A aparição de Obama não trouxe selfies nem Trump, mas encheu o Coliseu do Porto /premium
Chegou e foi embora sem ninguém o ver, quase como um fantasma, e a sua vinda virou a Rua Passos Manuel do avesso. Mas Obama deixou o Coliseu em alvoroço com uma hora de conversa franca.
São 10h15 da manhã quando Mohan Munasinghe e Irina Bokova chegam ao Coliseu do Porto, numa carrinha cinzenta de vidros escuros. Os elementos da segurança, de fatos cinzentos e auricular transparente colado ao ouvido, abrem caminho discretamente através da multidão que espera para passar nos pórticos de segurança. Encostados à parede, do lado esquerdo, os dois oradores sobem a escadaria do Coliseu em passo apressado, olhando em volta. Não há “bolha de segurança” do Serviço Secreto, nem baias a separá-los das pessoas — estão ali, à mercê de quem lhes queira atirar um olá ou pedir um beijo. Mas ninguém o faz.
Algumas das pessoas mais próximas do local apercebem-se da movimentação. “Ali vai ela!”, comenta uma senhora com as amigas. “Ela”, Irina Bokova, encheu durante semanas as colunas dos jornais, apelidada de maior ameaça à eleição de António Guterres para o cargo de secretário-geral das Nações Unidas. Já Mohan Munasinghe, que segue à sua frente, partilhou o Nobel da Paz de 2007 com Al Gore, pela sua ação nas questões climáticas. Apesar disso, aqui os dois podem atravessar com tranquilidade uma multidão de portugueses sem que haja uma tentativa de os parar.
É que os mais de dois mil convidados que não faltaram à chamada da Climate Change Leadership Summit estão ali, na sua maioria, não por causa de Bokova, nem de Monasinghe. Estão ali graças a outro nome muito mais sonante, que também encheu (e enche) páginas de jornais e que também recebeu um Nobel da Paz, mas que é muito mais conhecido pelo cargo que abandonou há dois anos — Barack Obama, ex-Presidente dos Estados Unidos.
É ele a estrela desta conferência e é por ele que as duas mil pessoas aguentam sem resmungar o apertado controlo de segurança que as deixou à espera, em pé, para entrar durante horas. Três controlos de identificação, passagem por detetor de metais e… piii, piiii. Em caso de apito, há revista feita por um agente de segurança, como nos aeroportos.
A esta hora do dia, nada de Obama ainda. A sua presença é apenas sentida e comentada pelos corredores, com antecipação. A Rua Passos Manuel está interdita à circulação e, mesmo a pé, o acesso é limitado. No corredor central criado no meio da rua, marcado com grades de metal, estão estacionados carros de polícia, carrinhas de bombeiros, veículos da Proteção Civil. Por todo o lado há homens e mulheres fardados, com diferentes tipos de vestimenta. Num olhar de relance é possível ver o azul claro da PSP, o azul escuro de equipas de intervenção, apontamentos de vermelho dos bombeiros e até o cinzento dos militares de altas patentes.
O pós-crise é “a altura certa” para intervir na Península Ibérica, diz assessor de Obama
Lá dentro do Coliseu, não há porta que não esteja guardada por alguém e por onde se passe sem mostrar pulseira ou credencial do evento. Não faz mal, comentam os convidados, tudo por Obama. O ex-Presidente está em Madrid, a participar noutra conferência, e só chegará depois do almoço. As participações na Península Ibérica são duas de apenas seis marcadas em eventos internacionais para este ano, o que torna a visita mais especial para muitos.
A ligação Porto-Madrid surge graças à Advanced Leadership Foundation, com escritório na capital espanhola, e à sua estratégia ibérica. É graças a ela, explicará mais tarde o presidente da Fundação, Juan Verde, ao Observador, que foi possível trazer Obama a Portugal: “A nossa Fundação organiza muitas cimeiras de liderança e tenta criar ‘embaixadores’ em diferentes tópicos, que possam influenciar políticas. Mas ainda não tínhamos feito nada na Europa e achámos que a Península Ibérica era um bom lugar para começar”, explica. “Portugal e Espanha estão a recuperar de crises económicas e agora é a altura certa para intervir aqui.”
Verde é espanhol, mas até prefere falar em inglês do que em “portunhol”, diz, já que são muitos os anos a viver em Washington — afinal de contas, trata-se de alguém que foi assessor de Bill e Hillary Clinton e, mais recentemente, do próprio Obama. Juan Verde foi inclusivamente subsecretário-adjunto para a Europa e para a Eurásia do Departamento de Comércio da Administração Obama. Não admira que tenha conseguido ajudar a trazer o ex-Presidente a esta cimeira, então. E será ele a conduzir a conversa com Obama em cima do palco, da parte da tarde.
Ainda antes disso, a manhã é preenchida pelas participações de Irina Bokova e Mohan Munasinghe, mas a sala ainda está a meio gás. Muitos dos convidados só aparecerão à tarde, quando o almoço já tiver sido distribuído de mão em mão em caixas de cartão. É a “lunch box” prometida pela organização liderada pela Fladgate Partnership, da Taylor’s, e também ela é fruto das razões de segurança. Depois de se entrar no Coliseu, ninguém mais pode sair, nem para comer uma francesinha; resta comer os conteúdos da caixa, delicadamente empacotados em embalagens de plástico, pese embora estejamos numa conferência sobre o clima e o ambiente. Obama oblige.
Os convidados encavalitam-se onde podem para ir trincando uma sanduíche, ora espalhados pelos seus lugares, ora encostados a paredes nos corredores, em amena cavaqueira. A expectativa para a tarde é grande — e Obama não irá desiludir. Pouco passa das 15h (hora prevista) quando Juan Verde, após a sua apresentação, chama o ex-Presidente ao palco. Antes disso, um aviso surge no ecrã, pedindo que não sejam tiradas fotografias nem filmados vídeos, nem sequer com os telemóveis. Depois, entra Obama, a figura tão esperada, acenando à multidão e recebido com fortes aplausos de uma audiência de quase três mil pessoas — onde se incluem rostos da política como Paulo Rangel, Marques Mendes e também ministros como Manuel Caldeira Cabral, da Economia. Outro ministro, o do Ambiente (João Matos Fernandes), irá encerrar o evento.
A conversa entre Verde e Obama aflora a maioria dos pontos da atualidade que se poderia esperar. Migrações? Estão “claramente” ligadas às questões climáticas e é necessário ajudar nos países de origem. “Se não resolvermos isto, não há muros suficientemente altos para parar estas correntes migratórias”, alerta. É uma das referências veladas à política de Donald Trump, mas não é a única. Nas matérias ambientais, Obama assume sem pejo que “o meu sucessor não concorda comigo”, dando como exemplo a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris.
Mas as respostas vão além das matérias puramente climáticas e de sustentabilidade, com o antigo Presidente a falar, por exemplo, da crise dos media. “A democracia funciona se todos concordarmos mais ou menos com os mesmos factos”, alerta, explicando que não consegue ter uma discussão sobre ambiente com alguém que diz: “Não acredito que o mundo esteja mais quente, isto é tudo uma conspiração”. “Se essa pessoa diz ‘esses dados são inventados, não acredito neles’, não sei como argumentar com ela”, desabafa, antes de refletir sobre a polarização no seu país e o que considera ser “as realidades alternativas” dos que consomem notícias através da Fox News e dos que lêem o New York Times.
Trump, o nome que não pode ser pronunciado
Foi assim, falando abertamente e partilhando pequenos momentos de humor — “a Michelle odeia política e os políticos”, comentaria a certa altura entre risos —, que Obama se mostrou descontraído na curta hora em que os portugueses o puderam ver. Apenas o Presidente atual, Donald Trump, não teve o seu nome pronunciado (optando Obama pela fórmula “o meu sucessor”), uma atitude que Verde enquadrou ao Observador numa conversa posterior: “Há esta regra não-escrita nos EUA de que os ex-presidentes não devem intervir no mandato atual, especialmente quando já não estão na política”, explica. “Eu seria mais agressivo com a administração Trump”, confessa, “mas o Presidente Obama não é assim”.
A imagem do homem cool, descontraído, do ex-Presidente que consegue lançar umas piadas e que não esquece a mulher e as filhas, manteve-se em Portugal. “Quando venho a Portugal estou sempre ocupado, mas pelo menos desta vez provei um Porto”, começa por dizer à multidão, que reage com palmas e gargalhadas. “Ele achou a cidade muito bonita, até mesmo logo a aterrar no avião acho isso”, garante Verde. “E prometeu voltar de férias”, acrescenta o ex-assessor.
Antes do adeus, Obama ainda deixa palavras às novas gerações. “Se falarem com pessoas da idade da minha filha, 20 e poucos anos, eles têm mais consciência ambiental, são mais tolerantes e mais sofisticados do que a minha geração”, disse, explicando que “o problema” é que não são os millennials que mandam. “Se houver jovens aqui, atirem-se a isso, dêem o passo”, atira, antes de reforçar a sua fé na Humanidade e no mundo e de dizer adeus.
“Quando venho a Portugal estou sempre ocupado, mas pelo menos desta vez provei um Porto.”
Daí em diante, mais ninguém o vê. Desaparece como por magia, como um fantasma que atravessa a parede e se esfuma, escondido dos olhos dos convidados no Coliseu e dos curiosos que esperavam no topo da Rua Passos Manuel. “Ele não saiu por aqui, não. Foi pelas traseiras, de certeza, ainda vi ali uma limousine no topo da rua”, garante ao Observador Amélia Pereira, reformada e moradora na Batalha desde que nasceu. Está encostada às grades com o marido Zulmiro, olhando para o movimento pouco habitual da rua. “Viemos aqui às compras, ao supermercado e à loja de 1€, e depois parámos aqui só para espreitar isto. E ver se via o meu sobrinho, que é polícia.” De Obama, nem sinal. “Não faz mal, vemos na televisão”, concedem. Mas era bom tê-lo visto? “Então não era, é uma jóia de pessoa, só fez bem ao país dele!”
É pena, diz Amélia, mas não se lamenta muito. Tristezas não pagam dívidas e, diz, “pelo menos amanhã já dá para ir ao Pingo Doce outra vez, já está aberto”. Amanhã, tudo volta ao normal. Mais abaixo na rua, escondida pelo aparato de carrinhas das forças de segurança, Irina Bokova já saiu com a sua equipa, passando por políticos portugueses, por jornalistas e por empresários, sem ninguém lhe travar o passo. Na rua, à porta do Coliseu, pára para analisar uma das ofertas dadas pela organização — um lápis de madeira que pode ser plantado, muito mais ecológico do que as lunch boxes que ficaram lá dentro em grandes caixotes do lixo.
À sua volta, ninguém parece reparar que está ali uma das oradoras da conferência — não há conversas, nem pedidos para tirar selfies, nem fotografias tiradas à socapa com o smartphone. Lá em cima, no topo da rua, Amélia e Zulmiro também não fazem ideia de quem é a mulher parada lá em baixo. Agora se fosse o Obama…
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