quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Diz-me quem é o teu herói, dir-te-ei quem tu és...


Diz-me quem é o teu herói, dir-te-ei quem tu és...
Só para estragar a festa. Acabei de ler uma entrevista do jornalista moçambicano, Paul Fauvet, à Voz da Alemanha. Fizeram-lhe quatro perguntas e as resposta que ele deu às três primeiras são um pedaço de tudo quanto está errado com as exaltações de Samora Machel. A primeira pergunta foi sobre o legado de Samora. Na resposta, o entrevistado fala da independência e destaca o mérito de Samora como dirigente do movimento que lutou por ela. A outra coisa que ele diz é que Samora queria construir o socialismo e que isso não aconteceu por causa da guerra de desestabilização contra Moçambique feita pelo regime do Apartheid.
Também sou de opinião que essa guerra foi de desestabilização e que foi promovida pelo regime do Apartheid. Mas para quem quer aprender alguma coisa do passado, não basta ficar por aqui. É preciso interpelar esse projecto socialista. É preciso perguntar se ele foi compatível com a construção duma sociedade justa e respeitadora da dignidade humana. É preciso perguntar se os libertadores da pátria tinham algum mandato da sociedade moçambicana para impor esse projecto. É preciso perguntar se esse projecto não criou também as condições dentro das quais a “desestabilização” ganhou terreno e aderentes no país. Não perguntar isto, mas andar a exibir fotos do líder, a destacar os seus dizeres, etc. é infantil e pouco sério. Não é atitude de quem queira aprender do passado para construir uma sociedade melhor.
A segunda pergunta é se Samora cometeu erros e se o regime cometeu atrocidades. A resposta do jornalista entrevistado é curiosa. Não diz nada sobre atrocidades, mas admite que houve erros. Diz que as ideias de Samora na área da agricultura eram contraproducentes, mas não elabora. Admite o excesso de centralização e de burocracia. Reconhece, no entanto, a tentativa de criar uma sociedade mais justa, isto é uma sociedade que libertasse as pessoas em situação de repressão e que sofreram durante o regime colonial. Eu por acaso sou de opinião que muito do que consideramos erro hoje é só visível com o benefício do olhar retrospectivo. Fez todo o sentido naquela altura e, quem sabe, se não tivesse havido externalidades hoje seríamos o país com maior segurança alimentar... Só que lá está, não interpelar essas opções feitas naquela altura e limitar-se a encolher os ombros com o desabafo “quem não erra?” é infantil se, no mesmo fôlego, a pessoa se põe a agitar bandeirinhas do grande herói nacional. Em resultado das opções políticas e económicas feitas naquela altura milhares de moçambicanos morreram de fome; o desenvolvimento de muitos de nós crianças e adolescentes naquela altura foi atrasado e os piores instintos da natureza humana vieram ao de cima. Mesmo as execuções públicas foram o resultado directo desses “erros”, pois com a escassez os mais espertos viraram-se como puderam e tornaram-se “inimigos do povo”, “infiltrados”, etc. Samora reagiu aos seus próprios erros com repressão. Hoje há quem ganhe tesão acusando Guebuza de insultar o povo por não ser empreendedor, etc., e esquece que o herói nacional reagiu com o chamboco, com a execução pública e com a expulsão da cidade aos seus próprios erros.
Mas não só isto. Falar do desiderato de criação duma sociedade mais justa não é revelação de nenhum facto. É um convite à reflexão. Que noção de justiça? Justiça “revolucionária”? Justiça que respeita o direito de pensamento, de religião, de residência, de ocupação, etc.? Justiça que protege o indivíduo da predação estatal? O caso dos “Madjerman” é bem sintomático disso. Quando o Estado se viu à nora com dívidas junto do governo da RDA não teve nenhum problema em usar o suor e esforço dos contratados para saldar as suas dívidas e sem consultar ninguém. Resultado: quando cai o murro de Berlim e vê-se perante o regresso forçado de milhares de moçambicanos, não tem nem um tóstão para lhes dar. Quando falamos do resgate duma sociedade justa referimo-nos a esse tipo de Estado, um Estado que usa os seus cidadãos como súbditos? Aqui aproveito para introduzir um detalhe importante: a “libertação” de que se fala não era uma libertação incondicional. Era uma libertação que implicava a criação do “homem novo”. Há muita teologia paulista nisto. A sociedade justa que se criava naquela altura era aquela que moldava o cidadão à imagem dos detentores do poder. Logo, era uma sociedade hostil a uma liberdade genuina dos indivíduos. Ou por outra, estamos a falar dum projecto de sociedade extremamente incompatível com os valores que muitos de nós dizem professar hoje em dia.
A terceira pergunta é hipotética. O que diria um Samora ressuscitado que visse o Moçambique de hoje? Paul Fauvet responde bem dizendo que é impossível responder à questão. Acrescenta, porém, como quem reflecte em voz alta: “Talvez Samora não gostasse disso, talvez ele mandasse todos os comandantes para a cadeia”. Considero esta reflexão em voz alta interessante pelo que ela diz nas entrelinhas. Primeiro devo dizer que também sou de opinião que essa pergunta é impossível de responder. O Julio Mutisse costuma insistir sobre este ponto dizendo que as circunstâncias mudaram. Sim. E eu acrescento: tendo em conta o facto de que os companheiros de então também mudaram, é bem provável que ele, neste novo contexto, pensasse e agisse diferente. Não era superhomem. E não só. Mesmo os seus companheiros de então não mudaram assim tanto quanto nós pensamos que mudaram. A lógica continua a mesma. Eles são a Pátria, logo, o que é do seu interesse é do interesse da Pátria. Este era o raciocínio básico de Samora Machel. Porque é que ele hoje não enriqueceria em nome da defesa da Pátria e da manutenção da riqueza nas mãos dos verdadeiros patriotas? Mesmo em vida revelou até que ponto era capaz de mudar para “defender a Pátria”. Assinou o Acordo de Nkomati sob os protestos de toda a África (eu que o diga que me vi escorraçado da Líbia em virtude da oposição de Gadafi a esse acordo...) e deu a virada para o Ocidente. Porque não havia de mudar? Mas conforme disse, é tudo hipotético.
Mas o que acho mesmo interessante é isto: “Talvez Samora não gostasse disso, talvez ele mandasse todos os comandantes para a cadeia”. Não sei se quem adula Samora tem consciência do alcance do que Paul Fauvet está a dizer. Se Samora não gostasse. E ainda: talvez ele mandasse todos os comandantes para a cadeia. Melhor descrição do autoritarismo não é possível de encontrar. A vontade do líder, não a força das leis, a arbitrariedade do líder, não o respeito pela legalidade. É este passado que nos deve inspirar hoje nos nossos esforços de construção duma sociedade baseada no estado de direito e na deliberação? Não sei se as pessoas têm a verdadeira noção da sua incoerência. Não sei se as pessoas têm noção da medida em que a brutalidade e arbitrariedade da polícia hoje ainda é um resquício desse período. Não sei se têm noção da medida em que alguma da arrogância dos nossos governantes (incluíndo da Renamo!) é sintomática duma cultura política autoritária que foi perfecionada nesse período tenebroso da nossa história recente. Não me parece possível celebrar esse período, e a figura emblemática que o representa, sem negar completamente as liberdades que temos hoje, mesmo se apenas teoricamente.
E porque é dia de festa termino com nota mais positiva. Também fui levado pelo entusiasmo dessa fase e exaltei Samora e todos eles. Até dei bá a Marcelino dos Santos, com apenas 10 anos, aquando da passagem de Samora por Xai-Xai na lendária viagem do Rovuma ao Maputo. A ele também dei bá. Pertenço a uma geração que viveu esse momento empolgante e fez o que fez na plena convicção de que era por um Moçambique melhor. As pessoas da minha geração, ou de gerações mais velhas, que celebram Samora hoje fazem-no também em homenagem a si próprias, ao facto de terem participado dum sonho que virou pesadelo. No momento de recordar é bom também reflectir sobre o que teria transformado o sonho num pesadelo. Não foi só o Apartheid e os bandidos armados. Foi o próprio projecto, como ele foi formulado e por quem ele foi dirigido.
A independência não foi um erro, a nossa gratidão pelos que por ela lutaram não é uma farsa, mas o que eles fizeram da independência precisa de ser reflectido honestamente. Não se faz isso mudando foto de perfil exibindo um líder autoritário que esteve à frente de todo um processo de recusa de liberdade ao seu próprio povo. Faz-se isso jurando não “esquecer o tempo que passou”. E isso implica um distanciamento crítico em relação a esse período. Para mim, escrevi numa discussão num outro mural, o dia 19 de Outubro de 1986 é o dia em que Moçambique renasceu. A luta anti-colonial terminou nesse dia e a partir daí começamos verdadeiramente a pensar no que queríamos que o nosso país fosse. Dia 19 de Outubro devia ser um feriado nacional de reconciliação com a nossa história. É um dia que nos mostra a verdadeira extensão da maldade contida nas boas intenções.
E para concluir: todo aquele que celebra Samora hoje – salvo uma e outra razão pessoal – é inimigo duma ordem política que respeita o indivíduo e sua dignidade. É inimigo do tipo de sociedade que estamos a tentar construir. E mais não disse, mas em plena consciência de que hoje gozo da liberdade de dizer isso e ser lido ou ouvido por quem quer que se interesse. A imbecilidade não vai ver a ironia disso.

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