OPINIÃO
Ao que parece, o governo português e a Comissão Europeia já terão chegado a acordo em relação ao Orçamento do Estado para o presente ano. Tal desfecho era praticamente inevitável. Por um lado, em nenhum momento o governo português manifestou a mais leve intenção de contrariar radicalmente as regras elementares vigentes no espaço económico e monetário europeu; por outro lado, escasseava margem de manobra à Comissão para impor uma interpretação absolutamente restritiva dos princípios constantes do Tratado Orçamental. A polémica entretanto travada − com exuberante grau de publicidade − permitiu contudo chamar a atenção para alguns aspectos marcantes da presente fase da nossa vida política que merecem ser alvo de reflexão.
Não é possível a existência de uma união económica e monetária supra-estadual sem que os seus membros se obriguem a respeitar um determinado conjunto de regras comuns. Isso implica necessariamente o acolhimento do princípio da partilha de soberania. No caso concreto do espaço monetário europeu, tal partilha consubstanciou-se desde o início na centralização das decisões de política monetária no Banco Central Europeu e na aplicação de regras fortemente limitadoras da autonomia orçamental de cada Estado-membro. Essa circunstância alterou o campo − e de certa forma a própria natureza − da discussão política tradicional. O que antes se debatia estritamente no plano interno de cada país passou a abordar-se no âmbito mais vasto do espaço europeu. Ora, esta transmutação coloca problemas insusceptíveis de resolução imediata e automática. É natural que durante um largo período de tempo as opiniões públicas nacionais resistam de forma mais ou menos consciente àquilo que são levadas a perceber como uma amputação de democraticidade do sistema decisório. Instala-se assim com relativa facilidade a ideia de que instituições desprovidas da devida legitimidade democrática se sobrepõem excessivamente a órgãos políticos a que tradicionalmente se associa a exclusividade da representação popular. Compete aos responsáveis políticos que acreditam na bondade deste tipo de instituições supranacionais o duplo trabalho de construção de um espaço de debate sério a nível europeu e de sustentação pública das vantagens advenientes da partilha da soberania. Infelizmente, o que se observou nas últimas semanas não nos permite grande optimismo em relação à forma como esse trabalho está a ser desenvolvido.
A Comissão Europeia age demasiadas vezes com uma insensibilidade a roçar a arrogância e no plano nacional multiplicam-se considerações de tal forma primárias que induzem ao enaltecimento de um “soberanismo” ultranacionalista. Curiosamente, se já conhecíamos esse “soberanismo” na sua versão radical de direita, ficamos agora a saber que há uma parte da esquerda que não lhe fica atrás. Desde a patética tese da “quinta coluna” até às mais ou menos explícitas acusações de traição, tudo serviu para desqualificar à luz de categorias impróprias de um debate democrático as tomadas de posição hostis à presente maioria parlamentar. É certo que António Costa usou sempre de um tom e de uma linguagem próprios do europeísta que sempre foi e comprovadamente continua a ser. O seu comportamento de tal forma se distingue da histriónica gritaria dos seus conjunturais parceiros parlamentares e dos petits Robespierre que pulam e pululam numa certa área do PS, que tem o efeito de salientar a singularidade da actual solução governativa. Não é porém esse o tema principal do presente texto.
No caso específico em análise, que é o do processo de apreciação europeu da proposta de orçamento do Estado apresentada pelo governo português, importará realçar a manifesta dificuldade em objectivar o conceito de saldo estrutural a que foi atribuída uma importância nuclear no Tratado Orçamental em vigor. Como agora se viu, a extrema dificuldade em proceder à sua definição facilmente proporciona conflitos interpretativos causadores de grandes problemas. Essa ambiguidade, que à primeira vista poderia proporcionar uma maior margem de liberdade na aplicação dos critérios herdados do Tratado de Maastricht, acaba na realidade por fomentar a instabilidade no plano interpretativo. A experiência agora observada não se revelou nada entusiasmante, embora o assunto, pela sua complexidade, deva permanecer em aberto.
Uma coisa porém é certa. Ficou provado que a existência de regras balizadoras consubstanciadas em limites quantitativos referenciados ao PIB não anula a margem de manobra dos executivos nacionais em termos qualitativos. Carece assim de fundamento a teoria habitualmente enunciada como "não há alternativa". Há obviamente alternativas. No caso português isso ficou agora bem vincado. Claro que essas alternativas têm como pano de fundo uma opção anterior − e politicamente prioritária − pela participação num espaço caracterizado pela prevalência daquilo que comumente designamos como economia social de mercado. A meu ver é precisamente aí que um dia se vai decidir a sério o destino desta maioria, mas é também aí que vai ser interpelado o sentido da responsabilidade dos partidos da oposição. A União Europeia, por muito que isso desagrade aos seus acrisolados críticos, continua a ser simultaneamente um lugar e um garante da democracia tal como a concebemos desde há alguns séculos a esta parte no nosso tão detestado mundo ocidental. É imperfeita. Será. Como sabemos, a perfeição é um privilégio dos monstruosos sistemas totalitários. Ainda bem que a União Europeia tem esse toque de imperfeição que apela ao cepticismo da razão sem conduzir à anestesia da iniciativa.
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