segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Quem quer a paz?

Quando leio que pessoas marcharam pela paz, ou quando leio textos ou comentários de pessoas a dizerem que querem a paz não duvido da sua honestidade, mas pergunto-me se sabem o que é preciso para que haja paz. Pergunto-me se estariam dispostas a investir o que é necessário investir para que haja paz. E tenho as minhas dúvidas. Tenho dúvidas porque o sentido político que está por detrás desse desiderato é, na melhor das hipóteses, difuso e, na pior, o oposto do que dizem querer. Há três posturas políticas contra as quais seria necessário lutar antes de alguém poder dizer que é pela paz. O benfiquismo político, o arcebipismo político e o waidurismo político.
Quem quiser conhecer o seu perfil basta fazer um pequeno exercício de reflexão. Basicamente, ou alguém odeia (ou não gosta da) Renamo e é pela Frelimo, ou odeia (ou não gosta da) Frelimo e é pela Renamo. Existe, potencialmente, uma terceira posição, nomeadamente daquele que é neutro (ou se é jornal, “independente”). Essa posição é a dos mentirosos porque quem diz isso não está a ser honesto (alguém pode não ser pela Frelimo ou pela Renamo, mas de certeza odeia uma delas) e, por isso, não a vou considerar aqui. Fiquemos com as duas posições: Renamo (contra a Frelimo); Frelimo (contra a Renamo). Aqui vai o exercício, que é na verdade, uma pergunta: existe alguma coisa em nome da qual você estaria disposto a suspender o seu apoio à Frelimo/Renamo? Como podem ver, a pergunta é simples. Vamos às respostas.
Se a sua resposta for do tipo “sim, democracia, justiça social, boa governação, transparência, etc.” você ainda não está pronto para a paz. Você é uma caixa de repercussão para slógans que muito provavelmente não entende e que se calhar até lhe fazem mal porque deve andar aí pelo mundo (isto é, pelos murais do Facebook) a brandir esses termos como paus contra os seus adversários políticos. Chamo a esta postura de waidurismo político inspirando-me na nossa “mulher melancia”. Você orienta-se pelas multidões e acredita seriamente na ideia de que por muito má que seja a sua prestação em seja o que fizer se houver um número suficiente de gente a aplaudir você tem que ser excelente e até uma espécie de expoente máximo dessa arte. Eu confesso que padeço um pouco dessa enfermidade quando vejo o número de seguidores que colocam “likes” ao que escrevo. É nestas circunstâncias que a sua intervenção política não exige nada de si senão a repetição de slógans. Você é uma desgraça para a Pérola do Índico.
Há quem daria outro tipo de resposta, tipo “sim, se a pátria estivesse ameaçada, Moçambique, esta nossa terra”. Na verdade, esta é a postura básica dos mais activos politicamente. Eles agem em nome da “Pátria”, isto é, pensam duas coisas. Primeiro, pensam que a ideia que eles têm de pátria é a ideia que todos os outros deviam ter. Segundo, pensam que o seu partido se confunde com esse ideal de pátria. Em certa medida, portanto, esses não são capazes de conceber uma situação em que esse partido poderia estar contra a pátria porque ele é a pátria. Então, vou-me dirigir a eles agora. Você que responde assim defende o arcebipismo político. Esta postura consiste num autismo ético baseado na convicção segundo a qual tudo o que é necessário para que você tenha razão é que faça parte do grupo que tem razão (portanto, o seu partido). Isso é mau para si porque deixa de pensar e, pior, passa a não dar importância aos argumentos. Você fica impenetrável à razão e é o principal promotor da intolerância. Você é uma vergonha para a Pérola do Índico.
Existe uma terceira resposta do tipo “eu não preciso de suspender o meu apoio, pois o maior perigo vem dos outros e nós precisamos de estar unidos para lidar com isso”. Chamo a isto de benfiquismo político orientando-me um pouco (e de forma muitíssimo polémica, mas gosto!) no comportamento dos adeptos do Benfica aqui no “Face” que investem mais energia a festejar as derrotas do Porto e do Sporting do que a celebrar as suas próprias vitórias. Quando perdem preferem ir desenterrar glórias passadas ou desaires actuais/passados dos adversários como forma de lidarem com a dor. Há muito disso na política Pérola Indiana. É um clubismo mal orientado. Se você ama o seu clube ao ponto de considerar como traição, insubordinação ou vacilação qualquer momento de dúvida que você possa ter em relação à conduta daqueles que têm a responsabilidade de gerir o seu partido, então você é um obstáculo à consolidação democrática, você não merece esta nacionalidade fruto do sacrifício de quem se orientou por ideais para que ela fosse possível. Você é um problema para a Pérola do Índico, você precisa de remédio para a epilepsia.
Mas há uma salvação. É outro exercício. Ultimamente, a polícia moçambicana e a TVM têm estado a mostrar pessoas que dizem pertencer à Renamo e terem estado envolvidas em acções armadas contra civis ou contra as Forças de Defesa e Segurança. Um exemplo particularmente vergonhoso deste tipo de informação é dum jovem de 20 anos que é apresentado amarrado e de olhos vedados sob forte segurança militar e que “confessa” ter sido aliciado e treinado pela Renamo juntamente com outros jovens para desencadear ataques. O meu estômago virou quando vi essa reportagem. Tenho a certeza que o seu também. A questão, porém, é: porquê? Vi algumas discussões nos murais onde estas notícias foram compartilhadas. É fácil resumir as posições. Uns viram naquilo a prova de que a Renamo é mesmo má e está apostada na guerra. Outros acharam que é propaganda do governo; outros ainda fizeram troça dizendo que afinal o exército está em guerra com crianças. Você que é do waridurismo político vai coçar a cabeça à procura de alguma maneira de encaixar a sua defesa desta (ou hostilidade à) atitude da Polícia e da TVM no conceito de democracia, boa governação e todas as outras palavras que pensam por si. Isto é, o assunto em si não vai ser importante para si. Importante para si é encontrar uma maneira de se apresentar como o que você não é. Você que é do arcebipismo político vai defender com unhas e garras a prerrogativa da polícia e da TVM de fazer isto (se for pela Frelimo, claro) ou vai rogar pragas à polícia e à TVM (se for pela Renamo). Mais uma vez, o assunto em si não interessa, o que interessa é a protecção autista dos seus valores. Você que é do benfiquismo político vai ficar calado até que um chefe se pronuncie e depois vai defender essa posição até mesmo ao ponto de estar disposto a dar a sua vida por ela. Se o estômago tinha virado pela razão contrária à posição defendida pelo chefe, você vai engolir o que tinha subido.
Esta é a Pérola do Índico no seu melhor (pior). É esta Pérola do Índico que quer a paz, que paz só o Ayatolah da Beira é que sabe, ou melhor, só Deus sabe. Porque é que o meu estômago virou? Virou porque vi na atitude da polícia e da TVM uma agressão à dignidade humana pela qual muita gente deu a sua vida lutando por Moçambique. Não foi pela democracia, boa governação, transparência e não sei que mais que Moçambique se fundou. Foi para recuperar a dignidade de cada um de nós como seres humanos. Essa dignidade é assegurada por um conjunto de direitos que protegem o indivíduo da arbitrariedade do exercício do poder. Um desses direitos é a presunção de inocência e um julgamento justo. A Polícia e a TVM não têm nenhum direito de apresentar alguém em público e forçar “confissões” para as câmaras de televisão. Se é indiciado de algum crime tem que ser levado ao tribunal com toda a protecção jurídica que lhe é devida. Nenhum moçambicano envolvido em acções armadas contra o Estado é inimigo sem direitos, nem nada. É um suspeito de crime e se o tribunal provar que assim é passará a ser cadastrado que devolve à sociedade a sua obrigação de o recuperar ressocializando-o.
Enquanto os nossos debates sobre a paz não forem capazes de se inspirar em algo superior ao nosso waidurismo, arcebipismo e benfiquismo não haverá marcha pela paz que será merecedora da paz. É essa coisa superior que faz de nós uma comunidade para além das nossas diferenças políticas, religiosas, culturais e intelectuais. Debater na esfera pública significa procurar recuperar essa coisa colocando-a no centro das nossas reflexões. Ser capaz de formar uma frase em Português e ter coragem de exibir as suas limitações intelectuais usando o debate para a sua própria auto-promoção não faz de si uma pessoa esclarecida, muito menos cidadão responsável. Você só se ridiculariza e consigo toda a nação.
Quem quiser debater comigo a crise política em Moçambique e entender a minha perspectiva sobre o político precisa de perceber isto. Sou contra o waidurismo, arcebipismo e benfiquismo. Procuro a coerência da minha intervenção na rejeição destes três males e na protecção do que de mais precioso a independência de Moçambique nos deu: a dignidade de cada um de nós. Faço isso sem esconder a minha simpatia pela Frelimo, a minha antipatia à religião institucionalizada (sem com isso recusar a quem crê o direito de ser crente), as minhas dúvidas em relação à qualidade política da Renamo, o meu grande desapontamento em relação ao MDM que em momentos tão auspiciosos como os que vivemos prefere o papel de cachorro que a Renamo lhe reserva (só porque dá mais tesão estar contra a Frelimo), a minha impaciência com gente intelectualmente limitada que pensa que falar mal de alguém ou produzir frases fortemente ovacionadas por outros limitados é sinal de profundidade académica.
Sobre a crise política concretamente, e para que não restem dúvidas, é minha convicção que o que nos trouxe até aqui é uma ideia perigosa para a viabilidade política do nosso país. Essa ideia é defendida (ainda que inconscientemente) pela Renamo e consiste na convicção de que ela e a Frelimo estão acima da constituição e que, por isso, tudo o que é de interesse nacional tem que ser na base duma paridade entre estas duas forças políticas. Daí o recuo constante ao Acordo Geral de Paz (pois este, para ser possível, teve que criar vulnerabilidades em ambos os actores; o problema é que a Renamo quer fazer do que tornou o cessar-fogo possível prática democrática normal), daí também a rejeição de qualquer alargamento ao MDM de seja qual for o arranjo político e daí, finalmente e da minha parte, a importância duma postura política para além do waidurismo, arcebipismo e benfiquismo. For por causa disto que me opus à lei de amnistia que viabilizou as eleições por achar que ela cuspiu na cara das vítimas da violência insensata; é por causa disto que não tenho problemas em dizer que as reivindicações que a Renamo faz em relação às irregularidades eleitorais e à partidarização do Estado são problemas que precisam da nossa atenção (mesmo que pela forma que ela reinvidica acabe tornando-as ilegítimas); é por isto que há muito venho dizendo que o diálogo precisa de ser alargado a todos nós e que o problema da paz não se resolve acomodando a Renamo; é por isto que defendo o direito da Lambda de ser reconhecida como associação; é por isto que não vejo nenhum problema que o desejo de cessação que possa existir no país seja resolvido com um referendo ou outro mecanismo qualquer; e é também por isto que acho um insulto a nossa inteligência e afronta vergonhosa que um arcebispo reformado minta em público atribuíndo interpretações maldosas ao que o Chefe de Estado disse e tirando toda a legitimidade à sua igreja de fazer parte da solução. Você que é do waidurismo, arcebipismo e benfiquismo sempre terá dificuldades em perceber isto porque, politicamente, você está limitado. Você só sabe aplaudir ou pôr "like" naquilo que você próprio não tem coragem de dizer ou não tem capacidade de formular de forma coerente. É por sua causa que este país não anda. Para termos um país melhor tínhamos que travar luta cerrada contra estas posturas políticas.
Só que é pedir demais num país onde não saber nadar quando você é responsável por infraestruturas pode ser usado pelo seu chefe para ganhar pontos políticos.

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