sábado, 19 de agosto de 2017

O CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DAS DÍVIDAS OCULTAS: PERSPECTIVAS SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO

Savana 18-08-2017 9 DIVULGAÇÃO SOCIEDADE Maputo, Agosto de 2017 1 de 5 O CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DAS DÍVIDAS OCULTAS: PERSPECTIVAS SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO Maputo | Agosto | 2017 Por José Jaime Macuane Nº4 Este artigo tem como objetivo apresentar o quadro político e institucional por detrás das dívidas ocultas e as perspectivas para a responsabilização. O foco são as instituições de gestão de fi nanças públicas, assumindo-se que a compreensão da sua dinâmica é importante para entender o contexto das dívidas ocultas. O trabalho divide-se em três secções: a primeira e a segunda apresentam o contexto político e institucional respectivamente, complementadas pela terceira secção que se debruça sobre as refl exões gerais e implicações para a responsabilização. Uma nota que se revela importante, principalmente tendo em conta que a questão da dívida, como será adiante apresentado, também se transformou num campo de disputa de signifi cados, é o sentido de responsabilização que aqui será usado. Esta é aqui entendida como simplesmente o apuramento das responsabilidades políticas e legais cabíveis em cada um dos contextos aqui analisados e a aplicação das correspondentes e previstas sanções. No sentido mais concreto, a responsabilidade política pode vir através do voto, punindo ou recompensando quem a cidadania considera responsável por algo positivo e negativo. Por sua vez, a responsabilidade institucional formal, se refere às sanções defi nidas na lei, quando aplicadas à uma determinada violação desta. Os elementos políticos e institucionais são adequados para se entender a questão das dívidas ocultas porque é no contexto político que se defi ne a vontade dos cidadãos e os processos legítimos de sua materialização; cabendo às instituições materializá-la. É também ideia deste artigo que a refl exão sobre o contexto das dívidas ocultas nestes termos deve ser capaz de identifi car e refl ectir sobre os pontos críticos existentes e, com base nisso subsidiar a discussão sobre como é que este problema pode ser pensado no futuro. O Contexto Político Dois aspectos serão aqui destacados: o processo histórico de construção do Estado moçambicano e a dinâmica politica que o acompanha, tendo como pano de fundo o contexto de democratização e do pós-guerra civil ou de 16 anos. Historicamente, a base de criação do Estado moçambicano é a vitória da luta de libertação nacional, que tornou a Frelimo no principal patrocinador político do processo de construção do Estado e da nação. Consequentemente, os ideais da luta de libertação informaram e enformaram a ideologia central da construção do Estado. Em um certo momento histórico esta ideologia foi o marxismoleninismo, formalmente de 1977 a 1989 (entre o III e V congressos da Frelimo), que teve como consequência a confusão entre o Estado e o partido governante. A guerra civil protagonizada pela Renamo e o Governo da Frelimo, contribuiu para o questionamento desta ideologia do Estado e foi um dos factores, aliado ao contexto internacional e a pressões e discussões dentro do regime do dia, que levou à democratização e à adopção formal da separação do Estado e do partido e abriu espaço para o multipartidarismo, cuja operacionalização levou às primeiras eleições multipartidárias no país desde 1994. O processo de pacifi cação culminou com a assinatura do Acordo Geral de Paz em 1992 e a integração da Renamo no jogo institucional. A Renamo foi integrada num Estado cujos fundamentos ideológicos, mesmo que fossem formalmente pluralistas, continuavam a ser refl exo do partido-estado construído no período posterior à independência, mas desta vez legitimado também com o formalismo democrático de realização de eleições regulares. Este projecto de Estado é inacabado, uma vez que continuou sem sucesso a reivindicação do monopólio do uso legítimo da violência, constantemente desafi ado pela existência de uma Renamo ainda armada. O segundo ponto, a dinâmica política da democracia multipartidária, abalou a reivindicação da infl uência exclusiva do Estado pela Frelimo. As eleições revelaram-se parcialmente disfuncionais à manutenção hegemónica do poder da Frelimo, porque pelo menos entre 1994 e 1999 mostraram que a Frelimo poderia perder o poder. A quase-derrota de 1999 levou o acender do alarme e a pressão interna da Frelimo para saída do então Presidente Joaquim Chissano, que foi substituído por Armando Guebuza como salvador do projecto hegemónico da Frelimo. Eleito em 2002, Guebuza reforçou o partido enfraquecido na era de Chissano. Já eleito Presidente da República, reivindicou com sucesso a presidência da Frelimo, então detida por Chissano, com o argumento de que historicamente o poder do Estado e da Frelimo estiveram concentrados numa mesma fi gura para evitar a fragmentação e a potencial inefi cácia. O poder dado ao Presidente Guebuza como salvador do “quase fracasso eleitoral” de 1999 e posteriormente as suas vitórias altamente expressivas de 2004 e 2009 reforçaram o seu poder e a sua liderança dentro do partido Frelimo e do Estado, o que lhe conferiu uma base sólida para imprimir a sua visão pessoal na transformação de ambos. Nesse âmbito se assiste à uma tentativa de fortalecimento do Estado e do partido, com este a controlar aquele e sob a liderança do Presidente Guebuza. No que concerne ao partido, este processo fi cou consolidado no X Congresso realizado em 2012, em que se estatuiu a obrigação dos membros do Estado de prestarem contas aos órgãos da Frelimo, no âmbito do artigo 76 dos Estatutos então aprovados, e o sucesso de Guebuza em eleger seus apoiantes para os órgãos decisores do partido; a Comissão Política e o Comité Central. Relativamente ao Estado, três eixos podem ser destacados: as reformas do sector público, o reforço da liderança sobre o Estado e a reivindicação do monopólio do uso legítimo da violência pelo Estado, já referido. Neste contexto, muitas das reformas institucionais iniciadas na governação anterior foram continuadas, com destaque para as reformas da gestão das fi nanças públicas, que serão apresentadas em mais detalhe adiante. Por outro lado, as presidências abertas e inclusivas, que muitas vezes revertiam as decisões tomadas pelos órgãos do Estado no que concerne aos planos e orçamentos aprovados, criando matrizes paralelas nas instituições e governos locais visitados, imprimiram uma marca pessoal ao funcionamento da máquina 10 Savana 18-08-2017 DIVULGAÇÃO SOCIEDADE 2 de 5 Maputo, Agosto de 2017 O CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DAS DÍVIDAS OCULTAS: PERSPECTIVAS SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO estatal e reforçaram o poder do Presidente Guebuza sobre esta. Paralelamente, o discurso sobre o desarmamento da Renamo, que havia adormecido durante a governação do Presidente Chissano retornou, mas acompanhado também de crescentes desavenças com este partido quanto ao afastamento dos seus antigos guerrilheiros do exército. O impasse na discussão do pacote eleitoral com a Renamo e a crise político-militar que se seguiram entre 2012 e 2013 deram as oportunidades necessárias para a efectivação do projecto de pôr fim à existência de uma força armada fora do Estado, com o desarmamento ou esperada derrota militar da Renamo. Este contexto de conflito também reforçou a importância do aparelho de defesa e segurança na estratégia de fortalecimento do Estado. A estratégia de liderança do Presidente Guebuza sofreria abalos com três elementos: (i) o fracasso da solução militar e a assinatura do acordo de cessação das hostilidades de 5 de Setembro de 2014 com a Renamo, que permitiu a este participar nas eleições gerais do mesmo ano; (ii) a eleição de Filipe Nyusi como candidato da Frelimo, depois de uma disputada eleição interna em que a tentativa de Guebuza de controlar o processo de sua sucessão foi desafiada por parte dos membros da Frelimo e se abriu espaço para mais candidatos, o que também acirrou os conflitos internos e o questionamento da sua liderança; (iii) crescimento eleitoral da Renamo e do seu líder nas eleições de 2014, em comparação com as de 2004 e 2009, mesmo tendo perdido as eleições de 2014 para a Frelimo e seu candidato Filipe Nyusi, o que revelou que aquela força ainda era politicamente relevante no contexto político moçambicano. Este desenvolvimento de acontecimentos viria a resultar na renúncia de Guebuza à presidência do partido em março de 2015, mas nem por isso a sua base de apoio no partido foi totalmente desmontada, uma vez que a Comissão Política do partido Frelimo e o Comité Central ainda reflectem a representação do X Congresso da Frelimo. A mudança na configuração de forças espera-se que se efective no XI Congresso da Frelimo, em setembro de 2017. A aura salvacionista da liderança do Presidente Guebuza o conferiu mandato para reforçar o partido e o Estado, mas a sua tendência centralizadora acabou sendo também excludente e fragmentadora dentro e fora da Frelimo. Nesta, isso se reflectiu no crescer das críticas duras à governação de Guebuza pelos seus correligionários. Na sociedade como um todo, além da polarização do debate público e a criação de um grupo de 40 analistas para defender o governo, o G40, o ponto mais alto foi o reacender do conflito com a Renamo, já acima referido. Este contexto criou um ambiente propício para os projectos militaristas que foram financiados pelas dívidas. Há teses, como a exposta pelo jornal Canal de Moçambique (nr. 416 - 5 de julho de 2017), de que houve um grande papel do aparelho securitário na engenharia dos projectos que levaram ao endividamento e que o Presidente Guebuza teria sido apenas envolvido. Em sede da Comissão Parlamentar de Inquérito, Guebuza diria que seria difícil encontrar um envolvimento directo da sua parte nestes projectos, uma vez que se tratava de aspectos operacionais da criação das empresas e que como chefe do executivo só lhe cabia receber relatórios e informação dos responsáveis dos pelouros e dar as devidas recomendações. A tese defendida pelos membros do Governo era da defesa da soberania, no caso da Empresa Moçambicana de Atum (EMATUM), a existência de 130 embarcações a pescarem Atum e em que apenas uma era nacional, e nos casos da Mozambique Assets Management (MAM) e do PROINDICUS a protecção da costa marítima, também tendo em conta os crescentes projectos de investimento do gás. Isto foi apontado como a razão principal para que o Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE) fosse o coordenador interinstitucional da operação, por envolver questões de segurança, dentro do contexto de criação de um sistema de protecção da Zona Económica Exclusiva, denominado SIMP (Sistema Integrado de Monitoria e Protecção).1 A informação pública existente sugere que a arquitectura do endividamento foi feita não só à margem do parlamento, sob a alegação de que por envolver questões militares numa situação de conflito não faria sentido envolver um órgão em que a Renamo participa, mas também ao próprio Governo, enquanto que Conselho de Ministros e ao partido Frelimo. Alguns membros do Governo foram envolvidos na sua condição individual de representação dos seus pelouros, com destaque para o ex-Ministro das Finanças, que assumiu, conforme depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito para Investigar a Situação da Dívida Pública (CPI), que as competências que lhe foram atribuídas no âmbito do Decreto 2/2010 de 19 de março, que cria o Ministério das Finanças, lhe conferiam o poder de emitir garantias que extravasam os limites fixados na lei orçamental e nas competências definidas na Constituição da República.2 Deste modo, pela natureza restrita da pequena coalizão envolvida nesta operação das dívidas, pode-se inferir que este projecto se enquadrou na forma personalista e excludente como o Presidente Guebuza exerceu o seu mandato de líder do Estado e da Frelimo, depois lhe ter sido conferido pelo seu partido. Quando as dívidas e seus contornos foram revelados, o contexto em que elas foram tomadas, conforme acima descrito, influenciou a forma como as mesmas foram discutidas e particularmente a questão da responsabilização. Um elemento que importa ter em conta neste ponto é a polarização do debate público, principalmente no último mandato do Presidente Guebuza, que se caracterizou pela hostilização crescente e rotulação dos críticos ao governo, 1. Comissão Parlamentar de Inquérito para Investigar a Situação da Dívida Pública (2016). Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito para Investigar a Situação da Dívida Pública. Maputo: Assembleia da República. 2. Idem. com recurso a epítetos como “apóstolos de desgraça”, antipatriotas, delirantes e outros adjectivos menos abonatórios. Também o debate se transformou numa batalha discursiva em torno de significados, com chavões políticos repetidos a todos os níveis, alguns deles divisivos, como a ideia sobre nacionalidade, na mesma vertente rotuladora, com expressões como “moçambicanos da gema”, sem uma definição clara de quem são os “outros moçambicanos”. O mesmo tratamento teve também a ideia de patriotismo, que foi apropriada como sendo sinónimo da defesa do Governo do dia e, consequentemente os críticos foram rotulados de antipatriotas. Este discurso sobre o patriotismo, nos seus elementos divisivos, não foi completamente abandonado no contexto actual da governação do Presidente Nyusi, embora não assumido oficialmente como discurso do governo do dia. Neste âmbito, seria retomado aquando das reacções ao debate público e tentativas de manifestação em relação à dívida pública, desde as manifestações da sociedade civil que sofreram fortes intimidações, incluindo ameaças às pessoas da sociedade civil pelas redes sociais e a exibição ostensiva do poderio de repressão policial, que criou um clima de intimidação que eventualmente terá contribuído para a baixa participação popular nas manifestações convocadas. Também se promoveu uma extensa campanha de propaganda, alertando para a existência de supostas agendas externas que moviam a sociedade civil e que se estenderiam até a fase dos debates depois que foi apresentado o relatório de auditoria independente às dívidas, o relatório Kroll. Em suma, o discurso sobre o patriotismo, nos últimos anos, estruturou-se em torno da ideia de uma sociedade dividida – tanto dentro da coalização mais ampla do partido no governo, assim como desta em relação à sociedade como um todo – do projecto político da liderança do dia, baseado em fundamentos ambíguos, e muitas vezes antagonizando a prática de direitos consagrados na constituição, como o da liberdade de expressão e de opinião. Esta antagonização também se estendeu a vozes discordantes dentro do partido Frelimo, que foi explicitada com um discurso do actual Presidente Filipe Nyusi aquando da Décima Reunião Nacional de Quadros do partido Frelimo, em outubro de 2016, no qual dedicou particular atenção à necessidade de se respeitar a disciplina e coesão partidária como elementos fundamentais do fortalecimento desta força política.3 O discurso que se estruturou em justificação das dívidas ocultas – como justificáveis face à ameaça da Renamo, para proteger os recursos naturais dos estrangeiros (incluindo o gás e o atum), ou simplesmente em defesa da soberania – que será importante no processo de responsabilização, com ou sem mérito, deve ser enquadrado neste contexto de alta conflitualidade e disputas pelos significados sobre o Estado, a nação a pátria e o interesse nacional. Em outras palavras, no contexto político vigente, estes significados sobre se as dívidas foram em prol do interesse nacional ou individual ou de grupo, serão interpretados de acordo com a posição de cada um, num contexto de conflito e competição, tanto dentro da coalizão governamental, entenda-se Frelimo, como fora dela. Ou seja, há espaço para muita subjectividade. Portanto, no que concerne ao contexto político, no momento actual combinamse três factores que é importante ter em conta no processo de responsabilização: (i) a supremacia do poder informal do partido Frelimo sobre o Estado, que mesmo com as nuances do multipartidarismo ainda é forte; (ii) a ausência de uma fundamentação ideológica ou de valores em defesa do Estado e que foi substituída por um discurso panfletário, com ideias simplistas sobre o patriotismo e interesse nacional; e (iii) o projecto de manutenção do status hegemónico da Frelimo, que implica na continuidade da construção do Estado e principalmente na sua vertente de reivindicação do monopólio legítimo da violência, assim como na manutenção do seu status de um partido vencedor eleitoralmente, o que implica numa maior sensibilidade para com a responsabilização perante os cidadãos e maior abertura às suas reivindicações. Neste último ponto, também se torna importante o jogo de poder inerente ao XI Congresso do partido Frelimo, em que tanto pode ser a consolidação do presidente Nyusi como o seu enfraquecimento. Neste jogo, a questão das dívidas ocultas ganha importância, porque a responsabilização pode determinar a união ou a divisão da Frelimo e isso tem implicações no potencial sucesso eleitoral nos próximos pleitos de 2018 (eleições municipais) e 2019 (eleições gerais). A estes elementos, juntam-se os de ordem institucional, que serão apresentados a seguir. O Contexto Institucional Começando pela década passada, o país vem introduzindo reformas em áreas relevantes à compreensão do quadro institucional em que ocorreram as dívidas ocultas e o quadro de responsabilização. As reformas produziram resultados mistos sob o ponto de vista de desempenho institucional. Para uma melhor sistematização propõe-se a subdivisão das instituições em dois tipos: (ii) de funções executivas– referentes à gestão das finanças públicas; (ii) de funções de responsabilização – que são aquelas voltadas ao controlo, prestação de contas e responsabilização. 3. FRELIMO (2016). Reforçando a Disciplina Interna e Coesão Rumo à Novas Vitórias. Discurso do Camarada Presidente da FRELIMO, Filipe Jacinto Nyusi, por ocasião da abertura da Décima Conferência Nacional de Quadros. Matola, 01 de outubro de 2016. Savana 18-08-2017 11 DIVULGAÇÃO SOCIEDADE Maputo, Agosto de 2017 3 de 5 O CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DAS DÍVIDAS OCULTAS: PERSPECTIVAS SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO Descrição do Indicador 2006 2010 2015 BUDGET CYCLE C (ii) Previsão e Controlo da Execução Orçamental PI-13 Transparência das obrigações fiscais e responsabilidades dos contribuintes B+ A A PI-14 Eficácia das medidas de registo de contribuintes e avaliação tributária BA B PI-15 Eficácia na cobrança de impostos D+ C+ D+ PI-16 Previsibilidade da disponibilidade de fundos para compromissos de despesas C+ C+ C+ PI-17 Registo e gestão dos balanços de caixa, dívidas e garantias AA A PI-18 Eficácia do controlo da folha de salários B B B PI-19 Competição, value-for-money e controlo no processo de procurement B B D+ PI-20 Eficácia dos controlos internos para despesas não salariais B B+ C+ PI-21 Eficácia da auditoria interna B C+ B+ C (iii) Contabilidade, Registo e Reporte PI-22 Pontualidade e regularidade na reconciliação de contas BB B PI-23 Disponibilidade de informação de recursos recebidos pelas unidades de prestação de serviços DD D PI-24 Qualidade e pontualidade dos relatórios orçamentais durante o ano C+ C+ B PI-25 Qualidade e pontualidade dos relatórios financeiros anuais C+ C+ B+ C (iv) Controlo Auditoria Externos PI-26 Âmbito, natureza e acompanhamento da auditoria externa D+ C+ C+ PI-27 Exame parlamentar da lei orçamental anual B+ C+ C+ PI-28 Exame parlamentar dos relatórios de auditoria externa C+ C+ C+ Progresso significante Estagnação ou fraco progresso Regressão/estagnação em um ponto crítico Fonte: Relatórios PEFA 2008 e 2015 Moçambique tem uma forte tradição de predomínio do poder executivo sobre os outros poderes, o que aliado à supremacia do poder presidencial no processo decisório, assim como a disciplina partidária da maioria legislativa, controlada pelo partido Frelimo, reforça o domínio das instituições de funções executivas. Conforme será apresentado nesta secção, apesar de as reformas da gestão das finanças públicas envolverem o fortalecimento dos três poderes que participam no processo orçamental, as instituições de funções executivas têm tido maior desempenho do que as de funções de responsabilização. Isto também tem a ver com a desproporcionalidade dos recursos alocados a cada uma dessas instituições, assim como a vontade política subjacente ao seu fortalecimento. O impacto dessas reformas e do desempenho na área de finanças públicas e responsabilização tem sido avaliado regularmente de forma conjunta pelo Governo e seus parceiros internacionais. Um destes instrumentos é o Public Expenditure and Financial Accountabilty (PEFA), que mede o desempenho olhando para os três poderes envolvidas no processo orçamental, nomeadamente o Parlamento, o Executivo e a função de controlo externo (exercida pelo Tribunal Administrativo) e os doadores. O relatório produzido neste processo é conhecido como de Avaliação do Desempenho da Gestão de Finanças Públicas (GFP). Até agora já foram realizadas no país três avaliações de GFP usando a metodologia PEFA, referentes aos anos 2006, 2010 e a mais recente é de 2015. Por ser um instrumento compreensivo, que abarca a análise de múltiplas instituições, o PEFA dá uma visão mais completa do desempenho nesta área. O quadro abaixo resume o desempenho nas áreas de gestão de finanças públicas em alguns indicadores selecionados, nomeadamente: previsão e controlo da execução orçamental, contabilidade, registo e reporte, controlo e auditoria externos, referentes ao ciclo orçamental. Quadro: Indicadores Seleccionados de Desempenho da Gestão de Finanças Públicas A avaliação da GFP mostra que no geral houve melhorias nas áreas relacionadas à gestão, embora algumas áreas críticas tenham piorado ou permanecido com baixo desempenho de 2010 a 2015, dentre as quais a efectividade no registo de contribuintes e recolha de impostos. As funções de controlo no geral têm desempenho mais fraco e em alguns casos pioraram nos últimos cinco anos do período analisado, depois de terem tido melhorias, como o controlo nas aquisições e nas despesas não salariais, controlo do procurement e das despesas não salariais. O controlo externo é o único caso de melhorias globalmente, o que sugere que segue uma tendência ligeiramente diferente. Mesmo assim, melhorou do período de 2006 a 2010, mas de lá para 2015 se manteve estagnado nos indicadores avaliados. Um ponto a destacar nas melhorias é o aumento das auditorias do Tribunal Administrativo que atingiram o pico de 450 entidades em 2012 e 2013, tendo baixado para 188 entidades em 2016. Em termos de cobertura orçamental, o pico foi em 2015, como 44% de cobertura do OE, tendo baixado para 42,56 em 20164 . Por sua vez, a fiscalização orçamental pelo legislativo piorou relativamente a 2006 e o escrutínio legislativo dos relatórios de auditorias externas, o que seria o acompanhamento das auditorias do TA, manteve-se estável, mas com baixa pontuação. O principal instrumento de prestação de contas na execução orçamental, a Conta Geral do Estado (CGE) só a partir do reporte de 2014, após a descoberta das dívidas ocultas, é que passou a incluir as garantias e avales passados pelo Estado. Até este ano, ainda havia casos de bilhetes de Tesouro passados sem cobertura legal. Um outro ponto crítico sob o ponto de vista de controlo e fiscalização é a discricionariedade que o Governo tem de fazer alterações ao orçamento no processo de sua execução, devendo apenas solicitar autorização legislativa quando os valores totais dos tectos mudam. Ademais, persistiam problemas no registo do Património do Estado, por exemplo, o parecer do TA à CGE de 2014 alerta para a existência de instituições públicas que tinham inventariado apenas 28% do valor de compra dos bens inventariáveis5 . A fraqueza no controlo também se nota relativamente à gestão do sector empresarial do Estado. Em 2012 entrou em vigor a nova lei das empresas públicas (EP), a lei 6/2012 de 8 de fevereiro, que dentre outras coisas introduz a obrigatoriedade de estas entidades submeterem relatórios financeiros e de auditoria ao Ministério de Economia e Finanças (MEF), de publicação dos relatórios de desempenho e de auditoria na internet e também a sujeição às auditorias externas do Tribunal Administrativo. No entanto, a prática é que a informação do sector empresarial do Estado não é enviada regular e atempadamente ao MEF e a Conta Geral do Estado (CGE) apenas apresenta informação resumida sobre estas entidades e instituições autónomas. Ainda neste âmbito, o Tribunal Administrativo no seu relatório de atividades de 2016, ainda não se refere as auditorias às EPs, o que pode sugerir que até ao fim do ano passado ainda não haviam iniciado. Segundo o Relatório de Transparência Fiscal do FMI de 2014, estas entidades também estão associadas aos desafios na gestão do risco fiscal pelo Estado, cujas causas incluem ainda a emissão de garantias do Estado sobre dívidas externas contraídas por EPs; e participações do Estado em empresas privadas (geridas através do Instituto de Gestão de Participações do Estado, o IGEPE), como é o caso das empresas envolvidas nas dívidas ocultas6 . Moçambique é ainda um país vulnerável à transações financeiras ilícitas, com um ambiente favorável para a não responsabilização. De acordo com um relatório da Global Financial Integrity, a adulteração de facturas comerciais entre 2002 e 2011 levou à perda média de receitas equivalentes a 10,4% das receitas totais do governo7 . Mais ainda, um outro estudo afirma que no período de 2004 a 2013, os fluxos financeiros ilícitos atingiram um valor cumulativo de 2,42 mil milhões de USD e as saídas comerciais cumulativas de facturação adulterada no mesmo período chegaram a 2,33 mil milhões de USD8 . Moçambique tem uma entidade nacional responsável por investigar os fluxos financeiros ilícitos, denominada Gabinete de Informação Financeira de Moçambique (GIFIM). No entanto, um dos obstáculos que esta entidade enfrenta é a fraca capacidade técnica das entidades que devem dar seguimento ao seu trabalho de investigação para desencadear a subsequente acção penal. A fraca colaboração entre as instituições, um ponto que muitas vezes foi apontado no Relatório Anual da PGR, tem sido uma barreira para a responsabilização jurídica. Apesar das reformas no sector de justiça e a sua interface com a áreas das finanças públicas (que de princípio melhorou a sua capacidade de detectar ilícitos), a responsabilização jurídica – com destaque para o combate à corrupção, abuso de cargo ou função9 – ainda enfrenta desafios. Na presidência de Guebuza foram levados à barra de tribunal dois ministros acusados de envolvimento em abuso de cargo e função e corrupção. O primeiro caso foi de Almerino Manhenje, Ministro do Interior do Governo do Presidente Joaquim Chissano que expressou publicamente a sua discordância sobre a prisão do seu ex-subordinado e posteriormente a imprensa local chegou a noticiar a realização de um encontro entre os dois líderes para desanuviar o ambiente tenso que se criou, dentre outras coisas, com a prisão deste ministro. O segundo foi o ministro dos Transportes e Comunicações do próprio Presidente Guebuza, António Munguambe. Mais recentemente, foi levado à barra do Tribunal o exministro da Justiça no Governo de Filipe Nyusi, Abdurremane Lino de Almeida. A condenação do primeiro e do último tiveram a particularidade de serem num contexto de transição de uma liderança para outra. Coincidência ou não, o combate à corrupção foi parte dos discursos políticos no início de mandato, 4. Tribunal Administrativo (2017). Relatório Anual de Progresso e Financeiro 2016. Maputo: Tribunal Administrativo 5. Tribunal Administrativo (2015). Parecer Sobre a Conta Geral do Estado de 2014. Maputo: Tribunal Administrativo 6. AECOM/CESO (2016). Avaliação do Desempenho da Gestão de Finanças Públicas 2015: Moçambique. PEFA Secretariat; International Monetary Fund (2015). Republic of Mozambique: Fiscal Transparency Evaluation. IMF Country Report No. 15/32. Washington: International Monetary Fund. 7. Baker, R., Clough, C., Kar, D., Leblanc, B., & Simmons, J. (2014, May). Hiding in Plain Sight. Trade Misinvoicing and the Impact of Revenue Loss in Ghana, Kenya, Mozambique, Tanzania, and Uganda: 2002-2011. Retrieved from Global Financial Integrity: http://iff.gfintegrity.org/hiding/Hiding_In_Plain_Sight_Report-Final.pdf; 8. Kar, D., & Spanjers, J. (2015, December). Illicit Financial Flows from Developing Countries: 2004-2013. Global Financial Integrity. Retrieved from Global Financial Integrity: http://www.gfintegrity. org/report/illicit-financial-flows-from-developing-countries-2004-2013/. 9. Aqui usa-se estas ilicitudes e crimes como referências para a análise, em linha com o texto desta série da autoria de Gilberto Correia, sobre eventuais responsabilidades jurídicas neste caso. Vide Correia, G. (2017). Um Breve Olhar Sobre as Eventuais Responsabilidades Jurídicas no Caso das Dividas Ocultas. Fórum de Monitoria do Orçamento, Publicado no jornal Savana do dia 11 de agosto de 2017. 12 Savana 18-08-2017 INTERNACIONAL DIVULGAÇÃO 4 de 5 Maputo, Agosto de 2017 O CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DAS DÍVIDAS OCULTAS: PERSPECTIVAS SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO tanto de Guebuza como de Nyusi. No caso do primeiro, este ímpeto depois amainou e o desempenho do país neste quesito foi piorando. Estes casos de condenação não reflectem necessariamente uma tendência ou compromisso de promoção de integridade pública ou responsabilização de altos funcionários do Estado por erros ou violação da lei no exercício das suas funções. Os dados sobre os crimes aplicáveis aos casos em pauta contidos nos Informes do ProcuradorGeral da República à Assembleia da República nos períodos de 2011 a 2016 também não fornecem elementos conclusivos, uma vez que a informação é classificada de diferentes maneiras de ano para ano, incluindo diferentes tipos de crimes10, o que dificulta a análise de evolução do desempenho de ano para ano. Um ponto a destacar é, no geral, o aumento de recursos orçamentais e capacidade nas entidades responsáveis por deduzir a acusação nesses casos, nomeadamente o Gabinete Central de Combate à Corrupção e os Gabinetes Provinciais de Combate à Corrupção. Contudo, o volume de trabalho dos procuradores afectos a essas entidades, em comparação com os outros, é ainda muito baixo, mas nem por isso a sua produtividade pode ser considerada maior, uma vez que muitos casos ainda transitam para os anos seguintes. Por exemplo, no período entre 2010 e 2014, cada procurador afecto ao GCCC e aos GPCs tinha em média 23 casos por ano sob a sua responsabilidade, contra 131 dos restantes procuradores. No mesmo período, em média, apenas 50% dos casos tramitados chegaram à fase de acusação e 35% foram julgados11. Estes números mostram que existe algum movimento em termos de responsabilização dos crimes relacionados à integridade e responsabilidade pública, mas não informam se a responsabilização recai sobre os funcionários do Estado de todos os níveis, e particularmente se há uma tendência de responsabilizar também aos funcionários dos níveis superiores. Neste quadro inconclusivo, resta a impressão ou evidência anedótica, que sugere que tendo em conta os níveis de corrupção existentes no país e potencialmente situações de abuso de cargo ou função, não é realista se pressupor que a responsabilização de três ministros seja por si indício do fortalecimento da independência das instituições de justiça na responsabilização de altos funcionários do Estado. Há uma percepção na sociedade de que o quadro ainda não mudou positivamente. A título ilustrativo, a última ronda do Afrobarómetro, uma pesquisa de opinião à escala nacional realizada em 2016, indica que 48% dos moçambicanos consideram que a corrupção cresceu de 2014 a 2015. Por outro lado, a mesma pesquisa aponta que de 2002 a 2015 a percentagem de pessoas satisfeitas com a democracia reduziu de 54% para apenas 23%12. Isso pode também sugerir que a insatisfação se estende às instituições democráticas. Os elementos descritos nesta secção mostram a existência de um quadro institucional que, embora em formação e reforma, tem potencial e condições para uma gestão consistente de finanças públicas e responsabilização. No entanto, a dinâmica e as escolhas estratégicas dos actores que operam dentro dessas instituições e no processo de responsabilização têm ditado um desempenho misto, combinando progresso, estagnação e retrocesso. Para uma melhor compreensão dessa dinâmica, é pertinente destacar alguns dos seus aspectos. O desempenho dos diferentes actores envolvidos na governação das finanças públicas também foi diversificado, tendo havido mais progresso por parte das instituições como o Tribunal Administrativo e o Executivo na arrecadação e criação de sistemas de gestão e controlo centralizado – mais precisamente o SISTAFE, mas que ainda tem falhas no controlo em áreas críticas como o registo do património, seguimento das recomendações do Tribunal Administrativo à CGE e ausência de uma fiscalização parlamentar mais incisiva. A par disso o crescente desencanto com a democracia por parte dos cidadãos pode contribuir para o enfraquecimento dos processos e instituições de responsabilização no geral. A mesma ambiguidade se manifesta nos processos de responsabilização jurídica que, apesar de historicamente terem envolvido altas figuras do Estado como ex-ministros, não mostram uma tendência clara em termos de reforço ou enfraquecimento da eficácia das instituições relevantes. A dinâmica institucional aqui descrita sugere que há tendência para se privilegiar o desempenho na parte de gestão das finanças públicas e menos na área de responsabilização, tanto dentro do quadro das finanças públicas como no quadro mais amplo. Isso sugere dois elementos sobre a dinâmica institucional. Primeiro, é preciso entender que, de certa forma, embora com finalidades diferentes, houve uma confluência de interesses entre doadores e o Governo nas reformas da GFP, que contribuíram para o seu sucesso. Por parte dos doadores, no âmbito da agenda da efectividade da ajuda externa e alinhamento com os programas nacionais e uso dos sistemas de gestão nacionais, o fortalecimento da gestão de finanças públicas era um ponto central para a canalização de fundos pela via do apoio directo ao orçamento. Daí que dentre as reformas institucionais bemsucedidas no país destaca-se a introdução do Sistema de Administração Financeira do Estado (SISTAFE) em 2002. Por sua vez, por parte do Governo a possibilidade de gestão de fundos externos com menos condicionalismo e usando os sistemas nacionais, era uma proposta atractiva para a adopção de sistemas robustos de 10. Os crimes agrupados sob a responsabilidade dos GCCC e GPC têm sido corrupção, desvio de fundos do Estado, peculato, abuso de cargo ou função. 11. Informe Anual do Procurador-Geral da República à Assembleia da República – anos 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017. 12. Isbell, T. (2017). Um Voto de Desconfiança? Os Moçambicanos Ainda Votam, Mas a Fé na Democracia Está a Diminuir. Afrobarómetro, Boletim Nº 139, Abril de 2017; Isbell, T. (2017). Efficacy for fighting corruption: Evidence from 36 African countries. Afrobarometer Policy Paper No. 41, July 2017. gestão, que foi complementada com um maior empenho no reforço das receitas internas, para a médio e longo prazo reduzir e até eliminar a dependência externa e desta vez ter mais autonomia e menos interferência na sua Governação. Neste âmbito, de referir a criação da Autoridade Tributária de Moçambique e a sua capacitação, o que fez com que a arrecadação de receitas internas do Estado passasse de 14.3% do PIB em 2005 para mais de 24% para os próximos dois anos13. Estes incentivos contribuíram para um melhor desempenho na área tributária e da gestão orçamental, por exemplo e menos nas áreas de controlo externo (no que concerne ao seguimento e sancionamento das recomendações do TA) e controlo da execução orçamental pelo Legislativo, estrategicamente menos interessantes para o Executivo. O segundo aspecto é que a lógica do desenho institucional do executivo privilegia formas institucionais que reduzem a responsabilização. Tome-se como exemplo o formato institucional das empresas criadas no âmbito das dívidas ocultas, que são consideradas de direito privado, embora com garantias do Estado e em certos casos com participação de entidades ligadas a este. Este formato institucional tem implicações sob o ponto de vista de escrutínio e responsabilização. Um exemplo disso foi a reação da EMATUM quando solicitada informação pela bancada do MDM em julho de 2017, tendo a empresa respondido que não tem o dever de prestar informações, por alegadamente ser privada. Na mesma situação se encontra a sociedade Notícias, detentora do principal jornal diário do país, que apesar de ter como seu maior acionista uma entidade do Estado, o Banco de Moçambique, se define como empresa privada. Dentre os depoimentos apresentados no Relatório da CPI das dívidas ocultas também é referido que a criação de empresas pelo aparelho de segurança é uma prática já existente no País. Outro exemplo foi a reação que o executivo teve para contornar o problema da emissão das garantias e avales acima dos limites definidos na lei orçamental. A figura abaixo mostra como isso tem sido feito. De forma interessante, de 2011 a 2014 o valor das garantias e avales manteve-se constante, a MZN 183,5 milhões. Em 2015 baixou drasticamente para apenas MZN 17 milhões e em 2016 subiu de forma exponencial, cerca de 124 vezes da média de 2011 a 2014, atingindo MZN 22.750 milhões. Em 2017 as garantias e avales continuaram a crescer, tendo atingido MZN 40.600 milhões. Esta estabilidade do valor das garantias e avales durou até 2014, exatamente até ao ano em que o Governo não incluía as garantias e avales na Conta Geral do Estado. Esta situação e os ajustes posteriores podem indiciar que os limites provavelmente não eram respeitados e, no presente momento, sob pressão das dívidas ocultas, o governo decidiu ser mais transparente e ajustou os limites ao valor real. No entanto, duas questões ainda permanecem em aberto: em que medida estes limites são consistentes com as medidas de ajuste fiscal necessárias neste momento e que entidades estariam a beneficiar destas garantias. A segunda resposta pode ser parcialmente respondida: as empresas públicas em situação financeira precária e que já foram apontadas como fontes de riscos fiscais estão entre algumas das beneficiárias, dentre as quais as Linhas Aéreas de Moçambique e a empresa Aeroportos de Moçambique.14 Isto ocorre num quadro em que a prestação de contas destas empresas, assim como o seu controlo externo pelo TA ainda não são efectivos, pelo menos que seja público. Em suma, o executivo usou os seus dispositivos institucionais, no caso os poderes legislativos orçamentais – de propor orçamento e usar a sua bancada maioritária na Assembleia da República para aprová-lo sem o devido escrutínio quanto ao impacto fiscal, para contornar a responsabilização diante de um quadro de crescente endividamento público. A escolha de diferentes formatos institucionais ou organizacionais para melhor promover interesses políticos não é exclusividade de Moçambique. Pelo contrário, é uma estratégia já documentada na literatura da economia política das instituições e apontada como uma forma de os políticos poderem responder aos seus interesses de forma mais flexível. Nesta óptica, as empresas públicas podem ser formas de melhor promover interesses de soberania, corrigir falhas de mercado, realizar investimentos de grande escala que não poderiam ser 13. Ministério de Economia e Finanças (2016). Cenário Fiscal de Médio Prazo 2017-2019. Maputo: Ministério de Economia e Finanças; Ministério de Planificação e Desenvolvimento (2006). Cenário Fiscal de Médio Prazo 2007- 2009. Maputo: Ministério de Planificação e Desenvolvimento. 14. Vide Jornal Savana, 11 de agosto de 2017, página 8. Fonte: Leis Orçamentais 2011-2017 Savana 18-08-2017 13 DIVULGAÇÃO SOCIEDADE Maputo, Agosto de 2017 5 de 5 O CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DAS DÍVIDAS OCULTAS: PERSPECTIVAS SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO Maputo, Agosto de 2017 5 de 5 feitos por empresas privadas, apesar de necessários, e também permitir o acesso a recursos sem passar pelo escrutínio do legislativo.15 No caso vertente, em que não se trate de empresas públicas mas sim de fi nalidade pública, com a aprovação da Lei de Bases da Organização e Funcionamento da Administração Pública (Lei 7/2012 de 6 de fevereiro) e com a lei do Direito à Informação (Lei 34/2014, de 31 de Dezembro), que estendem a possibilidade de escrutínio público ou o dever de prover informação às entidades de interesse público, este estratagema tem, em tese, efi cácia limitada. No entanto, a coberto da crónica inefi ciência das instituições, pode-se esperar que essa “ambiguidade institucional” possa ser usada para difi cultar o processo de prestação de contas das empresas das dívidas ocultas. Perspectivas sobre a Responsabilização O contexto político e as dinâmicas institucionais aqui descritas chamam a atenção à necessidade de se ter em conta as dinâmicas e interesses políticos, assim como as dinâmicas confi gurações institucionais que podem diluir a responsabilização. No âmbito político é preciso refl ectir e questionar sobre o discurso do processo de endividamento e seus signifi cados, colocando-os dentro do contexto onde o mesmo ocorreu e ocorre. Ou seja, as ideias sobre defesa do interesse nacional e soberania que justifi caram o endividamento foram defi nidas fora do quadro institucional vigente e com bases em visões de grupos específi cos, num contexto de um projecto específi co de construção do Estado e de competição política e pelo poder dentro da Frelimo, assim como entre esta e outras forças políticas, dentre as quais a Renamo. Consequentemente, essas ideias são sujeitas a questionamento, pelo que o primeiro passo do processo de responsabilização deve ser a refl exão e desconstrução do discurso sobre o mandato e responsabilidades dos autores das dívidas. Em termos mais concretos, sob o ponto de vista político, é crucial evitar que a discussão do processo de responsabilização possa ser capturado pelas dinâmicas minimalistas de competição pelo poder dentro e fora do partido no poder, que podem implicar na personalização ou encenação do processo de responsabilização, sem implicações sob o ponto de vista de reparação dos danos causados (no que ainda é possível recuperar), assim como reforço dos processos de responsabilização em si para se evitar repetições dos mesmos erros no futuro. Isso não quer dizer que a responsabilização, havendo matéria para tal, não deva recair sobre pessoas concretas envolvidas no processo, mas que deva ser feita de acordo com as responsabilidades objectivas e em que medida elas violaram a lei, assim como numa perspectiva de reforço das instituições e do processo de responsabilização. 15. Horn, M. (1995). The Political Economy of Public Administration: institutional choice in the public sector. New York: Cambridge University Press. No que concerne ao quadro institucional, é pertinente prestar atenção às dinâmicas que historicamente têm se desenvolvido nas instituições, que privilegiam o fortalecimento das funções do executivo ou de execução, em detrimento das de controlo, fi scalização, prestação de contas e responsabilização. Isso é refl exo da dominância do poder executivo sobre os outros órgãos no processo decisório. Esse domínio deve ser entendido como decorrente das competências, recursos e força política do Executivo e também da sua capacidade de defi nir mecanismos e formas institucionais que limitam a sua responsabilização. Neste âmbito, é preciso também se prestar atenção às escolhas institucionais feitas pelo executivo para reforçar a falta de responsabilização ou diluir o papel das instituições de controlo na sua responsabilização. As dívidas ocultas foram feitas a partir de uma decisão política de contornar as instituições de responsabilização, seja pelo “by-pass” feito ao parlamento e ao Conselho de Ministros, assim como pelo formato institucional que as empresas tomaram, de empresas de direito privado, que pode criar ambiguidades na exigência de prestação de contas, como o caso de solicitação de informação da EMATUM mostra. Algumas vezes essas ambiguidades podem decorrer da má interpretação da lei, como este foi o caso vertente. Dentre os mecanismos institucionais que devem merecer atenção para o reforço da responsabilização e fortalecimento do quadro de gestão de fi nanças públicas recomenda-se: (i) o seguimento das recomendações do Tribunal Administrativo à CGE; (ii) a monitoria da emissão das garantias e avales e a verifi cação de que os seus limites são defi nidos dentro do quadro fi scal, mais precisamente o cenário fi scal de médio prazo; (iii) a transformação deste num documento vinculativo para ser um instrumento de promoção da consolidação fi scal; (iv) a monitoria do desempenho e prestação de contas de empresas públicas e participadas pelo Estado; e (v) defi nição dos mecanismos de fi scalização e responsabilização às empresas benefi ciadoras das garantias e avales do Estado, assim como a disponibilização da informação sobre as mesmas a um público mais amplo. Uma última nota sobre a responsabilização no quadro político-institucional vigente. A responsabilização jurídica implica a articulação de várias instituições no quadro da separação e interdependência dos poderes. No entanto, a história recente do país mostra que as circunstâncias políticas são determinantes para a responsabilização jurídica de altos funcionários do Estado. O domínio do executivo no quadro institucional moçambicano, aliado ao domínio do partido no poder sobre o Estado e a sobreposição da liderança deste com a do partido, avoluma a importância do Presidente da República no processo de responsabilização. No contexto da democracia eleitoral o Presidente da República é ao mesmo tempo a única fi gura sujeita à uma responsabilidade eleitoral directa, devido à sua eleição por voto directo. Isto sugere que, a ser a responsabilização um issue importante para os eleitores, o Presidente se expõe a um alto custo ou tem oportunidades de altos ganhos, dependendo de como gerir este assunto. 

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