quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Larga-me, mulher

  

Enviar por E-mail Versão para impressão PDF

XIPIKIRI
– Larga-me, mulher! – o homem fez um gesto brusco, contrariando-lhe a delicadeza. Quase a magoou.

– Vamos fugir – sugeriu ela, com um nó de urgência a estrangular-lhe a voz.

Os outros vendedores debandavam, salvando o que pudessem. De cima para baixo, ele espetou o olhar na mulher, com raiva, assim, como o Dharmendra olhou para Hema Malini e prometeu protegê-la do terrível bandido Gabbar Singh, em Sholay, filme que preencheu a minha pré adolescência, nos tempos da crise. A outra crise, mais organizada.

– Eu não vou fugir.

Os olhos dela eram duas luas molhadas, derretendo-se entre medo e amor. Os de Hema Malini, acendiam assim mesmo, quando olhasse para os de Dharmendra. A mulher levantou ligeiramente a cabeça e olhou para ele:

– Mas, é perigoso – quis convencê-lo na quase lágrima de desespero, mas sabia que não valia a pena. Os homens são bélicos e quando estão naquele estado, não há diálogo político nem mediadores que os convença.

– Eu não fujo. Não sou criminoso.

Os policiais, de cassetete na mão, anulavam a oportunidade de renda aos vendedores, tal como os homens de Gabbar Singh, os bandidos do filme, desvastavam o pequeno vilarejo, onde mataram a família e cortaram os braços ao polícia Thakur. Ela segurou-se na capulana, olhou para trás, para aquela violência. Voltou-se rapidamente para ele. De novo para trás e para ele. Dizia “vamos fugir” só com o olhar.

Ele calou-se. Nos tempos, se um actor se calasse assim, ia haver porrada. Especou diante da pequena banca de negócio de rua. Em prenúncio de acção, fechou o rosto, numa expressão impenetrável. Cerrou os punhos, “dharmendramente”. Os pulmões, um motor zangado, à dois tempos, inchavam e vazavam o peito. Pthuh! Cuspiu.

– Reza por nós mulher – disse, como no auge dos filmes, quando o herói vai para definitiva missão e se despede da amada, com poucas vírgulas. Ela juntou as mãos no peito, infalível comunicação com Deus e disse um “sim” ansioso, com a cabeça , em obediência feminina.

– Vão ter de passsar pelo meu cadáver.

Instintivamente, ela pousou as mãos sobre o peito magro do homem. No meio da agitação, estavam fotograficamente parados, como na parte do filme em que uma melodia romântica parece soprar com o vento.

– Eu sou trabalhador e pago os meus impostos!

Ao lado deles, uma Nissan Hardbody, comprada com dinheiro dos contribuintes, chiou. Lembrando as gincanas de Gabbar Singh, o bandido, os polícias saltaram da viatura. O homem magriço pôs-se entre eles e a banca da mulher. A mulher tapou a boca sustendo o susto. Chamou por Deus. O homem era franzino de assustar a ninguém. Afastou as perninhas para ocupar espaço. Os polícias zombaram. O que se seguiu lembrou-me o algazarra por que se tinha de passar, nas bilheteiras, para se conseguir bilhetes da sessão das desassete e trinta, à 12,50 MT plateia ou 15,00 MT balcão, antes dos aparelhos caseiros de vídeo roubarem protagonismo às salas de cinema.

O homem pendurou-se na banca carregada pelos bufos e esperneou. Os polícias empurraram-no. Caiu. Levantou-se, lutou, arranhou, mordeu, gritos, braços, pernas, cassetetes. As pessoas aplaudiam, como nas sessões de Sholay. De repente, nas mãos do magriço, um facão reluziu. Um polícia levou a mão ao abdómen e caiu em câmara lenta. Sangue! Todo o mundo disse “Ohhh!”.

Os bufos enfureceram-se. O gajo resistiu. Caiu. No chão, mas não dominado, uma bota a pisava-lhe o rosto. Fez sinal para a mulher lhe passar a arma branca caída à centímetros da mão. Parecia aquela cena em que Veeru, personagem de Dharmendra, pedia ao polícia Thakur para lhe passar a pistola, sem perceber que este não podia, não tinha braços. Na confusão ouviu-se um tiro, as pessoas dispersaram como moscas assustadas. A mulher gritou. Não me lembro se, no filme sholay, o herói morre. Os heróis daquele tempo não costumavam morrer. Na verdade não vi o filme. Eram sessões para maiores de doze anos, idade que eu nao tinha. O filme foi-me relatado, em tardes de caringana, por um vizinho, pequeno empreendedor, que cobrava um metical para nos contar coisas. Mas isso é outra história...

1 comentário:

maxmacave disse...

Introduza o seu comentário...Parabéns pelo texto.