se vive, dos hábitos culturais e sociais, etc. Reduzir este problema a uma única dimensão (no caso, muitos mosquitos) é arriscar deixar que os outros se articulem de formas mais complexas ainda ao ponto de escaparem à nossa compreensão. É a mesma coisa com o crime. Era bom que ele consistisse apenas na existência de criminosos. Mas não é assim, infelizmente. A própria actuação da polícia é parte do problema, não apenas da solução.
A “teia de soluções” não só produz problemas mais complexos como também cria as condições para a sua própria reprodução. É, como diriam os antropológos, um corpo social. Quanto mais complexos forem os problemas, mais simples parecem as soluções e mais fácil é convencer o maior número de pessoas de que os problemas são de fácil solução. É incrível, mas parece assim mesmo. É desta simplificação inocente que vive o populismo. Em todo o lado onde os populistas estão na mó de cima vemos soluções simples para problemas complexos. Acabar com a migração, gritam na Europa, sem se importarem em saber como vão garantir o funcionamento das suas economias sem estrangeiros; legalizar a transformação de agentes policiais em assassinos, dizem no Brasil, sem se importarem em saber o que será de todas as potenciais vítimas inocentes.
Agora, o que permite o florescimento desta dimensão da ciência popular é algo que cada vez mais falta faz às sociedades. Refiro-me à consciência de que uma sociedade só merece esse nome se ela constitui um ideal pensado pelos seus membros. Um ideal não é aquilo que a indústria do desenvolvimento promove na mente de muitos jovens, nomeadamente uma sociedade sem fome, nudez, etc. Um ideal é sempre um valor (ou conjunto de valores) cuja promoção e protecção fragiliza o que cria a fome ou nudez ao mesmo tempo que inocula a sociedade contra essa causa. Visão de sociedade é isso. É assim que o Marxismo (apesar de todas as minhas reticências) pode estar na base duma visão de sociedade com a sua ênfase no princípio de solidariedade e justiça social. É assim também que o liberalismo pode estar na base duma visão com a sua preocupação com igualdade de oportunidades. Quando leio coisas do Facebook moçambicano dificilmente fico com a impressão de que quem fala o faça em referência a algum conjunto de valores que ele ou ela reflicta de forma consciente e consequente. Não vejo nenhuma visão de sociedade em muita coisa que leio por aqui, sobretudo de alguns militantes de algumas OSC.
A impressão que tenho é de que muitos derivam satisfação em fazerem parte duma maioria que se considera como sendo do bem. Reduzem a decência à identificação com essa maioria. Não sabem que decência não é ser capaz de se indignar como a maioria se indigna, mas sim de organizar a sua própria vida em torno do valor cuja promoção vai limitar as condições que produzem a razão da indignação da maioria. Não é por acaso que muitos não sejam capazes de ver a contradição entre condenar ruidosamente o que os outros fizeram de errado e permitirem-se a si próprios excepções à regra (“porque é outra situação”...). Quantas dívidas ocultas não foram contraídas por todos aqueles que andam de dedo em riste hoje, mas, claro, em menor escala, noutras situações, bom, por razões justificadas, etc.? Quantas? É característico da ciência popular preconizar uma moral absoluta (principalmente para os outros), pois isso cria um bôde expiatório cujo arrastamento infinito na lama garante a plausibilidade das soluções simples. Não é à toa que o crescimento da ciência popular coincide com a expansão das igrejas evangêlicas. Elas também vivem da promoção do diabo. O fim da moral absoluta é o Estado absoluto, vulgo, despotismo.
Quem leu com atenção há-de ter percebido que estou a falar dos processos que se avizinham contra os promotores das dívidas ocultas. Eles transformaram-se hoje no bôde expiatório ideal para inocular a sociedade contra a necessidade de olhar para a complexidade dos seus problemas e aceitar que, talvez, ela própria seja parte do problema, não da solução. Mas como sempre, há aqueles que preferem promover a ideia de que o problema é bem simples, que não há mais nada a considerar senão a punição dos “lesa-pátria”. Por um lado são os jovens que abdicaram completamente do pensamento crítico por medo de serem identificados com o lado errado da história (o que seria a morte social numa esfera pública que só julga) e por outro são indivíduos já crescidos que confundem a sua capacidade de articular indignação com intervenção crítica. Qual é o problema? Ganância individual. Qual é a solução? Punir severamente. Qual é o problema? Inoperância do sistema de justiça. Qual é a solução? Extraditar. Depois disso feito, o País voltará à normalidade. O mundo é simples, só alguns sociólogos fãs de lesa-pátria é que gostam de complicar...
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