OPINIÃO
A reacção aos Panama Papers evidencia uma mobilização das sociedades na luta contra a impunidade e na punição de condutas violadoras da integridade social. Paulatinamente afirmou-se nas relações sociais uma dinâmica de reprovação moral, de coerção institucional, que a meu ver manifesta uma nova cidadania económico-financeira, que urge compreender e ponderar do ponto de vista do seu impacto no prestígio civilizacional de Portugal. A dinâmica a que fiz referência é uma consequência do processo de transformação social desencadeado pela crise de 2007/08, e está na origem de um novo contexto social no qual a reputação se afirmou como o mais importante activo de uma entidade.
Vivemos já na era da economia reputacional. Uma das consequências desta transformação cultural é que o impacto dos fluxos financeiros (i)lícitos na licença social de um país, mercado, marca ou personalidade alterou-se, podendo agora reforçá-la ou colocá-la em perigo letal. Isto é devido também ao mal-estar provocado pela revelação de práticas que são sentidas como escandalosas à luz dos valores morais prevalecentes, ou de atentados terroristas, e que fizeram emergir um novo padrão de reacção a situações envolvendo evasão/fraude fiscal, branqueamento de capitais, financiamento do terrorismo ou corrupção.
Em resultado, irregularidades nestes domínios são agora percepcionadas como uma agressão contra a organização social que viabiliza a sociedade como um todo, mas também contra o dever de solidariedade de contribuir na medida da capacidade contributiva respectiva, quando as irregularidades respeitam ao não-pagamento do imposto devido. Em paralelo estes fluxos ilícitos constituem-se como uma barreira ao aprofundamento da integração internacional, sendo a meu ver cada vez mais nítido que terminou a globalização, como a conhecemos até aqui.
Indiscutivelmente a evolução social confirma uma trajectória cuja aspiração de fundo é a recuperação da confiança, e neste sentido valoriza a ligação entre liderança, integridade e responsabilidade i.e., a importância dos Estados e dos decisores actuarem de modo responsável, ou seja com respeito pelos outros, em geral, e pelas boas práticas, em especial, de desenvolvimento sustentável.
Acresce que a comunidade internacional, incluindo Portugal, mobilizou-se na reforma da cooperação à escala global. E sob a égide do G20 e da UE está em implementação um conjunto de reformas de grande fôlego que visam adequar o equipamento dos Estados para lidar com as ameaças à sua segurança e das suas populações, nelas se destacando o combate aos fluxos financeiros ilícitos. O qual vem sendo centrado no fim do laissez faire fiscal através do reforço da transparência, da troca automática de informações, do alinhamento da tributação com o local onde o valor é criado, de novos meios de identificação do beneficiário efectivo (no sentido de uma luta mais eficaz contra os meios facilitadores de anonimato), e de retaliações contra os Estados não-cooperantes.
Assim, e como venho destacando desde 2010, esta área em que a regra foi a da não-cooperação internacional, o que explica a impunidade dos fluxos ilícitos realizados através de montagens artificiais em jurisdições paradisíacas, tornou-se a área charneira da cooperação global. Importando destacar que a reputação de Portugal nesta vertente está infelizmente debilitada. Não estivemos presentes (!) em momentos fundacionais da cooperação internacional referente à transparência fiscal em 2006 e 2009. Não temos rating máximo, estamos em violação dos prazos da troca automática com os EUA, ou com a UE que a pratica desde o início de 2016. Contrastando com Espanha, que é pioneira à escala global, integrada no Grupo dos 5, e tem rating máximo. Ademais, em Junho de 2013, o relatório da OCDE de avaliação da implementação da convenção anticorrupção, destacou que:
a) “O grupo de trabalho está seriamente preocupado porque a implementação por Portugal de punições relativas a corrupção no estrangeiro tem sido extremamente baixa. Apesar das fortes ligações económicas a países minados por severa corrupção, só surgiram 15 alegações por corrupção no estrangeiro desde 2001”;
b) “Suscita igual preocupação que destas alegações não tenham resultado até esta data em um único processo. Várias investigações foram encerradas prematuramente”;
c) “Várias das alegações sobre corrupção portuguesa no estrangeiro envolvem altos dignatários estrangeiros e/ou grandes empresas ou os seus executivos”;
d) “As empresas portuguesas e os media têm um nível alarmantemente baixo de consciência e interesse em lutar contra a corrupção no estrangeiro”;
e) “ Necessitam ser efectuados maiores esforços no sentido de detectar, prevenir e processar branqueamento de capitais por pessoas expostas politicamente, especialmente aqueles de jurisdições com corrupção disseminada e fortes laços económicos a Portugal”;
f) “As missões diplomáticas no estrangeiro em várias instâncias não informaram os procuradores portugueses de alegações de subornos no estrangeiro efectuados por empresas ou indivíduos portugueses que foram amplamente reportadas no medias locais”.
Em 2015, o Relatório da Avaliação Nacional de Risco de Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo apontou que um dos padrões detectados em território nacional, no contexto de alguns investimentos de origem ilícita, consiste no recurso a intrincadas redes de sociedades comerciais, normalmente com ligações a outros países, nomeadamente a centros offshore. Estas redes empresariais e respectivos empresários (em algumas situações, Pessoas Politicamente Expostas ou respectivos testas-de-ferro), são depois utilizadas na condução de múltiplos negócios, de aparência formalmente legítima, mas que na realidade configuram operações de “branqueamento e capitais”.
Estas desnaturadas anomalias minam a nossa reputação internacional. Devido a isto, apelo ao Presidente da República e ao rimeiro-ministro para que atribuam a mais alta prioridade política na implementação da igualdade de todos perante a lei, e que zelem pela célere implementação das modernas tendências e das boas práticas na luta contra os fluxos financeiros ilícitos. Para que, por via do exemplo, o país mereça o prestígio civilizacional de não ser protector dos mais poderosos. Assim corrigindo os maus exemplos dados com as reformas do IRC, do IRS, com os perdões fiscais (RERT), e com os afagos a interesses empresariais que estão na origem de perturbações graves ocorridas na vida nacional.
Advogado e especialista em Direito Fiscal (O.A.)
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