domingo, 23 de outubro de 2016

AS DUAS CONQUISTAS DE ANGOCHE

AS    DUAS    CONQUISTAS DE    ANGOCHE
A história do Sultanato de Angoche, dos xeques seus depen­dentes, e dos munos macuás e lomués, mais ou menos seus vassalos, ou ainda independentes nos territórios da Capitania--mór, é pouco menos que desconhecida.
Tirando algumas raras e ligeiras referências de Duarte Bar­bosa ou de Fr. João dos Santos, sem detalhes, apenas encon­tramos entre os antigos escritores referências mais positivas aos inhabacos e inhamandares de Catamoio em Duarte de Lemos, que falando na sua acção e influência política sobre os xeques e populações da costa, entre outras coisas diz: “Dos Mouros de Angoya (Angoche) estam como estaban: danan todo o trato de Çofala. Parece-me pouquo do vosso serviço estar ally aquella ladroeira—» E razão tinha o cronista: que a influência do sultanato e seus mujôjos e nobres se exercia perniciosamente por ser o único principado islâmico com existência efectiva na costa e ter recursos importantes de ordem material e relações seguidas com outros centros muçulmanos.
Assim constituíam o obstáculo mais sério para a realização das nossas empresas e conquistas pela oposição que a esta faziam e pelo esforço e reacção que pelo seu proselitismo desenvolviam contra nós, representando indubitavelmente o foco da resistência contra o estabelecimento da nossa autoridade e do nosso predomínio ao longo das praias de Moçambique e mesmo para o interior.
Em 1898 o então guarda-marinha Eduardo Lupi, que no comando da lancha «Marracuene» revelava já as suas quali­dades e capacidade de trabalho, quando vigiava e reconhecia os canais de Angoche por forma a merecer uma referência elo­giosa de Mousinho (tão parco em as fazer!) no seu livro «Mo­çambique» , dizia: «Piores do que os seus vizinhos de Além-canal são os mujôjos de Angoche. São nossos inimigos: — politica­mente — por serem os antigos senhores da terra; economica­mente — por lhes tolhermos o seu mais favorito negócio, a es­cravatura: e superior a estas duas coisas e bastante de per si, têm-nos o ódio de raça, e o ódio de crença. São nossos inimigos, e foram-no sempre...»
Nem o general David Rodrigues em a sua publicação valiosa «A ocupação de Moçambique»; nem o general Teixeira Botelho na sua obra monumental e tão documentada “A história militar e política dos portugueses em Moçambique», nem o já citado Eduardo Lupi nos seus soberbos livros sobre Angoche, nem Massano de Amorim no seu relatório oficial sobre a sua notável ocupação de Angoche, nos dão relatos ou elementos muito desenvolvidos e precisos sobre a história antiga do Sultanato e terras dos macúas de Angoche. (i)
Assim começaremos esta pequena notícia no ano de 1839.
Nesse ano foi descoberto em Moçambique um conluio que tinha objectivo separatista.
O enérgico Governador Geral brigadeiro Marinho, atribuiu a sua responsabilidade aos negreiros que na província e especialmente no Tejungo, Môma, Angoche, Sangaje, Conducia e Cabo Delgado, praticavam o odioso e abominável comércio!
Ë justo acrescentar que a sua repressão era tentada pelas autoridades portuguesas da província com a diligência e energia permitida pêlos recursos limitadíssimos de que dispunham.
Em Maio de 1847 estavam estabelecidos em Angoche alguns negreiros árabes de Zanzibar e das Cômoros que tomaram a precaução de se fortificar, dispostos a resistir com artilharia e fusilaria às nossas autoridades se estas tentassem castigá-los.
Mercê de um acordo que hoje se nos afigura inexplicável mas que a penúria de recursos próprios, as deficiências da ocupa­ção efectiva nessa época fazia parecer tolerável (a alguns) os escaleres da fragata inglesa «Cleopatra» entravam então no rio de Angoche com o fim de perseguir pangaios negreiros que ali iam buscar a sua carga, como ignobilmente diziam, de pau preto.
Efectivamente lá estavam alguns e a marinhagem recebida a tiro, apenas conseguiu queimar um, retirando as embar­cações para o mar debaixo de fogo intenso das gentes de terra.
A autorização para o varejo dos portos portugueses por forças navais inglesas foi suspensa pela metrópole, mas o gover­nador geral, Abreu Lima, em vista das instantes solicitações do almirante inglês, comandante da estação naval do Cabo da Boa Esperança, que afirmava continuar a praticar-se a escra­vatura em Angoche, resolveu organizar uma expedição punitiva em que com as forças portuguesas cooperariam forças de desem­barque dos navios ingleses (!!) tendo como objectivo castigar o sultão conivente com os negreiros e destruir os barracões para escravos que existissem na povoação.
A força constituída por várias embarcações dos navios por­tugueses e ingleses, com marinhagem de desembarque, soldados e artilharia, tudo sob o comando do major Campos em 21 de Novembro (1847) entrou no rio.
Atacadas as embarcações por um tiro de peça e fusilaria, inflingiu a expedição uma severa lição aos muinhés, matando--Ihes muita gente e destroçando-lhes a povoação, o que permi­tiu que fugissem os desgraçados negros destinados a embarque como escravos.
Foi uma dura lição que, contudo, não surtiu efeito como era de esperar, pois que as expedições de mette e sacca, isto é, não seguidas de ocupação efectiva para nada serviam, e nunca deram resultado. Os inhabacos de Angoche e o seu sultão refei­tos da ensinadela e abandonados a si próprios, continuaram praticando a escravatura quási às escâncaras!
Ë para notar que o sultão a-pesar da frequência com que se repetiam casos desta natureza, nunca deixou de protestar a sua boa vontade e a sua submissão ao governo português!
Assim três anos decorridos, em Julho de 1850, no dia 20, largava ferro adentro do fundeadouro de Moçambique uma cor­veta de guerra inglesa, a «Bacchante», em que se transportavam três enviados do então sultão de Angoche Hassane-Issufo.
Vinham eles afirmar ao Governador Geral a obediência e respeito do príncipe mujôjo, e fazer os seus protestos de submissão.
Recebidos pelo Governador Geral que aceitou esses pro­testos de sujeição e vassalagem, foram-lhes impostas, por ele, várias condições para poder considerar efectivos, sinceros e formais, esses propósitos de obediência.
Como cláusula primordial impunha-se a plena obediência às determinações do governo português que exigia que, ele sultão, não consentisse a permanência, em suas terras, de engajadores de escravos, nem tão pouco, claro está, o exercício da escravatura. Impôs-se-lhe mais ainda o dever de dar conhecimento, às autoridades portuguesas, de qualquer ocorrência extraordi­nária que viesse a dar-se nos seus senhorios ou, nos domínios dos xeques seus vassalos. Baldadas imposições!
Dentro de pouco tempo e a-pesar desta singular iniciativa de submissão, vinda exclusivamente do sultão Hassane-Issufo, tudo estava como dantes!
Em 1856 via-se o Governador Geral forçado a mandar nova expedição contra o Hassane e seus muinhés, mas a indisciplina dos soldados e dos marinheiros que eram transportados num brigue de guerra obstou a que se obtivesse qualquer resultado com tal tropa...
Como se vê, pois, pêlos meados do século passado, o nosso domínio nas terras de Angoche e seus sertões da Macuana e Lomué, era puramente nominal: se o sultão da sua povoação do Catamoio enviava emissários e mantinha relações com as autoridades portuguesas de tempos a tempos, a verdade é que tudo era falsidade e mentira, como bem lembram Lupi e Massano de Amorim; este último acrescenta: «os protestos de fideli­dade, os preitos de homenagem dos sultões feitos quási sempre para que os deixassem sossegados e para que não se introme­tessem nas suas correrias pelo interior, ou nos seus negócios de escravatura na costa, nada significavam quanto a subordinação e respeito pela autoridade portuguesa».
Era então, como está dito, sultão o inhabaco da casa inhamilála (2) Hassane Issufe, cuja soberania e influência real se não dilatavam muito mais do que nominalmente, para fora da Ilha de Angoche, embora inhabacos seus vassalos, dominassem ainda regiões para o sul de Môma e para o interior e povos para oeste de Larde e para lá de Nametuli e Nampula, reconheces­sem o seu ascendente, que o próprio xeque de Sangage se con­siderasse seu vassalo e que os de Moginquale e do Infusse, por vezes, lhe prestassem submissão. Mas xeques e munos ou senho­res dominavam realmente as suas terras por conta própria.
Estava o sultão Hassane velho e, portanto, já timorato e pouco dado a empresas guerreiras ou que lhe alterassem a paz e sossego em que queria viver. Tudo que não fosse ganância sem trabalho e perigos, pouco o interessava, assustava-o mesmo. Tinha ele um irmão conhecido por Mussa-Quanto, filho da mesma mãi e do xeque da Cabaceira Pequena, no continente, em frente da ilha de Moçambique, dotado de qualidades bem diferentes das suas.
Se o facto de ser irmão do sultão, inhabaco portanto de grau elevado lhe dava prestígio, a sua energia e coragem, a sua dureza, tornavam-no temido, e faziam dele um chefe, um condutor de homens, incontestado e admirado.
O Mussa-Quanto chamava-se, na realidade, Mussa-Momadi--Sabo; seu pai o xeque da Cabaceira por nome Amadi-Sabo, tinha a alcunha de Quanto que transmitiu ao filho Mussá. O xeque era irmão do Gulamo-Usseni que tantos e tantos euro­peus conheceram e estimavam, e que era o intérprete oficial do Governo de Moçambique. Era, portanto, Mussa-Quanto irmão inteiro do xeque Ali da Cabaceira, sendo pela mãi irmão do sultão Hassane-Issufe de Angoche.
     Logo muito novo começou em companhia de um xerife seu parente, Agi, (por ter peregrinado a Meca), a percorrer o Lomué, o país dos Anguros o Lugenda indo até ao Zambeze e depois aos Ajauas, onde o xerife procurou arranjar prosélitos, seguindo para Zanzibar a visitar parentes e seguindo depois às Cômoros e até Madagáscar.
Estas suas viagens com o fim de ver mundo e conhecer terras eram, talvez, realizadas também com o objectivo de veri­ficar e descobrir onde melhor as caravanas do Catamoio e do Larde, se poderiam abastecer dos escravos com que houvessem de fornecer os mercados externos. Permitiram-lhe também reco­nhecer as riquezas das terras zambezianas e averiguar de onde provinha o ouro tão apetecido, e onde se caçavam os elefantes e se recolhia o apreciado marfim.
A viagem durou anos: regressando à sua pátria, ao Cata­moio na ilha de Angoche, Mussá trazia a viva imaginação im­pressionada pelo que vira e aprendera, a ambição exaltada pêlos recursos e riqueza que julgou poderia colher facilmente pela conquista e pela pilhagem, que se lhe afigurava seria decerto possível e fácil de realizar, pelos prazos da Coroa e pelas terras ribeirinhas do grande Zambeze, do Chire ou do Niassa; con­siderando realizável exercer domínio sobre aquelas populações.
Usando, pois, de toda a sua influência, de todos os seus dotes de persuação, embora aparentasse solicitar uma permissão, impôs, realmente, a sua vontade, ao velho fraco e indeciso Sul­tão, levando-o a assentir na organização de uma expedição de guerra que ele, Quanto, comandaria e que destinava a raziar e, talvez, conquistar para o Sultanato essas terras zambezianas que havia reconhecido e visitado.
Estavam então os recursos do Sultão e da sua gente em deca­dência, alegando os vassalos razões, de ordem vária, para não pagarem os tributos devidos.
Nem os caçadores do Lomué e da serra da Chinga ou do Namuli, nem tão pouco as caravanas do Gurüé e do Milange traziam já marfim ou ouro em pó, que derivava de preferência para as feiras do Zambeze e dos prazos de Quelimane.
O Sultão e os mujôjos viam, pois, os seus lucros adstrictos aos que lhe podiam advir exclusivamente de escassas culturas, ou da escravatura, que, como vimos, a-pesar dos esforços das autoridades portuguesas, dados os seus fracos recursos milita­res e defeituosos processos de os utilizar, elas não conseguiam extinguir.
O ambicioso e irrequieto Mussá-Quanto não se podia con­formar com a decadência do Sultanato que pensava vir a her­dar, e, assim, sugerindo ao irmão a ideia da expedição de guerra que, passado o «Ligonha», assolasse as regiões do interior, pen­sava, com as presas que realizasse, enriquecer o príncipe, os seus fidalgos e guerreiros, mas muito principalmente enrique­cer-se a si próprio.
Vencida a relutância do Sultão, sempre receoso de um desas­tre ou de uma revolta dos inhabacos, e convencidos estes pêlos argumentos e pelo arrojo do plano do Mussá Quanto seu ver­dadeiro chefe militar, organizou ele uma hoste aguerrida com­posta pelos homens do Sultão e seus próprios, pêlos dependen­tes e escravos dos inhabacos ou dos xeques vassalos, e dos munos macúas que conseguira fazer aderir aos seus projectos gran­diosos, e partiu, sempre acompanhado pelos receios do Hassam-Issufo, em direcção ao Morrúa e ao Mujeba, seguindo depois para o Derre e terras ribeirinhas do Chire, segundo tradição dos velhos inhacuáuas do Marrai, do Derre, da Aringa e dos régu­los do M'lolo, do Campata e outros na região de Milange, que submeti em 1890.
      Mas os guerreiros experimentados e valorosos caçadores do  Alto Boror, do Alto Marrai e Massingire, aliados aos homens do Mangassanja não se deixaram surpreender, e embora em número inferior aos invasores dos seus prazos e terras entrin­cheiraram-se numa forte aringa à moda tradicional da Zambézia, e resistiram vitoriosamente ao cerco e investida dos mujôjos do Mussá.
As gentes deste, desconhecedoras da guerra das aringas, segundo alguns descrevem, esgotadas as munições nos ataques a distância às fortes palissadas da fortificação cafreal e desani­mados, viram-se forçados a retirar, o que fizeram em boa ordem (Eduardo Lupi). É esta a tradição de Angoche, isto é, a dos rechaçados e vencidos muinhés.
A tradição zambeziana e dos homens do Chiperone e do Derre outra é, e foi por mini colhida cuidadosamente antes da campanha que em 1898 levou triunfantes as forças do meu comando às fronteiras do Sultanato, no Tejungo então limite do distrito da Zambézia, que, por falta de autorização supe­rior dada a tempo (3) não pude infelizmente transpor, quando era não só possível mas pode-se dizer, quási matematicamente segura a conquista de toda a capitania-mór de Angoche, e de toda a do Mossuril...
Diz essa tradição (segundo ouvi a Romão de Jesus Maria, filho de um dos sertanejos que teve cáfila de criados em armas a dentro da aringa dos vencedores do Mussá) que os de Ango­che depois de virem devastando tudo na sua trajectória, vieram esbarrar com uma aringa (4) para oeste do Chiperone, quási sobre o Chire.
Depois de a atacarem e de gastarem muita pólvora faltou-Ihes a coragem e o ardor para investirem e escalarem as palissadas e travarem a luta corpo-a-corpo, à arma branca, como então e, ainda depois, foi costume e tradição zambeziana e nós vimos ainda praticar pelos cipais.
Assim os invasores desanimados, iniciaram a sua retirada, saindo da aringa na sua peugada a alvoroçada guarnição, perseguindo-os sem piedade e inflingindo nas proximidades da serra Ligura, pelas bandas de oeste do Liciro, uma dura e san­grenta derrota às hostes desmoralizadas do Mussá-Quanto, ma­tando-lhe muita gente e obrigando-as a descer pelo Congone e pelas serranias Tonga e lero, já então mais refeitos e recons­tituídos, para o Inhamacurra, pelos prazos Boror e Tirre, Nameduro, Macuse e Licungo, cujas fracas e desguarnecidas aringas atacaram, e para o Bajone no Tejungo ou Quisungo, limite das suas terras.
No seu percurso o despeito pelo insucesso, o desejo de se vingar mesmo sobre os inermes, a crueldade natural do chefe Mujôjo levaram-no a assolar e devastar o país que atravessou, saqueando, matando, e arrastando consigo prisioneiros inde­fesos e escravizados, mulheres e crianças...
Entre as aringas tomadas de surpresa, contaram-se a do Erive (Maganja da Costa), a do Nepiode e a do Bajone, todas da gente de João Bonifácio Alves da Silva.
As autoridades de Quelimane impotentes, nem tempo tive­ram para recrutar cipais dos prazos que pudessem opor àquela tromba invasora, assassina e rapinante, que (5) Mussá-Quanto capitaneava, e que assim atravessava a salvo, as terras norte do distrito.
Passavam-se estes factos notáveis no ano de 1855.
Aí pelos começos do segundo quartel do século passado, aparecia em Sena um negociante reinol beirão, agenciador e arrojado, por nome António Silva, que se entregou ao comércio segundo o costume da época, percorrendo os sertões com cara­vanas constituídas por carregadores e cipais, antigos escravos.
Percorreu a Marávia, andou pelos Mocarangas e Manicas e depois deslocou as suas deambulações mercantis mais para leste, fazendo quartel general e moradia em Quelimane, e frequentan­do a Feira do Ingode no Boror, de onde irradiava com as suas cáfilas pelo Lomué e até aos Matipuires. Acamaradou e asso­ciou-se com o célebre mestiço sertanejo João de Jesus Maria, pai de Romão de Jesus Maria conhecido arrendatário do prazo Marrai, que acompanhou o ilustre oficial da Armada Real Antó­nio Maria Cardoso na sua viagem ao Lago Niassa, e a quem, como a outros, entre os quais José Militão Nunes, ouvi o relato de muitas e interessantes ocorrências da Zambézia. Tinha Silva, pelo menos, dois filhos e uma filha, que todos viveram com o pai em Quelimane.
Os dois filhos eram de nome João Bonifácio e Vitorino. A filha casou com um negociante e Senhor de prazo, de apelido Azevedo, e foi sogra se não erro de José Militão Nunes e de José Pereira de Carvalho.
Seguiram os rapazes as pisadas do pai, e, sobretudo, João Bonifácio, o mais velho, que era o chefe da sua casa comer­cial, assinalou-se desde novo pelo seu arrojo e tenacidade, e por ter tomado parte em algumas empresas guerreiras empreen­didas na Zambézia.
Com o tempo João Bonifácio, com o seu irmão Vitorino Ro­mão, foram arrendatários dos prazos Macuse e Licungo, ainda quási insubmissos, construindo e fortificando-se em aringas no Morruto, e depois avançando, atravessando o rio Licungo e seguindo para o Tejungo, Quisungo, ou Muniga, ao tempo limi­te fronteiriço do distrito de Quelimane, com as terras dos vas­salos ou dependentes do sultão de Angoche.
Construíram os dois irmãos próximo do Errive a enorme e celebrada aringa do Maganja da Costa, a maior e mais forte de quantas existiram em toda a Zambézia; muito maior do que as enormes aringas do Mungari e de Inhachirondo dos Macombes no Barué; que a de Massangano dos Bongas ou do Ma tacanha no Massingire.
Aringa tão grande que quando em 1898 a Maganja e o Robe foram batidas e ocupadas por forças do meu comando que vin­garam a morte do 1.° tenente da Armada Semeao de Olivei­ra, (6) a um canto por assim dizer, acamparam os 6.000 cipais e carregadores da coluna. E havia espaço para três ou quatro vezes esse número de homens!
Avançando sobre o rio Tejungo ainda os homens de João Bonifácio construíram por ordem do seu senhor ao L. N. E. da ilha de Mazemba a aringa do Bajone como sentinela avançada para vigiar as terras do xeque de Nhaoichiúa vassalo do prín­cipe dos inhabacos de Angoche.
Foram essas aringas todas colhidas quási sem defesa, pela horda dos guerreiros do Mussá-Quanto na sua retirada, saquea­das, e os homens que por lá havia escravizados ou mortos, as mulheres novas raptadas, as outras mortas.
Deu assim o Quanto entrada em terras de Angoche, car­regado de despojos, deixando pelo seu percurso um rasto de ódios e rancores, e o desejo da vingança por parte daqueles zambezianos que haviam sofrido as suas rapinas e extorsões, ou o peso dos seus instintos de ferocidade e cruel violência.
Entre esses ódios marcavam os de João Bonifácio, dos seus capitais e cazembes e homens de guerra, que todos tinham a lamentar e a vingar ultrajes ou graves prejuízos sofridos.
Jurou logo o destemido e escarmentado sertanejo tomar es­trondoso desforço exercendo represálias e vingando gentes mor­tas, povoações destruídas, várzeas taladas, raptos e roubos pra­ticados: mas se era destemido não era menos ponderado e cau­teloso.
Resolveu pois atacar e devastar o sultanato de Angoche ape­nas quando dispusesse de tais recursos e homens que lhe des­sem a garantia de poder dominar e reduzir à impotência os mujôjos.
Empresa de tal monta, de resto, nunca seria intentada sem que o avisado sertanejo obtivesse o explícito assentimento, se não o auxílio e colaboração das forças do governo, por redu­zidas que fossem.
Durante anos se preparou o pertinaz e obstinado João Boni­fácio fazendo a selecção cuidadosa da sua gente, sendo recru­tados negros para seus cipais entre os afamados e destemidos caçadores do Absinta e Caia na Zambézia, ou do Alto Marrai e Massingire, que já conheciam e haviam repelido os mujôjos, como vimos, e pedindo concurso aos outros arrendatários ou senhores de prazos.
Militarizou a gente da aringa da Maganja e deu-lhe a curiosa, notável e única organização militar a que me refiro no meu relatório oficial da Campanha do Barué em 1902 e que se per­petuou ampliada até 1898. Proveu os lugares de capitão, cazem­bes, cabos e de canhongos em homens absolutamente seguros e de valentia a toda a prova.
Organizadas as suas 12 ensacas com 250 homens cada, e ao fim de 6 anos, tinha as suas forças prontas e mais de metade delas,, isto é, 150 homens por ensaca, armados de espingarda, as primitivas lazarinas — o que então se vendia para pretos.
Tinha João Bonifácio em 1861 os seus preparativos prontos para a expedição punitiva que à sua custa, note-se, ia realizar em terras de Angoche.
Em fins de Junho dá ordens para que no princípio de Agosto estivessem concentrados os homens de guerra que a deviam constituir, bem como os criados e carregadores que os devessem acompanhar. Todas as ensacas (7) deviam fornecer gente de modo a formarem-se quatro ensacas com o número regulamen­tar de 250 cipais armados de zagaia e machadinha, e quatro outras ensacas, também cada uma de 250 homens igualmente com machadinhas, mas levando espingarda (de pederneira).
O comando de todos os irregulares seria especialmente con­fiado ao capitão da aringa grande, Mateus. Os cipais armados de espingarda seriam comandados pelo Cazembe Mujôjo, ho­mem novo e muito valente que justamente 30 anos depois já velho mas rijo, serviria comigo na desesperada luta da Mafunda, no Muira.
Serviriam de cazembes nas suas quatro ensacas os Dodimuno, Maidonaga, Nipara-Muno e Niago-Namuali.
O canhongo seria o Cara de Ferro afamado guerreiro do Marrai que depois se fixou na Maganja e já velho seria o Ca­nhongo Grande da Aringa, isto é, o terceiro personagem daquela célebre república militar.
Os cipais armados exclusivamente de arma branca eram capitaneados pelo Cazembe Faustino, e serviam de cazembes nas quatro ensacas, os cazembes Chibísa, Malagueta, Dabéa e Mango-Numo. O porta-bandeira era o Mateus filho. O Canhongo-adjunto do Cara de Ferro era o Brandão, (8)
Em Agosto estavam os irregulares de Bonifácio reunidos como ele prescrevera, e para dar o carácter oficial à expedição, juntaram-se-lhe o alferes Lourenço Lançarote com 18 praças do batalhão n.° 2 de caçadores da África Oriental, então aquar­telado em S. Domingos em Quelimane que acompanhavam duas peças de calibre 3.
Essa força tinha sido mandada encorporar na expedição a pedido de Bonifácio, pelo Governador Geral, então capitão Vasco Guedes de Menezes que aprovou o projectado castigo, por ser de opinião que a situação de Angoche e a atitude de insubmissão da gente do Sultão era intolerável; opinião que de resto (Teixeira Botelho) era também a do governo central na metrópole, que chegou a coligir as informações necessárias para organizar uma expedição europeia que pusesse cobro à prolon­gada rebelião.
Em fins de Agosto finalmente põe-se a força em marcha.
Os carregadores eram poucos, e só levavam a artilharia, as munições, as balas e pólvora, além da ligeira bagagem e víveres dos brancos. Os cipais levavam consigo mantimento para pou­cos dias, e deveriam depois viver do que desse o país, e da pilhagem.
A força era pois constituída,  além dos soldados,  por dois mil cipais seleccionados das ensacas da Maganja e de entre guer­reiros experimentados de outros prazos, metade com espingardas de pederneira, os outros mil só com armas brancas.
A tropa ia armada com a «Erifield», arma de carregar pela boca.
Em 1 de Setembro embocam o Tejungo, a montante da ilha de Mazemba, e próximo da pequena aringa de Bajone, que estava guarnecida por 200 homens da Maganja e onde ficou o Vitorino Romão.
Chegam ao M'lela em boa ordem, e aí começa a resistência que depois se repetiu sempre com assinalado êxito para o Condo (9) de Bonifácio.
Ao fim de dez dias faltaram completamente os mantimentos a-pesar-de, como sempre sucede com irregulares em guerra, o saque ser livre. Só passados três dias encontram férteis machambas que, providencialmente, abundam em víveres para os cipais, os quais, com o estoicismo dos negros que sofrem jála (fome) vão apertando gradualmente os cintos...
Finalmente, no dia 25 de Setembro de 1861, pelas 9 horas da manhã, bivacam as forças de Bonifácio a 5 quilómetros do Vau de Quiloa, ou Kilua que dá comunicação da ilha de Angoche para o continente.
Destaca Bonifácio uma ensaca (250 homens), comandada pelo Mateus, para ir ocupar a testa do vau na terra firme.
Aí se fortifica Mateus (10) num pequeno sanzôro (11) à moda zambeziana, aguardando com as suas 250 espingardas a chegada de toda a força, que logo de manhã no dia seguinte se apresenta toda, junto ao sanzôro.
Tenta-se a passagem e começa o tiroteio, pouco intenso porque as munições eram escassas e tinham de seu poupadas; as peças para pouco serviram, dado o péssimo estado dos seus reparos.
Ainda assim puderam disparar duas dúzias de tiros em resposta à quási inofensiva artelharia dos muinhés e à fusilaria das trincheiras com que estes batiam o vau.
Pelas três horas, (segundo ouvi contar ao então porta-bandeira Mateus, que em 1891 com o Mujôjo e o Faustino coman­davam os cipais da Maganja que me acompanharam nas acções de Muira e estiveram no combate da Mafunda (onde o Faus­tino morreu). Bonifácio tomou as seguintes disposições que creio serem pouco conhecidas e denotam o ardor com que ele atacava o inimigo, e a firme resolução em que estava de o vencer, custasse o que custasse.
Embocam o vau os cipais armados de zagaia e machadinha, estendendo-se em linha com os grandes à frente: atrás deles formavam os cipais armados com as espingardas a quem foram distribuídos 5 (cinco) cargas e balas por cada um.
Ao rufar dos cinzeles (12) e batuques os cipais armados com arma branca carregaram e lançaram-se sobre as trincheiras em que se abrigavam os defensores da ilha.
Os cipais armados de espingarda tinham ordem de esperar a pé firme, em ordem extensa, e se vissem os seus camaradas encarregados do assalto fazer menção de oscilar ou de retro­ceder, deveriam fazer fogo sobre eles e atirarem-se então para a frente contra o inimigo, arrastando consigo os remanescentes da primeira fila.
Os soldados no sanzôro com uma peça atamancada, defen­deriam a pasagem do vau fosse contra quem fosse, amigos ou inimigos.
João Bonifácio pôs-se à frente dos seus cipais adiantados, e num impulso cheio de vigor escalou o parapeito a que se abri­gavam os de Angoche, e a-pesar-do seu elevado número (Lupi diz serem 10.000, as minhas informações nada dão de positivo, mas Romão dizia serem mais de 6.000) desbarata-os completamente, fazendo entre eles grande mortandade.
Escusado será dizer que a segunda linha se juntou à pri­meira, e que o alferes Lançarote com os seus soldados acompa­nhou com valor, logo que o entendeu conveniente, a carga dos nossos.
Prosseguem na sua marcha, e o último reduto dos inhabacos, Catamoio, a própria povoação do sultão, defendida também por trincheiras, cai nas mãos zambezianas.
Dias inteiros se seguem no saque pelos arredores e interior, ou na perseguição dos inimigos a quem segundo o uso nas guerras cafreais, não dão quartel...
Numa das últimas escaramuças o João Bonifácio é morto por um tiro, mas a presença do alferes Lançarote, o prestígio do Mateus e disciplina das ensacas, e a ânsia do saque fazem com que os cipais zambezianos continuem a sua missão de cas­tigo e de razia, sem debandarem, ou pensarem em retirada.
Morto João Bonifácio é mandado logo recado ao Vitorino Romão que impaciente esperava notícias do irmão na sua aringa do Bajona e que imediatamente segue levando consigo munições, e acompanhado por mais 500 cipais, (duas ensacas) comandadas pelos Gadaningombe e Marango.
Chegado a Catamoio com a nomeação de capitão-mór e de coronel da 2.a linha que seu irmão já tivera, dedica-se à pacifi­cação das terras, conseguindo a apresentação de muita gente e de alguns inhabacos.
Mussá-Quanto que se bateu valentemente, ferido, foge para a povoação do Xeque de Sancul, na baía do Mocambo, aí é preso e levado para a fortaleza de S. Sebastião.
O velho sultão Hassane Issufe, dando ao demo as aventuras guerreiras do ambicioso irmão, logo que teve notícia da marcha de Bonifácio apressou-se a fretar cinco pangaios, em que meteu serralho e riquezas, e velejou para Madagáscar onde veio a morrer, segundo correu, envenenado.
Assim se fez a primeira conquista de Angoche que com a prisão do Mussá-Quanto e a fuga do Sultão, pareceu estar defi­nitivamente assegurada.
Ë depois nomeado comandante militar e capitão-mór de Angoche o capitão Gourgelt para substituir Vitorino Romão quando este recolheu à Aringa (13) com os cipais do irmão que, sob o comando do Mateus, haviam feito raids pelas terras dos Munos macúas e pelas dos Xeques, vassalos do sultão, che­gando mesmo ao Mocambo.
O serviço prestado por João Bonifácio Alves da Silva ao seu país foi relevantíssimo, e veio pôr termo, por então, a uma situação deprimente como fora a que havia permitido que os navios e tripulações inglesas interviessem por vezes nas lutas em terras e portos que, embora do Sultão, eram portugueses, com o objectivo de fiscalizarem ou de evitarem e porem termo a actos de reconhecida e descarada escravatura, que nós pro­curávamos extinguir sem resultado, a-pesar-de nesse intuito empregarmos esforços reiterados e possíveis.
O nome de João Bonifácio, como aliás sucede com os de muitos outros heróis da nossa epopeia ultramarina, de poucos é conhecido, e nunca teve a consagração da popularidade nem tão pouco a aura que lhe era devida pelo seu sacrifício e pêlos seus altos serviços.
A sua acção, infelizmente por não ter sido seguida depois, resultou quási perdida, e tirado esforços isolados, alguns de valor, só de 1906 a 1910, como dizemos, a ocupação eficaz de todo o distrito de Moçambique assegurou definitivamente o nosso domínio no país e designadamente em toda a capitania--mór de Angoche.
O Namuali, contudo, não se conformava com a prisão. Mercê de cumplicidade suposta e criminosa de amigos, e pro­vavelmente de associados nos negócios da escravatura, con­seguiu evadir-se da fortaleza de São Sebastião (1862), onde estava cativo havia alguns meses (14). Divergem as opiniões sobre qual fosse o seu destino.
Uns dão-no como fugindo para Madagáscar, aonde iria buscar armamento e munições para volver à sua terra e re­começar uma luta homérica, em que consumiu o resto da exis­tência.
Outros dão-no como internado no sertão de Moçambique, mal conseguiu libertar-se do cativeiro em que jazia.
Seja como for, em Julho de 1862 já um de seus sobrinhos e um filho trucidam um destacamento de meia dúzia de soldados que estava a pequena distância do Parapato, e que se defendeu bravamente enquanto teve munições.
O Governo Geral mandou castigar a gente de Mussá, por uma força de 640 irregulares saída de Muchelele com duas peças, nada conseguindo essa força ocupar, mas causando três baixas.
Investe depois o Mussá com o Xeque de Sangage, que era vassalo do Sultão e que fora submetido pelos cipais da Zambézia.
Pede o Xeque o nosso auxílio, que é mandado pelo Gover­nador Geral de Moçambique.
Primeiro vão uns cem cipais por mar, depois, em princípios de Agosto, segue uma expedição sobre Etagi (entre Kinga e Sangage), composta de 9 artilheiros com 2 peças e 920 cipais da Zambézia com o Mateus e 100 macúas de Marrevone, tudo sob o comando do alferes Agostinho Salvador de Sousa, na­tural do Ibo, e falava o suahili e dialectos macúas.
Apresaram dois pangaios e arrazaram o país, mas a sua prin­cipal presa foi a da irmã do Mussá e do sultão Hassam-Issufo, a bela Mahera (15), a quem cabia o dever, de acordo com a lei mussulmana, de assegurar a sucessão no sultanato, e que estava a bordo de um dos pangaios apresados.
Como resultado do desastre a gente do Mussá e ele próprio se internaram para as terras do Mugovola, reconhecendo não poder levar a melhor contra os cipais da Zambézia.
Contudo o atrevimento dos mujojos não se abate; quando o cutter «Andorinha;) pretendeu aprisionar um pangaio esclavagista, a gente deste mata dois marujos.
O Governador Geral, aproveitando a inimizade do régulo de Sancul contra o Mussá, determina-lhe que vá em socorro do Xeque de Sangage novamente ameaçado; segue o de Sancul com 1.000 dos seus homens, muitos armados de espingarda, os quais, com 20 soldados com duas peças, seguem às ordens do tenente Desidério Guilhermino. Desembarcados dos navios da estação naval iam 10 marinheiros sob o comando do oficial da armada real Metzner.
Em 15 e 26 de Janeiro há recontros próximo do Infusse em Namarrotaminde, com vantagens para os nossos, a-pesar-de parte da gente ter fugido. Em 29 novo combate na passagem do rio Monapo, quando a nossa gente fez grande mortandade no inimigo, que é abandonado pelo seu aliado Mórla-Muno, régulo Imbaméla, que desde então é considerado submetido (em nome). O Namuali então, como sucede nestes casos com os pretos, declara-se cançado da guerra, manda entregar, num gesto teatral, a sua espingarda ao capitão-mór do Mossuril, foge para a Conducia e de Kissimajulo abala num pangaio para Madagáscar, donde em Agosto de 1864 volta com três pangaios com armamento e com gente aportar a Sangage. Vai submetendo os negros e a sua ousadia chega ao ponto de atacar e fazer abandonar o seu posto no Parapato a um destacamento de 20 homens que com o seu comandante, alferes Montenegro, tem que recolher com as suas duas peças para Muchelele.
Pouco depois, conta Eduardo Lupi, «um acaso feliz guinda-o a uma notoriedade europeia que põe em bem crua luz o nosso periclitante domínio. Ë o caso de um escaler de uma cor­veta inglesa, onde o tenente Reed anda a reconhecer a barra de Sangage, vir a cair-lhe nas mãos.
Mussá... informa por cartão o almirante britânico que con­servará em reféns o oficial e marinheiros até que lhe sejam restituídos os seus parentes (16), aprisionados pelo alferes Agos­tinho e pelo Mateus na marcha deste até Etagi, em 1862. Impõe e obtém. O almirante inglês não desiste de ver solto o seu tenente, exerce pressão em Moçambique: o governador por­tuguês cede: a bella Mahera e os restantes membros da família do novo sultão (17) são levados até Sangage, a bordo da fragata inglesa.»
Em 1865 é a região elevada à categoria de distrito, a-pesar-de então a nossa precária ocupação se limitar à ilha de
Angoche, pois que só em 1883 tivemos de novo influência no conti­nente e em Sangage. Embora o decreto mandasse estabelecer a sede do distrito no Parapato esta não saiu de Naija, realizando-se a mudança apenas em 1881, mas abandonando-se em com­pensação o posto militar em Muchelele.
Em 1867 Mussá, tendo trabalhado com inegável pertinácia e inteligência as tríbus dos Imbamelas e outras, consegue alie­nar-nos a amizade daquela, que depois da retirada dos zambezianos era o nosso mais forte apoio.
Dá-se então um caso singular e lastimoso: um degredado fugido, europeu, de nome Manuel Luiz Duarte, evade-se para Tinha realizado uma grande e notável obra, e dilatado para o norte até ao Mojinquale e mesmo Infusse, para o sul até ao Tejungo no «Pebane, e para o interior até à áspera cordilheira da «Chica», o domínio dos inhabacos de «Catamoio», de que foi a mais valorosa e a mais forte encarnação.
Os pretendentes ao sultanato foram então muitos (sete pelo menos), mas entre todos se destacava o «Ussene Ibrahimo», sobrinho do Mussá e seu companheiro de lutas, e o «Sulimane-Bin-Rajá».
Com aquele estavam os rebeldes e irrequietos, com este último os que pendiam para a autoridade portuguesa: pode dizer-se que foi o «Ussene» quem venceu, embora o segundo tivesse alguns fiéis.
Em 1885 começou a falar-se em «Ussene» por questões de escravatura clandestina no Infusse e em Sangage, que ele re­solve hostilizar; e em 1887 soube-se que pensava atacar o Parapato com as suas hostes, mas é só em 1888 que se dá o embate, estando de um lado «Ussene-Ibrahimo» e seu aliados, do outro o xeque de Sangage e o «Morla-Muno» (18).
O combate capital e decisivo dá-se em Março em terras de Imbamela (19) quando o sultão «Ussene-Ibrahimo» perde 600 guerreiros e ele próprio é morto. «Morla» mandou ao gover­nador a espada, o feitiço e a mão direita do vencido!
Entretanto as dissenções e as lutas, entre os grandes régulos Imbamelas, agitam e ensanguentam o sertão, e tendo morrido o «Morla», o seu sucessor, fraco e bêbado, vem exigir-nos compensações por se haver a sua gente batido contra o «Ussene-Ibrahimo»!
Os atentados contra a nossa soberania não cessam. Desde 1890 repetem-se, e então é um bandoleiro, parente do «Ussene» e seu sucessor, de nome «Mahamuieva», conhecido por «Farelay», quem pensa atacar o Parapato, e é ele quem recebe os nossos soldados a tiro; ataca, incendeia povoações, a dois passos da sede do distrito, e são aliados seus quem trucida um oficial e brancos nas suas terras!
Em 1902 morre o «Morla» e, então, começam os conflitos dos nossos com aqueles aliados tão antigos.
Falemos agora do Xeque de Sangage que, como vimos, era ameaçado pelo «Ussene-Ibrahimo», que não esquecia que o tio, «Mussá-Quanto», fora por ele hostilizado em nosso proveito. Procurando impedir qualquer ataque e ainda por outros mo­tivos, resolve o Governador Geral montar aí um posto em 1885, sendo eu, então guarda-marinha, encarregado de, com uma força de desembarque do «Vouga» e uma força do bata­lhão de caçadores 1, de Moçambique, realizar o intento, o que consegui com felicidade (20).
O «Farelay» deu-nos que fazer, embora sem ter a enver­gadura do «Mussá-Quanto» e longe de ter a sua proverbial valentia. Era inteligente, manhoso e atrevido, e conhecia bem a inanidade da nossa ocupação em Angoche, visto que frequen­temente ia ao Parapato. Usava dos processos do «Ussene» blo­queando o Parapato e cobrando pesados impostos de quem, viajantes ou caravanas, pretendesse atingi-lo vindo do interior, e instalava a sua residência a 5 quilómetros da vila, e em 1889 veio atacar nas terras do Morrúa, mesmo às portas do Parapato, a força que o Governador mandara para prender o «Muapala-Muno».
A situação da vila e dos seus habitantes é assim tornada extremamente precária, ficando por terra cercados pela gente do «Farelay» e por mar pela gente da ilha de Angoche, feita com ele. Depois de um cerco em regra, os habitantes e a força em pânico, sofrem um ataque às suas posições em 10 de Feve­reiro de 1890, e no meio de uma balbúrdia indescritível, um tiro providencial, matando o chefe de guerra do «Farelay», faz debandar os assaltantes, que já haviam tomado os nossos postos exteriores.
Em 24 do mesmo mês repete-se a tentativa, mas a artilharia do “Tâmega” afugenta a gente do “Farelay”. Este retira mas, embora em 1 de Novembro de 1890, ele e o seu aliado Mapala, venham ao Parapato submeter-se, do que se lavrou auto, não deixou de continuar na sua rapinagem e em breve se torna senhor de grande parte dos antigos domínios do sultão de Angoche, minando por toda a parte o nosso senhorio e aliando--se com o «Ibrahimo» que vivia em Angoche, e é filho do «Suliman-Bin-Raja» e pretendente no sultanato, firmando uma aliança com o célebre «Maravi», o nosso pior inimigo na região ao norte do Mocambo.
Valem então ao Parapato as frequentes visitas das canho­neiras, que evitam a repetição dos ataques de 1890. O nosso reduzido domínio, no entanto, mantinha-se periclitante; assim o sargento-mór, Manuel Henriques Pereira, é atacado nas terras do Morrúa, aonde fora em serviço, e em Outubro de 1896 o «Farelay» ataca o Parapato, já então denominado António Enes (desde 1891), o que só a presença da «Zaire» realmente salva.
O comandante do posto de Morrúa é forçado a fugir para a vila com o seu pequeno destacamento, abandonando uma peça.
     Em 13 de Dezembro, o «Neves Ferreira», que encalhara no «Calealo», é rijamente atacado pelos inhabacos da ilha. Para melhor apreciar o estado de coisas, basta transcrever o trecho seguinte do relatório de Massano de Amorim, que o transcreve por sua vez de um relatório de um capitão-mór: — «Quando em 1895 vim para... Angoche não se podia pôr pé nas ruas da vila, não se saía senão para dentro da tal aringa onde todos se juntavam à primeira atoarda... O «Farelay»... sen­tava-se debaixo de uma mangueira, a 2 quilómetros da vila, mandava chamar ali o governador ou comandante militar e os principais negociantes a quem recebia no meio do seu acampa­mento cheio de gente armada, e dizia com a maior insolência o preço por que permitia a passagem das caravanas... Subscre­viam a Câmara Municipal e os comerciantes com várias cen­tenas de mil réis e ficavam de saguate sacos de açúcar, latas de chá, fardos de fazenda, pólvora e armas, até que o salteador se declarasse satisfeito!» É então (1896) nomeado capitão-mór de Angoche o destemido veterano tenente Júlio Gonçalves, que faz uma administração enérgica e toma medidas de ordem militar eficazes, na previsão de operações contra o «Farelay» e o «Morla», então nosso inimigo. Em 1893 fora extinto o distrito de Angoche e encorporado como capitania-mór no dis­trito de Moçambique, cujo governo foi entregue, em 1897, ao ilustre Eduardo Ferreira da Costa, que fora o chefe do Estado Maior das tropas operando contra o Gungunhana, o qual man­dou tomar providências eficazes para o robustecimento da nossa autoridade, seguindo para os rios de Angoche a lancha-canhoneira «Marracuene», comandada pelo jovem guarda-marinha Eduardo Lupi, que logo, e ao depois quando capitão-mór, de Julho de 1903 a Dezembro de 1905, ali prestou relevantes ser­viços. A guarnição fraca e diminuta foi substituída por uma companhia de guerra e uma secção de polícia, ao todo uns 200 homens.
Então, em terras do Imbamela, o tenente Almeida, secre­tário da Capitania-mór, era morto por gente do «Guernéa» ou «Cornêa-Muno».
Eduardo Costa propunha a seguir, e Mousinho adoptava, um projecto, para em momento oportuno se realizar a conquista e ocupação de Angoche, e castigo dos eternos rebeldes, mas circunstâncias supervenientes e do domínio público obstaram à sua realização.
Mousinho de Albuquerque, o ilustre Comissário Régio de Moçambique, depois da sua célebre campanha dos namarrais, a que sucederia a acção valorosa dos governadores do distrito de Moçambique, Eduardo Costa e Alfredo Baptista Coelho, e depois de ter sufocado o último espasmo de revolta dos vátuas em Macontene, derrotando e matando o seu chefe de guerra «Maguiguana», chegou a mandar que se iniciassem os prepara­tivos para levar a cabo a ocupação de Angoche.
Deveria realizá-la em 1898 quando a sua demissão fez sus­pender e completamente inutilizar a execução do seu plano.
       Davam-se, porém, então ocorrências na vasta região do distrito de Quelimane (21) limítrofe, pelo sul, da capitania-mór de Angoche, que determinaram a constituição de uma forte coluna de tropa e de cipais dos prazos com que eu, então governador da Zambézia, bati e ocupei toda a Maganja da Costa e terras dos régulos seus vassalos, atingindo o Tejungo onde debalde estive esperando a ordem que havia solicitado para invadir o sul do distrito de Moçambique, e repetir, ampliando-a, a faça­nha de Bonifácio, com muito maiores probabilidades de êxito, visto os magníficos elementos de que dispunha e o prestígio de que as forças do meu comando estavam aureoladas (22).
A sua reputação tinha tal retumbância, visto haverem ven­cido os célebres cipais da Maganja, os famosos vencedores do «Mussá-Quanto» e dos inhabacos de Angoche em 1861 que, sertão fora, através Sangage, Kinga, Moginquale, Infusse e Quivolane, Sancul até ao Mossuril e Cabaceira e Namarrais, se espalhou, com pavor dos eternos rebeldes dessas regiões e da Macuana, que os meus marinheiros e soldados, com os cipais de Sena, do Marrai, do Guengue e da Maganja, tinham inva­dido o distrito de Moçambique e, a ferro e fogo, iam, em marchas de triunfantes vencedores, seguindo em caminho à Matibane...
      E tão insistentes foram os boatos e tantas e tão seguras informações atingiram o palácio de S. Paulo, que o Comissário Régio, meu amigo, como era, e a quem só devi atenções, provas de estima e concessão de galardões que nunca pensei merecer, e que remuneraram mais do que generosamente os modestos serviços que dentro da minha esfera de acção procurei prestar, chegou a convencer-se de que realmente, eu no entu­siasmo e no calor do sucesso alcançado na Maganja, excedera os poderes do meu cargo, ultrapassara os limites do meu dis­trito, e invadindo o distrito de Moçambique, levara adiante de mim a gente do Catamoio e as hostes do sultão e dos seus xeques e munos (23).
Mandou-me então uma nota confidencial, como ele sabia mandar, quando os seus subalternos se excediam ou não cum­priam...
Aires de Orneias, seu chefe de Estado Maior, a custo fez expedir essa nota, que atenuava com uma carta de amigo, como ele era...
Entretanto, a minha solicitação para passar o Tejungo e varrer os mujôjos de Angoche, demorada por falta de trans­portes ou outras razões, chegava às mãos do Comissário Régio, que imediatamente me escreveu lamentando o sucedido, e dizendo-me umas boas palavras, entre as quais um “agora asso­bia-lhe às bóias” que diziam tudo. Eu esperara uns quinze dias a almejada ordem no limite do distrito em Bajone, mas, não podendo alimentar os meus 6.000 homens, retirei — e «assobiei às botas» como Mousinho dizia (carta de Mousinho emprestada à Agência Geral das Colónias por mim) — mas infelizmente estava perdida a ocasião única, que então se apresentava, de bater Angoche e dominar e ocupar o distrito de Moçambique com pequeno dispêndio relativamente, e por uma forma eficaz, evitando-se novas campanhas.

Com a saída de Mousinho e dos seus auxiliares, tudo quanto dizia respeito à ocupação de Moçambique e de Angoche, pouco menos que paralisou: não porque não fossem empregados alguns louváveis esforços para conservar e mesmo ampliar o que se havia feito, mas os recursos militares eram reduzidos e o que se não dera a Mousinho menos seria dado a outro governador geral, por distinto que fosse, mas que não gozava do seu enorme prestígio no país, e que se não abalançaria a encetar dadas operações de guerra, então menos bem vistas pelas autoridades no ministério da Marinha e Ultramar.
No entanto, em 1899, sendo governador do distrito o capitão de fragata Marques da Costa, restabeleceram-se, sem que a sua influência irradiasse, contudo, para além deles, os postos de M'chelele, Quiloa e o de Morna.
Em 1902 renovam-se boatos de que o tráfico da escravatura recrudescera nas barras e rios da capitania.
Há logo uma pertinaz e brilhante acção da marinha de guerra  e dos seus navios na costa do distrito, mas, tudo con­firma e demonstra, o precário ou inexistente domínio português nas terras do interior e litoral.
Planeou-se então montar treze postos, mas ficariam todos na costa e, como diz Eduardo Lupi, «a ocupação da costa foi levada a um grau exageradíssimo», não se curou da do interior. Tudo era fraco e mal planeado... e não se executou. E é o ano em que o «Farelay», em boas relações com todos os Imbanelas», depois da morte do velho «Morla-Muno», vem a M'luli fazer-se aclamar sultão...
      Em princípios de Dezembro desse ano vai o capitão-mór com uma força do comando de um alferes, disposto a instalar um posto em «Boila», que o engenheiro Pais de Almeida e depois quatro oficiais haviam reconhecido como de alta vaníagem ocupar-se. Atacado e desfeiteado pelas forças de alguns régulos macúas tem que retirar sempre debaixo de fogo, custando a fazer o embarque para o Parapato, e perdendo uma peça e... até uma espada de oficial... (Lupi).
A este desastre, de larga repercussão e de efeitos danosos, pelas correrias de inimigos a que deu azo, segue-se o assassinato do infeliz engenheiro Pais de Almeida e do seu sócio, antigo sargento Pita Simões, em terras de «Mugovola», sendo mortos à zagaiada por gente do «Cobula-Muno». Dada a gravidade da situação, é nomeado interinamente capitão-mór o destemido tenente José Augusto da Cunha.
Era preciso vingar afrontas e desaires, embora os recursos não fossem muitos: começa então, em Maio de 1903, uma acção brilhante e eficaz daquele valoroso oficial (que tive a honra de iniciar nos serviços do mato e de campanha) na Zambézia.
Com uma coluna de cento e cinquenta soldados, duas peças e bastantes auxiliares, arraza a povoação do régulo de «Boila» ou «Buela», atacando e queimando, debaixo de fusilaria, a povoação do «Farelay». Sustenta fogo várias vezes, o que nos causa alguns feridos, e muitas baixas ao inimigo, construindo a fortificação em «Boila», que ficou guarnecida por oitenta homens. Desembarcou então dos navios de guerra que estavam em António Enes uma força de marinhagem.
Poder-se-ia ter tirado partido desse importante reforço e do efeito moral produzido pêlos combates travados para ocupar o Larde e a região próxima, mas ordens superiores, fazendo retirar os navios, impediram que isso se fizesse. Seguem-se vários actos de represálias, alguns talvez exagerados, que obri­garam o sultão «Ibrahimo» a fugir da ilha de Angoche e a refugiar-se no Continente, onde engrossou o número dos rebeldes activos. O «Farelay», porém, nem se temeu nem acreditou na eficácia da nossa acção.
Tomando Eduardo Lupi posse da capitania-mór, soube que ele voltara à sua povoação que reconstruirá.
Recomeçam as depredações, os assaltos, os atentados, insul­tos e desrespeitos. Procurando pôr cobro aos enxovalhes e rebeldias, Lupi organizou uma pequena coluna de tropas com artilharia que concentrou em Morna, e castigou Margepe, efectuando prisões e atacando e batendo Namapui, e vários outros «Munos» insubmissos e rebeldes e impondo-lhes multas, depois de vários combates e escaramuças, em que sempre alcançou êxito.
Entre os régulos castigados, figuraram o Corropa e seus subordinados, depois do que a coluna regressou a Morna. A «Chaimite» cooperou eficazmente na parte das operações realizadas no litoral. Entretanto o “Farelay» e outros régulos, na ausência do capitão-mór e da sua força, pretendem atacar o Parapato, seguindo contra ele uma coluna do comando do tenente Cunha, que os repele, prosseguindo depois o capitão--mór, com autorização do governador, na perseguição das gen­tes aliadas do «Farelay», estabelecendo combate várias vezes e sempre castigando o inimigo.
      Até princípios de 1906 (M. de Amorim) não houve propó­sitos de realizar ocupação: foi em princípio desse ano que o Governador Geral (João de Azevedo Coutinho) que havia saído de Lisboa em 1905, com a firme intenção de liquidar o vergo­nhoso e deprimente estado de rebeldia e insubmissão dos povos do distrito de Moçambique principalmente da Capitania-mór de Angoche, onde o assassínio de um oficial e mais dois brancos (tenente Almeida, engenheiro Pais de Almeida e sargento Pita Simões) estava ainda por castigar, tendo escolhido para governador do distrito o arrojado Massano de Amorim prático nas campanhas africanas isto é, tendo encontrado o homem preciso, resolveu em uma conferência havida em Lourenço Marques que se dominasse a parte (grandíssima parte) insubmissa do dis­trito, e se realizasse a sua ocupação efectiva e eficaz.
Rendido no seu posto, mais tarde, quando ministro da Ma­rinha e Ultramar, fez acabar de cumprir o programa e plano estabelecido para Angoche, por uma força comandada pelo mes­mo governador do distrito, Massano de Amorim.
Nunca até então descançara o Farelay, repetindo desacatos e insultos, rapinas e ataques.
Muito se falava em 1905 na Província de Moçambique nos processos de penetração e ocupação preconizados inicialmente por Mousinho, como a melhor forma de impor a submissão aos rebeldes do distrito do norte. Dado, porém, um conhecimento mais aprofundado do carácter e hábitos dos indígenas daquelas regiões, dos seus usos e sistemas de combate, pareceu conve­niente aos presentes à referida conferência, modificar esse pro­jecto, tanto mais que" era conhecida a opinião concordante dos dois ilustres oficiais de Estado-Maior e insignes coloniais Tomaz António Garcia Rosado, que fora governador geral interino da Província, e Eduardo Ferreira da Costa, que fora governador do distrito de Moçambique, e ferido no combate de Calaputí, quando andava empenhado na sua ocupação.
     Depois da saída de Mousinho algumas vezes se pensara nessa ocupação, porém nunca se realizou, possivelmente por falta de recursos, e também porque para dirigir operações dessa natureza tornava-se indispensável um homem muito especial, dotado de qualidades de inteligência, decisão e valor, com gran­de prática dos tão diferenciados processos de guerra africana.
É necessário lembrar de facto que os combates no norte da província se não revestiam aquele carácter impressionante e imponente dos ataques em meia lua, em que a disciplina do fogo e uma firme coragem resolviam a crise em minutos, ou em pou­cos quartos de hora, decidindo-se e derimindo-se a questão entre os nossos disciplinados e corajosos soldados, e os não menos valorosos mas ingénuos vátuas e landins que nos carregavam a peito descoberto e em massa profunda, de relativamente fácil destruição pelas armas modernas — assumiam, contudo, ca­rácter de grande dificuldade e perigo, porquanto a guerra de ciladas e de emboscadas, ou os ardis de guerra, eram de temer. De resto haviam eles já sido bem experimentados em todas as acções e mesmo nos desastres em antigos combates contra os namarrais e matibanes, nos combates da Mugenga e do Calaputi em tempos recentes, como na guerra de embuscadas e das aringas na Zambézia, nos tempos ominosos dos Bongas e de Massangano, dos Macololos no Chire; da revolta do Massingire, da Maganja da Costa, Barué e outras.
      Quando o Governador Geral João de A. Coutinho assentou definitivamente no projecto de ocupar o distrito de Moçambi­que, era governador local uma excelente pessoa, mas que pela sua idade e temperamento era incapaz de realizar o esforço preciso e dispender as energias necessárias para dar execução ao plano. Recorreu, então, como ficou dito, ao capitão de artilha­ria Pedro Massano de Amorim, de cujas qualidades de cora­gem e inteligência estava bem seguro, e que havia servido às suas ordens na Zambézia como comandante militar superior de Tete, e como comandante da artilharia na campanha de 1897 na Zambézia, e de 1898 na Maganja da Costa, e fê-lo nomear governador do distrito de Moçambique.
Chegado este a Lourenço Marques chamou-o o Governador Geral a conferência conjunta com o chefe de Estado-Maior o ilus­tre e experimentado colonial capitão de artilharia Alfredo Bap­tista Coelho, que tinha governado Moçambique no tempo de Mousinho e conhecia admiravelmente o que era necessário fazer; o Governador da Zambézia, o distinto primeiro tenente da Ar­mada Ernesto Vilhena, para se assentar na forma de realizar a ocupação dos dois distritos, ficando resolvido que a penetra­ção em territórios insubmissos ou rebeldes se fizesse por linhas perpendiculares à costa com colunas suficientemente fortes, mas dotadas da precisa mobilidade. O sul do distrito de Moçam­bique deveria, se preciso fosse, ser invadido por colunas com núcleos de força regular, de cipais zambezianos, operando em conjunção com as colunas que o governador de Moçambique haveria de mobilizar, visto que o Governador Geral a-pesar dos seus desejos não podia por exigência de serviço ir pessoal­mente tomar o comando das forças que entravam em operações.
A campanha seria levada a cabo como se acordou, com as forças existentes na província, reputadas suficientes, e que seriam comandadas por alguns oficiais dotados de real valor, veteranos das últimas campanhas e por outros embora novos, mas cheios de aquele desejo de servir que assegura sempre o êxito honroso.
Tratou-se no entanto de completar os efectivos das com­panhias indígenas com elementos recrutados entre os negros de raças guereiras, e preencheram-se os quadros de oficiais e sar­gentos com elementos idos da Metrópole, fazendo-se concentrar em Moçambique armamento e munições, gado, artilharia, etc.
Para facilitar os serviços da campanha e a execução desta organização das forças, etc., foi o limite norte do distrito da Zambézia, que era o Tejungo ou Muniga, levado provisoria­mente para o norte, para o curso do Ligonha.
Rendido o Governador Geral Coutinho, em princípios de 1907, o ilustre colonial Freire de Andrade adoptou o seu modo de ver, e o plano de ocupação escolhido.
No seu relatório sobre a ocupação de Angoche diz Massano de Amorim: “Para castigar os crimes e torpezas, rebeldias e dislates do gentio do Larde e M'luli, Mugovola e Imbamella era necessário, era indispensável e urgente, proceder à ocupação de Angoche”... e mais:  «A breve notícia histórica da região de Angoche mostra de sobejo a necessidade instante que havia de inflingir um severo castigo aos rebeldes do Larde e M'luli, da Imbamella e Mogovola e aos partidários do Farelay, que demoravam na Selege, M'lay e Muicanha (Capitania-mór de Angoche).
“Os roubos e depredações frequentes de toda esta gente, os crimes que se traduziam por assassinatos de europeus que se aventuravam pelas terás do Imbamella e do Mugovola, e dos nossos cipais que passavam próximo às povoações do Ibrahimo, as guerras Constantes... o arrojo de trazerem aquelas guerras dentro mesmo da vila do Parapato, o desaforo do Farelay a dois quilómetros de António Ennes, lançando um imposto aos comerciantes... as ameaças deprimentes feitas aos capitãis-móres e as resposta atrevidas dadas por alguns dos chefes às intima­ções e ordens dimanadas das autoridades militares, tudo isso exigia uma severa repressão, e um exemplar castigo... A dúvida e desconfiança dos naturais a respeito da nossa autoridade mais se acentuava...
«Não bastava, porém, uma manifestação de força, momentânea como já se fizera uma ou outra vez... Era necessário que a acção das nossas tropas no interior, sobretudo nos pontos que se haviam tornado os principais focos de rebelião se manifes­tasse, não só castigando as faltas e crimes praticados de há muitos anos para cá, mas que se exercesse demorada e per­sistente, tornando efectiva a ocupação militar como ponto de partida para a instalação de um determinado regime adminis­trativo.»
Outra razão de peso existia para que a ocupação de Angoche se completasse e fosse levada a cabo logo que a sua conquista se assegurasse.
A realização do plano estabelecido em 2 de Maio de 1906 em Lourenço Marques, sobre o qual haviam sido dadas ordens verbais, na ocasião, ao respectivo governador do distrito, con­firmadas por escrito em 16 de Julho, foi logo iniciada, e em grande parte levada a cabo, nesse ano, e no seguinte. A parte do distrito da Zambézia que faltava ocupar, foi-o sem dificul­dade, pelo ilustre oficial de marinha Vieira da Fonseca e os territórios das capitanias-mores do norte de Moçambique também.
Entre essas zonas, dominadas e ocupadas efectivamente fica­vam encravadas, rebeldes e insubmissas na sua quási totali­dade, como temos visto, as populações da capitania-mór de Angoche.
O plano primitivo sofreu contudo algumas alterações. Le­vado a cabo na sua primeira parte (24) a segunda e a mais difícil decerto, só se realizou em 1909 e 1910. Era a que respeitava a Angoche.
Os trabalhos preparatórios para a ocupação de Angoche ha­viam sido iniciados por Massano de Amorim e seus auxiliares, logo à chegada a Moçambique em Maio de 1906, montando-se os serviços de informações, etc., e o estudo da documentação encontrada nos arquivos respeitantes ao país desde «Sangage» ao «Ligonha».
As capitanias-mores da «Macuane» e do “Mossuril», porém, houveram de ser submetidas e ocupadas primeiro, e as coisas entraram em estagnamento quando Massano de Amorim foi chamado a Lisboa para prestar provas para o posto imediato, embora ele tomasse disposições para que na sua ausência se fossem adoptando medidas que facilitassem uma acção futura na Capitania-mór de Angoche se ela fosse resolvida.
Freire de Andrade adoptava como seu o plano que eu e os meus colaboradores em 1906 havíamos delineado, e, como já disse, quando fui ministro da Marinha e Ultramar dei novo im­pulso à sua execução, resolvendo que as operações do distrito continuassem então em Angoche.
Massano, ao partir para Lisboa, deixara recomendado o reconhecimento do Ligonha, mas no seu regresso à África (diz ele no seu relatório) foi encontrar grande parte dos trabalhos de Cunha e Casqueiro (25) com respeito ao «Morla-Muno», gran­de do Imbamela, perdidos, e o «Morla» retraído e metido com o «Guernéa» que fora seu e nosso figadal inimigo.
      Depois de eficazes trabalhos do tenente Falcão foi pessoal­mente Massano a Angoche e conseguiu chamar à ordem aquele poderoso chefe. Por essa ocasião (Novembro de 1908) já muito se falava na guerra, e o governador requisitava para desem­penhar o cargo de capitão-mór o tenente Dâmaso Marques, vete­rano que contava larga permanência na província e que servira com distinção nas campanhas de 98 e no Barne em 1902, e a quem dava instruções para construir uma linha telegráfica e estrada entre António Ennes e vários postos.
Essas instruções eram dadas prevendo a acção combinada de seis colunas, sendo duas de cipais da Zambézia e quatro partindo do mar ou convergindo das regiões ocupadas de Mo­çambique.
O projecto foi alterado, como se verá. Devido sobretudo à actividade incansável de Dâmaso Marques coadjuvado por Falcão, montaram-se dois postos, o de Mocugone, depois o de Mernezeze, construído pelo capitão Silva Leal, comandante da 6.ª companhia indígena, enquanto o alferes S. Bicho Ruivo reconhecia o Ligonha até Moguiquisa.
Como acima dissemos, o governador do distrito pensava empregar seis colunas de tropas na pacificação de Angoche.
     O governador geral comunicou esse projecto ao ministro (26), que, dadas várias dificuldades de ordem política, lhe recomen­dou, em telegrama, que executasse o plano de ocupação sem grandes aparatos guerreiros, que se não coadunavam com os recursos existentes e pareciam exagerados, (Massano de Amorim, Relatório da ocupação de Angoche) o que, dada a ami­zade, estima e consideração que havia do ministro para com Massano, este interpretou e executou como devia. De resto, os recursos militares do distrito não poderiam ser aumentados de modo a constituir 6 colunas bastante fortes e independentes. No entanto, as forças disponíveis da província deviam ser todas mandadas para Moçambique, e não poderia contar com o envio de forças da metrópole. Isso mesmo se dera já a quando da expedição ao Barué (1902), realizada com as forças que havia na província e mais uns 8o marinheiros da Armada, desembar­cados dos navios de guerra, e o próprio Massano reconhecia, pois disse no seu relatório, «a impossibilidade que reconheci em fazer seguir a ocupação pelo Ligonha e pelo M'luli, como acor­dara em Lourenço Marques, simultaneamente com a penetra­ção a norte da Chinga, manifestei-a logo em ofício de 6 de Agosto de 1906 ao Governador Geral. (27)
“A falta de tropas com que sempre lutei, não permitia distrair para o sul os necessários efectivos... e a natureza guerreira dos povos rebeldes exigia que esses efectivos fossem de molde a mantê-los em respeito», (28) E no seu ofício de 8 de Agosto de 1908, ao Governador Geral: «Já agora me parece conve­niente levar o resto da ocupação até à fronteira oeste do dis­trito sem forças em som de guerra... — outro tanto não digo dos Inhamelas, e estou certo que será preciso ir ali com forças organizadas para bater os chefes rebeldes».
     Passou então, em vista de recomendação do ministro, a preparar duas colunas apenas (visto não contar com as duas zambezianas), em vez de seis, que realmente representariam um enfraquecimento de efectivos de todas, e alcançou o objec­tivo desejado, evidenciando-se assim que o ministro se não enganara nem na plena confiança que depositava no coman­dante das forças, nem tão pouco em preferir o plano em que se realizava uma maior concentração da força nas duas colunas, que assim operaram com um sucesso completo. Essas colunas, que passaram a ser organizadas, tinham em vista efectivar o nosso domínio, criando os necessários postos militares depois de dominar os insubmissos e rebeldes, castigando os chefes com todo o rigor, procurar abrir os caminhos do sertão para os portos do sul do distrito.
Uma dessas colunas seriam comandada pelo próprio gover­nador do distrito, e partindo do posto militar do Liúpo ope­raria na região entre a linha Moginquale-Corrane e Boila ou Buela, e procuraria castigar a gente do Farelay nas terras de Selego e M'lay, depois o régulo Cobula-Muno em Mugovola, e trataria de estabelecer postos militares na linha de Boila-Murrupula.
A 2.ª coluna, que seria comandada pelo veterano e capitão-mór de Angoche, tenente Dâmaso Augusto Marques, teria como objectivo o castigo dos rebeldes até ao Guarnea e Larde, a ocupação do Imbamela e do Matadane, inflectindo depois para o vale do Ligonia ou Ligonha, onde montaria postos a partir do existente em Morna. Devia esta coluna operar em completo entendimento com a do governador do distrito.
Determinou este que em Boila e Liúpo, no Parapato e Mo-ginquale, fossem construídos barracões para formarem centros de abastecimento, tendo sido o ferro, madeira e outros materiais transportados por mar, de Moçambique.
O efectivo das forças das colunas eram respectivamente: 1ª coluna, uma bateria de 7 c. de 4 peças, 20 cavaleiros, duas companhias de infantaria indígena, os correspondentes serviços administrativos e de saúde, o que perfazia uns 450 homens de força regular: acompanhariam a coluna cerca de 1.000 cipais de vários xeques e régulos fiéis, e faziam-lhe serviço uns 1.500 carregadores.
Os efectivos da 2." coluna seriam: uma secção de artilharia, infantaria, serviços administrativos e de saúde, em força de 220 homens, e mais 1.000 cipais e uns 600 carregadores.
Tinha-se pensado, como se assentara em 1906, em utilizar os cipais da Zambézia, e diz Massano no seu já citado relató­rio: “...Mas o emprego dos cipais queria-o eu como o tinha visto (29) sempre fazer, e como o fizera já; com um núcleo de tropas regulares, para não exorbitarem na vitória, ou não com­prometerem gravemente situações em probabilidade de derrota».
Desejava-os no número de 3.000 com um núcleo de força regular operando nas proximidades de Môma, Niango até Macogone.
Não foi possível, porém, utilizar os cipais, por dificuldades surgidas no distrito da Zambézia. (citado relatório, página 210).
As tropas, destinadas à campanha de Angoche, iam arma­das de «Kropatcheks», os cipais com as «Sneyder»: para aque­las havia 400 tiros por arma, e para estas 100. As bocas de fogo iam municiadas com 50 cartuchos cada; mas havia mais no depósito de material de guerra na cidade de Moçambique.
Massano de Amorim, que era, incontestavelmente, um des­temido chefe, embora exigente porque também tudo de si exi­gia, arrancava do Liúpo para Napaniondo em 13 de Junho de 1910, fazendo percorrer às suas tropas esses 32 quilómetros sem novidade.
Bivacando, começou a apresentação de régulos, e alguns como o Napaniondo, Malisira Múcüra, apresentaram-se com os seus homens armados, uns 150, para prestarem serviço na coluna. O comandante procura tomar informações sobre o Farelay e seu paradeiro, conseguindo obtê-las.
Em 15 de Junho continuou a coluna a sua marcha, atin­gindo Mutuguti, nas terras de Mahiva, sendo o final do per­curso feito debaixo de pesada chuva.
Continuou a apresentação de régulos e soube-se que os alia­dos, ou amigos do Farelay, se conservavam na espectativa.
Encarregado em 16 o bravo e incansável capitão-mór da Macuana, tenente Neutel de Abreu, de seguir com 5 europeus mais, três sargentos, um cabo e o chefe de Ampoense, com os cipais e irregulares, em número de 1.570, a talar e bater os régulos rebeldes Naurame e Uarica, conseguiu o destemido ca­pitão-mór fazê-lo com o maior êxito, travando, junto das povoações dos rebeldes, um combate de que Neutel dizia: «Descrever um combate desta natureza torna-se difícil... porque se a de­frontar-se connosco temos um inimigo selvagem, a acompanhar-nos há um pessoal bem pouco conhecedor da disciplina». O inimigo sofreu muitas baixas e alguns prisioneiros se fizeram, custando a poupá-los, por terem morrido dois cipais que haviam bebido água propositadamente envenenada pêlos rebeldes.
Em 18 partiu a coluna para o posto de Boila, continuando a apresentação dos régulos em grande número.
     Nesse dia adoeceu gravemente, com pneumonia, o capitão--mór do Mossuril e comandante da infantaria, capitão José Au­gusto da Cunha, vendo-se o comandante assim privado de um colaborador precioso pelo seu valor e pelo seu conhecimento da capitania-mór, onde já prestara serviços relevantes, como os prestara na Zambézia, em campanha que tive a honra de dirigir.
A acção do comandante do posto de Môma pelo vale do Ligonha, no entretanto, fazia-se sentir eficazmente, pois avas­salara régulos no interior até em frente do posto do Alto Ligo­nha, no distrito da Zambézia, e até Murrupula, envolvendo assim os rebeldes pela rectaguarda.
De Boila, a coluna seguiu a 20 com destino a Nampata, bivacando nesse dia em Chilabasse, e em 21 no rio Luazi, e em 22 em Namezeze, marcha difícil pela má qualidade do caminho, de mato e de ravinas, terrenos lodosos e ribeiros que se atra­vessavam com custo.
Havia notícia de que os régulos rebeldes tinham a sua gente reunida perto, e de facto, depois das tropas bivacarem pró­ximo de Nampoto, no rio Nateze, onde o mato era menos denso, foi o quadrado formado pela tropa atacado pela gente do Cobula e outros régulos mugovolas seus aliados, e que já haviam atacado um reconhecimento em força dirigido por Neutel. Atingiu o fogo grande violência, portando-se a nossa gente sempre com firmeza (30), o que não impediu que a gente do Mugovola repetisse os seus ataques aos irregulares que desafrontavam o quadrado.
No dia 24 pretendeu o comandante atingir as pedras do Nampoto, repetindo-se os ataques à força por seis vezes, com grandes baixas para o inimigo, e tendo nós 12 feridos, dos quais um sargento branco e os outros praças indígenas, cipais e auxi­liares. Em 25, um destacamento mandado reconhecer as pedras, foi atacado frouxamente, mas pronunciou-se novo ataque con­tra as forças do quadrado no dia 26, havendo um branco fe­rido e mais nove negros, soldados e auxiliares, e tendo o inimigo muitas baixas, entre as quais as de alguns grandes, sendo um deles o sobrinho e herdeiro do Cobula.
A apresentação dos régulos acentuou-se desde esse dia mais numerosa, e a coluna, pode dizer-se, que daí por diante não encontrou mais resistência. Em 28 estiveram os auxiliares e a gente dos régulos apresentados abrindo caminhos para ligar pontos importantes com o posto fortificado que ali ficou mon­tado, e em que se instalou o comando militar da Mugovola, em que foi investido o capitão Leal, que muito se distinguira durante as operações.
Em 29 seguia a coluna para Maca, e em 30 chegava ao rio ATluli, onde perto daquela povoação foi construído um posto, e mandado construir depois outro em Mamitil, seguindo depois para as terras de Murreheria e de Calipo, onde foi montado mais outro posto e estabelecida comunicação com Murrupula pelos auxiliares de Neutel.
Em 19 de Julho estava a coluna de regresso a Boila, sendo desarticulada para uma parte dos seus efectivos ir reforçar a 2.ª coluna, do comando de Dâmaso Marques.
Já dissemos que este oficial, inteligente e decidido, com larga permanência em África, era um elemento de grande valor, o que Massano de Amorim reconhecia, dando-lhe o comando da coluna que, com a do seu próprio comando, devia cooperar no avassalamento e submissão dos rebeldes de Angoche.
Iniciou a 2.ª coluna as operações no mesmo dia em que o fazia a primeira, mas a morosidade na apresentação dos irre­gulares fez demorar a sua acção. Só no dia 30 de Junho con­seguia, depois de nos dias anteriores se terem apresentado
Em 28, apresenta-se um dos mais fortes e importantes re­beldes — o Guernéa, que seria desterrado com o Ibrahimo. No dia 1 de Agosto mandou o capitão-mór gente do Parapato e Etite capturar o Ibrahimo, por lhe constar onde ele estava refu­giado, e assim, foi preso um dos mais temíveis auxiliares do Farelay, o sultão Ibrahimo do M'luli, inhabaco de Angoche, mas o mais célebre, temido e atrevido rebelde, o Farelay, que se considerava sultão de Angoche, refugiara-se para o sul, nos limites quási do distrito e da capitania-mór.
Repelido de povoação em povoação e de terras em terras, o activo comandante do posto de Môma, o alferes Bicho Ruivo, mandou-o prender por uma pequena força, que lhe deitou a mão e o levou ao posto. Foi depois deportado para a Guiné. Em Setembro foi preso o Muhogo, que mandara assassinar o tenente Fonseca e Almeida em 1897 e era apreendida a peça de 7 cm. que fora abandonada em Boila, quando se tentava a primeira instalação do posto. O Muhogo era mais temido na Imbamela do que o próprio Guernéa. Foram as terras per­tencentes ao Ibrahimo e ao Guernéa divididas pêlos régulos e xeques fiéis, ficando sob o mando do Morla-Muno e do Etite--Muno a maior parte delas.
Em resumo: em cinco meses, Massano de Amorim e os ofi­ciais seus auxiliares fizeram construir quási 500 quilómetros de estrada, muitos dos quais em terras até então insubmissas, ficando em construção mais cerca de 200 quilómetros, devendo notar-se que essa construção foi realizada por pretos até então insubmissos.
As terras do Farelay,  Selege e Narrica ficaram imediatamente pagando imposto de palhota, iniciando-se logo o recen­seamento das palhotas na região da capitania-mór,
As nossas tropas percorreram 450 quilómetros por caminhos (relatório de Massano de Amorim) nunca dantes percorridos por tropas do governo, sustentaram oito combates, mais ou menos renhidos, com os rebeldes, instalaram-se 10 postos for­tificados; recebeu-se a apresentação de inúmeros chefes, fize­ram-se prisioneiros os chefes principais e os mais temidos: Farelay, Ibrahimo, Guernéa, Muhogo e o Muhova. Abriram-se francamente as portas ao comércio do Parapato, vingaram-se as mortes do engenheiro Pais de Almeida, dos oficiais e praças que serviram às suas ordens. Diz o governador, e nós com ele: «Valentes e destemidos nos combates, resistentes e sofredores nas marchas e desconforto dos bivaques, bem mereceram da Pátria”. Nós acrescentaremos que o elogio deve ser muito sin­gularmente tornado extensivo ao chefe, que pelo seu provado valor, inteligência e resistência física, obteve com os nossos valorosos soldados de Portugal os magníficos e brilhantes resul­tados que para a província de Moçambique e para a Nação trouxe esta segunda e última conquista de Angoche.


(1) Das obras destes distintos escritores são tirados muitos e impor­tantes elementos desta narrativa.
(2) Não entraremos aqui em detalhes sobre as famílias nobres em que se filiam os mujôjos de Angoche, descendentes de árabes puros, o que se encontra proficientemente descrito no livro «Angoche» de Eduardo Lupi. As três casas de «inhabacos» (nobres) são: a de inhaitide, a de m'bilimi e de inhamilala. A do inhamandare era a do herdeiro do  sultão Xósa, que estava cm Angoche (?) quando Vasco da Gama aportou a Moçambique.
(3)    Massano de Amorim — Relatório da ocupação de Angoche.
(4) Escritores de probidade e envergadura dos Generais Massano de Amorim e Teixeira Botelho falaram em terras do país dos macololos, como tendo sido o teatro do desastre de Mussá. Há equívoco: a derrota deu-se em 1855 época em que os macololos não existiam no Chlre para onde foram mandados pelo governador de Tete só em princípios de 1865.
(5)    Mussá-Quanto tinha então o nome de guerra de «Namuali».
(6)    Dos soldados que com ele foram mortos e ainda outros ultrajes.
(7)    Batalhão ou companhia de cipais comandados pelo cazembe.
(8)    Brandão  foi depois  cazembe.
(9)    Condo, em linguagem de Sena, tropa de guerra.
(10)    O Mateus  ao  contrário  do  que muitos  afirmam era filho de  uni mulato e de uma canarlna, e não filho de canarim e preta.
(11)    Sanzôro, pequena aringa para  proteger gente em ocupação provi­sória  do  lugar em  que  é  construída.
(12)    Batuque pequeno especial, usado em guerra.
(13)    A aringa da Mnganja da Costa   (Errive)  a última que  subsistiu na Baixa Zambézia era em toda ela conhecida entre os pretos, pela «aringa».
(14) As autoridades que em meados do século passado guerrearam a escravatura (Carlos Roma Machado) eram muitas vezes chamadas a Por­tugal, quando não falsamente acusados de delitos, assassinados ou envene­nados, tal era a maçonaria dos negreiros... (Ofício de 4 de Janeiro de 1842 assinado por A. Pinto de Magalhãis, secretário do governo).
(15) A prisão de Mahera deu-se então, segundo Eduardo Lupi. Segundo outras informações dignas de crédito a prisão dera-se anteriormente. A Mahera já então não era nova e tinha filhos homens.
(16)    Entre os quais a irmã, a Mahera que se dizia ter sido linda.
(17)    Mussá   fizera-se   proclamar   sultão   por   o   herdeiro   legítimo   do Hassam-Issufo, se ter feito com os portugueses.
(18) Morla, designação porque são conhecidos todos os chefes de uma grande tribu, Macúas Imbamélas.
(19) Em 1886 estive cercado no Infusse numa aringa que fizera cons­truir, com o alferes Lopes Pereira e quatro marinheiros da guarnição do hiate «Tungue» que eu comandava, vinte soldados e alguma gente do xeque Âbdúla; repelimos depois de três dias de cerco, a gente do Ussene e do xeque deposto «Chêa Sualé», seu aliado.
(20) David Rodrigues — Ocupação de Moçambique; Massano
(21) O distrito de Quelimane limitava até 1906 com o de Moçambique no Tejungo: nesse ano motivos de ordem política fizeram que o então Governador Geral de Moçambique fixasse o limite comum no rio Ligonha.
(22)  Ver o relatório de Massano de Amorim sobre a ocupação de Angoche.
        (23)   Possuo curiosa  correspondência a este respeito.
(24) A ocupação do norte do distrito de Moçambique foi uma acção brilhante do inteligente e valoroso Massano de Amorim e dos seus cooperadores entre os quais havia homens do valor de Gomes da Costa, José Augusto da Cunha, Neutel, Dâmaso Marques e outros.
(25)    Actual governador do Niassa, oficial enérgico e valoroso que serviu comigo no Barué e depois.
(26) Era eu então ministro da Marinha e Ultramar; conhecedor da província, e tendo sido eu próprio quem chamara Massano para fazer a ocupação de Moçambique, não oscilei em indicar-lhe o que devia fazer, e que obteve o resultado desejado.
(27) Pouco tempo antes de eu deixar o Governo Geral de Moçambique e embarcar para a Europa.
(28) As forças totais de que o governador dispunha eram, além do pessoal dos comandos e serviços auxiliares, duas baterias de 4 peças cada, de 7 centímetros, duas peças «Hotchkiss», um pelotão de cavalaria, cinco companhias no seu máximo efectivo, além de um corpo de cipais (200) e de 5.000 irregulares (chegaram a ser 10.000).
(29)    Campanhas da Zambézia 1897 e 1898

(30)    Os  pretos  de Moçambique bem comandados  como eram então, e têm sido noutras ocasiões, dão óptimos soldados, como se sabe.

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