XIPIKIRI
A
professora bamboleou o equador até ao quadro. O pano leve da bata
branca esvoaçou. Estendeu o braço delicado, um pau de giz prolongava-lhe
os dedos. Rodou o pulso sobre o quadro de fundo preto, a caligrafia
redonda enrolou-se. A bata abanava ao ritmo da escrita. Escreveu a data e
depois: “Sumário: Aparelho Reprodutor...”
“...
Feminino”, deduzi, impelido pelos instintos da idade. Estava na idade
de espreitar o mundo pelos buracos da fechadura de modo que, aquele tema
assim, abertamente, sem os parêntesis da recriminação, sem as
fronteiras do pudor, encabulava-me. Meu gesto secou sobre o caderno.
Parei de escrever, congelado, como um computador sem memória.
A professora, de giz na mão e apagador noutra, pôs-se a desenhar ao mesmo tempo que limpava o quadro, com uma técnica multitask,
parecia um limpa-brisas de gestos largos, que vai molhando o vidro à
medida que limpa. Trocou o giz branco por outras cores que iam tornando o
desenho mais legível. Primeiro fez uma forma fusa, muito feminina.
Depois arredondou. Depois começou a florear. Depois fez-lhe umas trompas
e o desenho foi crescendo. Mais do que um desenho bonito, era um mapa
com muita biologia. Mas não se parecia em nada com o que eu vira pelos
buracos das fechaduras.
Olhei
de soslaio para os lados, tentando, nas colegas mais próximas, um raio X
fortuito que ajudasse a interpretar o desenho. Percebendo a minha
distração a professora chamou-me, com secura do giz na voz e a régua
disciplinadora de cinquenta centímetros por perto. Recompus-me na
carteira. Eu gostava quando a professora me chamava à atenção. Às vezes
fingia-me distraído para ela me chamar à atenção. Outras vezes eu errava
de propósito as respostas só para ela segurar na minha mão e, com o pó
de giz nos dedos, acariciar-me algumas reguadas. Havia um édipo tal que
eu parava de escrever e ficava quieto, ela interrompia a explicação,
bamboleava a bata branca com cheiro à pó de giz, colocava a mão na minha
testa e perguntava: “dói a cabeça?”
O
desenho estava terminado, deduzi, porque ela começou a fazer aqueles
riscos que preparam o desenho para receber a legenda. Escreveu os nomes
estranhos daqueles órgãos. Nenhum se assemelhava aos calões que eu
conhecia. A professora, segurava o pau de giz com a delicadeza que
lembrava a minha mãe a segurar a colher de pau.
– Schhh!!! Silêncio.
No
final do desenho pousou o giz como a minha mãe pousava a colher de pau
para se entreter nos temperos. Virou-se, disse o “schhhh!” disciplinador
e começou a explicar, com gestos redondos: “Vamos estudar o Órgão
reprodutor das plantas. Isto é uma flor...”. Apontava para a legenda no
quadro, com a régua de cinquenta centímetros e repetíamos: “androceu,
gineceu, estame, pecíolo, pétala, sépala...”
Senti
um misto de alívio e decepção ao perceber que o desenho não era aquilo e
sim uma flor. Aquele tema seria constrangedor mas era apetecível. No
fundo deu no mesmo porque afinal as mulheres carregam consigo uma flor.
Desde aquela aula comecei a olhar para as elas com os mesmos olhos de
mel que a abelha olha para um jardim.
“Atenção
meninos”. A professora corrigia sempre as nossas matreirices. Ela
ensinava muitas coisas. Foi ela quem me ensinou a desenhar, educar o
risco, promover-lhe à caligrafia e chamar-lhe à pontuação para
disciplinar as frases. Que a primeira máquina de calcular é contar os
dedos da mão. Foram dela os puxões que me tornaram as orelhas elásticas e
ouvido atento. De braço em riste, com o pau de giz a prolongar-lhe os
dedos, eu podia jurar que aquela estátua que segura uma chama, em Nova
Yorque, era imitação da professora.
“Prestem
atenção, meninos”. A professora não era aquela estátua mas merecia uma
bem grande, no final duma avenida larga ou no centro duma praça redonda,
com muito chão, que as pessoas circulassem e a vida acontecesse, que
despoletasse um mercado expontâneo e uma terminal de chapa onde o
cobrador possa rasgar a cidade a gritar pelo destino: “Praça dos
Professores” desfraldando a voz ao vento, como uma bandeira com muita
história.
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