Preços disparam numa das economias de crescimento mais rápido da África Austral e que agora se confronta com nada menos do que três crises simultâneas
Se fosse mais um dia como os outros, o mercado de Xipamanine exibiria uma massa ululante de clientes e vendedores, numa sinfonia comercial aparentemente caótica e levantando muito pó mas, na verdade, mantendo tudo no seu lugar. Entretanto, os clientes quase sumiram e os comerciantes vivem agitados, batalhando entre si pelos que ficaram. Até a poeira deu lugar à lama, numa tarde de chuva, ultimamente rara na periferia de Maputo.
É neste cenário sombrio que Marta Jorge, 62 anos, mais de metade em Xipamanine, confessa a sua desolação num dos maiores mercados informais da capital moçambicana: “O dia está quase a acabar e ainda não vendi nada”.
Entre garrafas de óleo e sacos de açúcar e farinha, a comerciante explica como a sua vida se complicou desde que os preços nos armazéns de revenda subiram. Uma caixa de óleo que comprava por mil meticais (19 dólares) sai agora a 1.300 (25) e um consumidor que há poucos meses levaria uma garrafa de cinco litros por 230 meticais (4,5) terá agora de desembolsar 350 (6,8). Mais de metade dos 23 milhões da população moçambicana são considerados pobres, a maioria vive de agricultura familiar de subsistência e, dentro do emprego formal, o salário mínimo começa num quase nada de três mil meticais (60 dólares).
A espiral de preços desde o final do ano passado já teve consequências no negócio de Marta Jorge, que alugou a maior parte da sua barraca a um imigrante nigeriano. “Vivo com cinco netos no [bairro periférico] Chamanculo e só assim garanto que eles não passam fome”, diz a veterana de Xipamanine, entre dezenas de vendedores de bens alimentares e também de roupa, cuja venda informal é conhecida ironicamente como “calamidades”.
De uma assentada, Moçambique experimenta três crises ao mesmo tempo, traduzidas por uma desvalorização vertiginosa do metical face ao dólar – que chegou a atingir 70% em novembro de 2015 para depois recuperar para os 40% no final do ano -, uma seca no sul e centro do país, afetando já mais de 350 mil pessoas e ameaçando cerca de 1,7 milhões de insegurança alimentar, e ainda confrontos militares entre Governo e Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), com consequências já verificáveis no investimento e na circulação de pessoas e bens.
Quando se tornaram inegáveis os primeiros sinais de arrefecimento de uma economia que, nas últimas duas décadas, cresceu acima dos 7%, o Presidente moçambicano aproveitou uma ocasião festiva – a gala dos 20 anos do Millennium bim, o maior banco do país – para admitir, em outubro e pela primeira vez, que o metical estava exposto “às intempéries de uma conjuntura adversa” e que o assunto era sério.
Alertando a audiência que não ia fazer “o discurso habitual”, Filipe Nyusi deu conta à elite financeira de Maputo da forte depreciação do metical face às principais divisas, descida da cotação das matérias-primas que interessam a Moçambique (energia, gás, açúcar, algodão e alumínio), agravando a balança de transações correntes, já de si estruturalmente deficitária, e ainda redução da ajuda externa e do investimento estrangeiro e aumento da inflação.
O Índice de Preços ao Consumidor – que mede as transações nas três principais cidades (Maputo, Beira e Nampula) -, registou em fevereiro uma variação de 2,24%, ditando o aumento da inflação homóloga e média anual para 12,18% e 4,95% respetivamente, perigosamente próxima, logo no primeiro trimestre, dos 5,6% previstos no Orçamento do Estado.
Fora da formalidade dos números, vendedores e clientes de Xipamanine dão uma noção concreta do substancial agravamento de preços na economia real: uma lata de sardinhas que valia 20 meticais (40 cêntimos de dólar) passou para 30 (60 cêntimos), um quilo de açúcar subiu 20 meticais. “Alguns clientes já preferem comprar em grandes quantidades nos armazéns em vez dos mercados e a grande pergunta é como vamos sobreviver sem o pouco dinheiro que ganhávamos aqui”, inquieta-se Edma Issufo, enquanto atende um dos poucos fregueses do dia.
O cenário repete-se nos corredores das grandes superfícies: “Um saco de arroz de 25 quilos estava, há um mês, a 840 meticais (16,5 dólares) e agora custa mais cem. “Como é que meu marido vai ter esse dinheiro se o salário é o mesmo?”, questiona Natália dos Santos, uma doméstica às compras no hipermercado Shoprite da Matola, cidade satélite de Maputo.
Também as grandes distribuidoras estão a ressentir-se da subida de preços, quando a África do Sul se mantém como o principal fornecedor de bens e se confronta igualmente com uma desvalorização do rand e com a estiagem que atinge toda a sub-região austral. “Devido à seca que assola a África do Sul, este departamento poderá registar a rotura de ‘stocks’ de alguns produtos”, lia-se, no início de fevereiro, num aviso aos clientes da secção de frescos do hipermercado Premier SuperSpar, em Maputo, confirmando as perturbações de abastecimento no sul de Moçambique, onde o Governo já deu a atual campanha agrícola como perdida.
A história continua nas lojas de moda, nos cafés, nas casas de vinhos, em todo o lado. Depois de em 2015 Moçambique ter experimentado um período de deflação, os preços começaram a subir de forma imparável no último trimestre, obrigando o Banco de Moçambique a aumentar por quatro vezes as taxas de juro de referência, ao mesmo tempo que anunciava medidas draconianas de proteção monetária para assegurar disponibilidade de divisas.
Apesar da ligeira recuperação dos preços de algumas matérias-primas, o metical continua pressionado pelo dólar, acelerando no último dia de fevereiro para uma depreciação anual de 46,06%, e tornou-se frequente as casas de câmbio não terem dólares para trocar.
O Banco de Moçambique já admitiu que o choque externo, os desastres naturais e a crise político-militar “poderão afetar a meta do Governo de 7% de crescimento económico e de 5,6% de inflação”, confirmando os cenários mais conservadores do Fundo Monetário Internacional.
Paralelamente, o patronato começa a dar sinais de impaciência. “O ambiente de negócios está minado”, defendeu em entrevista ao jornal O País Rogério Manuel, presidente da Confederação das Associações Económicas, falando da degradação da situação política, que já inclui escoltas militares obrigatórias na principal estrada do país para prevenir emboscadas da Renamo, mas também do lugar de Moçambique na cauda no índice do Banco Mundial “Doing Business”.
Enquanto lida com ameaças em várias frentes, incluindo um saldo das reservas internacionais brutas decrescente e uma queda em 2015 de 75% nos projetos de investimento, o Governo pede que se contrarie “o desespero”.
Depois do “flop” do carvão, as decisões finais de investimento nos megaprojetos de gás natural da bacia do Rovuma, norte de Moçambique, tardam em chegar, tal como a esperança de que tenham um efeito multiplicador na restante economia e um pontapé em todas as crises. Até lá, a sobrevivência continua.
No ano passado, o Governo subiu marginalmente – e quase em surdina – os preços de alguns bens essenciais, como o pão ou a energia, mas eventuais aumentos nos combustíveis e nos transportes são, por enquanto, uma especulação que merece todo o cuidado após os motins de 2008 e 2010, sob risco de nova explosão social, como já avisaram alguns académicos moçambicanos.
Na sua tempestade perfeita, a economia da capital moçambicana partilha os mundos paralelos da chamada “cidade de cimento”, rica ou remediada, e o obscuro “caniço”, pobre ou miserável, concentrando a maioria da população e o lendário mercado de Xipamanine, onde, palavra de Marta Jorge, “as coisas não estão fáceis mesmo”.
Henrique Botequilha e Estêvão Azarias Chaviss
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