XIPIKIRI
– Larga-me, mulher! – o homem fez um gesto brusco, contrariando-lhe a delicadeza. Quase a magoou.
– Vamos fugir – sugeriu ela, com um nó de urgência a estrangular-lhe a voz.
Os
outros vendedores debandavam, salvando o que pudessem. De cima para
baixo, ele espetou o olhar na mulher, com raiva, assim, como o
Dharmendra olhou para Hema Malini e prometeu protegê-la do terrível
bandido Gabbar Singh, em Sholay, filme que preencheu a minha pré
adolescência, nos tempos da crise. A outra crise, mais organizada.
– Eu não vou fugir.
Os
olhos dela eram duas luas molhadas, derretendo-se entre medo e amor. Os
de Hema Malini, acendiam assim mesmo, quando olhasse para os de
Dharmendra. A mulher levantou ligeiramente a cabeça e olhou para ele:
–
Mas, é perigoso – quis convencê-lo na quase lágrima de desespero, mas
sabia que não valia a pena. Os homens são bélicos e quando estão naquele
estado, não há diálogo político nem mediadores que os convença.
– Eu não fujo. Não sou criminoso.
Os
policiais, de cassetete na mão, anulavam a oportunidade de renda aos
vendedores, tal como os homens de Gabbar Singh, os bandidos do filme,
desvastavam o pequeno vilarejo, onde mataram a família e cortaram os
braços ao polícia Thakur. Ela segurou-se na capulana, olhou para trás,
para aquela violência. Voltou-se rapidamente para ele. De novo para trás
e para ele. Dizia “vamos fugir” só com o olhar.
Ele
calou-se. Nos tempos, se um actor se calasse assim, ia haver porrada.
Especou diante da pequena banca de negócio de rua. Em prenúncio de
acção, fechou o rosto, numa expressão impenetrável. Cerrou os punhos,
“dharmendramente”. Os pulmões, um motor zangado, à dois tempos, inchavam
e vazavam o peito. Pthuh! Cuspiu.
–
Reza por nós mulher – disse, como no auge dos filmes, quando o herói
vai para definitiva missão e se despede da amada, com poucas vírgulas.
Ela juntou as mãos no peito, infalível comunicação com Deus e disse um
“sim” ansioso, com a cabeça , em obediência feminina.
– Vão ter de passsar pelo meu cadáver.
Instintivamente,
ela pousou as mãos sobre o peito magro do homem. No meio da agitação,
estavam fotograficamente parados, como na parte do filme em que uma
melodia romântica parece soprar com o vento.
– Eu sou trabalhador e pago os meus impostos!
Ao
lado deles, uma Nissan Hardbody, comprada com dinheiro dos
contribuintes, chiou. Lembrando as gincanas de Gabbar Singh, o bandido,
os polícias saltaram da viatura. O homem magriço pôs-se entre eles e a
banca da mulher. A mulher tapou a boca sustendo o susto. Chamou por
Deus. O homem era franzino de assustar a ninguém. Afastou as perninhas
para ocupar espaço. Os polícias zombaram. O que se seguiu lembrou-me o
algazarra por que se tinha de passar, nas bilheteiras, para se conseguir
bilhetes da sessão das desassete e trinta, à 12,50 MT plateia ou 15,00
MT balcão, antes dos aparelhos caseiros de vídeo roubarem protagonismo
às salas de cinema.
O
homem pendurou-se na banca carregada pelos bufos e esperneou. Os
polícias empurraram-no. Caiu. Levantou-se, lutou, arranhou, mordeu,
gritos, braços, pernas, cassetetes. As pessoas aplaudiam, como nas
sessões de Sholay. De repente, nas mãos do magriço, um facão reluziu. Um
polícia levou a mão ao abdómen e caiu em câmara lenta. Sangue! Todo o
mundo disse “Ohhh!”.
Os
bufos enfureceram-se. O gajo resistiu. Caiu. No chão, mas não dominado,
uma bota a pisava-lhe o rosto. Fez sinal para a mulher lhe passar a
arma branca caída à centímetros da mão. Parecia aquela cena em que
Veeru, personagem de Dharmendra, pedia ao polícia Thakur para lhe passar
a pistola, sem perceber que este não podia, não tinha braços. Na
confusão ouviu-se um tiro, as pessoas dispersaram como moscas
assustadas. A mulher gritou. Não me lembro se, no filme sholay, o herói
morre. Os heróis daquele tempo não costumavam morrer. Na verdade não vi o
filme. Eram sessões para maiores de doze anos, idade que eu nao tinha. O
filme foi-me relatado, em tardes de caringana, por um vizinho, pequeno
empreendedor, que cobrava um metical para nos contar coisas. Mas isso é
outra história...
1 comentário:
Introduza o seu comentário...Parabéns pelo texto.
Enviar um comentário