Entrevista *
2. Marcelino dos Santos Fala de Reeducação, “Comprometidos”
P - Esclarecidas que estão estas questões, passemos então àquilo que me traz, o problema dos antigos presos políticos, saber o que se passava nas cadeias, enfim o que a PIDE fazia.
Gostava que me esclarecesse sobre o que estava no pensamento do presidente Samora, quando fez a reunião com os antigos presos políticos? Qual era o objectivo? E se manteve o acordo com a reunião?
R - Naturalmente. Todos estávamos de acordo. O objectivo foi dito claramente e era para libertar todo o mundo. Se você quer andar aqui à vontade, tem de reconhecer que aquilo que fez é crime.
P - Mas eles não tinham cometido crime nenhum, apenas tinham estado presos.
R - Não, não, não, espere, não. Primeiro escute. Tivemos muitos companheiros com comportamentos errados.
P - Errados em quê?
R - Porque duma forma ou doutra fraquejaram, colaboraram.
P - Será que fraquejaram? Também os considera traidores?
R - Não. Nós não considerámos ninguém traidor. Mas sabemos, porque as coisas foram faladas, que a Polícia foi informada. Torturam-me no primeiro dia, mas não digo nada. No segundo dia, não digo nada. Mas no terceiro dia, falo. E quando falo, digo que foi Fulano e vão buscar Fulano. Então, diz-se que aquele traiu. Não há outra palavra. Traaaaaaiiiuuuuuu. E isso traduziu-se em sofrimento para eles. Então, a ira é enorme, porque a PIDE, como qualquer polícia deste tipo, não suporta que alguém resista.
Temos camaradas que ainda hoje não perdoam aos outros. A FRELIMO entendeu o problema e disse que, a parir de então, aqueles que tinham << namoriscado>>. com a PIDE deviam ir para campo da reeducação. Por exemplo Malangatana Valente foi para um campo de reeducação em Nampula. E foram outros. Voltaram homens livres, que se tinham libertado a si próprios dos comportamentos errados que tinham tido na prisão.
P - Nesses campos de reeducação, o que é que faziam?
R - O que é que faziam? O que é fazia o Malangatana lá em Nampula? (risos). Fez as suas pinturas. Era só uma maneira de estar lá, de fazer política, não era nada especial!
P - Mas eles não recebiam treino militar?
R - Nunca. Nunca. Não sei. Não sei. Pergunte ao Malangatana.
P - Mas, por exemplo na República Popular da China, também houve campos de reeducação. O médico ia cultivar batatas e o advogado era capaz de ir para a estiva.
R - Conheço a reeducação do tempo de luta. Mas aquilo ali era simplesmente um lugar onde as pessoas viviam e trabalhavam.
P - Mas trabalhavam em quê?
R - Na terra, na terrra, na terra. (irrita-se)
P - Ah! Era isso que queria saber. Dedicavam-se à agricultura, independentemente dos seus conhecimentos.
R - Sim. independentemente dos seus conhecimentos.
P - Era uma forma de quê? De saberem o que o povo passou?
R - Não, não, não. Era uma forma de aprenderem a regenerar-se pelo trabalho, porque nós também temos um processo de trabalhar.
Por exemplo durante a luta, se um camarada era enviado para a reeducação, ficava em geral três meses.
Por exemplo durante a luta, se um camarada era enviado para a reeducação, ficava em geral três meses.
P - Ah! Durante a luta também houve campos de reeducação
R - Sim, sim. Ficavam três meses. Por exemplo, tudo dependia do tempo. Nós dividíamos o tempo. Numa primeira fase, dormia e trabalhava, mas ninguém lhe falava, comia, mas ninguém lhe falava. Andava por ali à vontade, só que ninguém lhe falava. Quando terminava o primeiro mês e a primeira fase, então a gente começava a falar com ele. Conversava, conversava. E na terceira fase era o trabalho político. Depois saía e, pronto, era um cidadão como outro qualquer.
P - Então aos antigos presos políticos vai acontecer a mesma coisa?
R - Ah! Para esses foi muito leve. Foi muito leve. Mas trabalho político, sempre.
P - Significa isso que, para a FRELIMO, aqueles presos deviam ter morrido e não falarem, é isso?
R - A nossa obrigação é não falar, não vergar perante o inimigo.
P - Mas isso é bom de dizer para quem está fora, para quem nunca passou por lá.
R - E aqueles que passaram e que estiveram na prisão com outros, que os traíram. Como é que os qualifica?
Estou a dizer-lhe que temos aqui gente que até hoje não fala, com aqueles que falaram e cooperaram! Sofreram na pele a fraqueza do outro. Não é por acaso que se diz:<<Independência ou morte. Venceremos>> , respondo: <<Sim. Era preciso morrer>> ( Nota da autora: O estranho é não terem sido uniformes, os critérios de tratamento dos antigos presos)
Estou a dizer-lhe que temos aqui gente que até hoje não fala, com aqueles que falaram e cooperaram! Sofreram na pele a fraqueza do outro. Não é por acaso que se diz:<<Independência ou morte. Venceremos>> , respondo: <<Sim. Era preciso morrer>> ( Nota da autora: O estranho é não terem sido uniformes, os critérios de tratamento dos antigos presos)
P - Então, durante a luta, se algum guerrilheiro feito prisioneiro, a FRELIMO não alterava nada, ninguém saía da base?
R - Não. Não. Essas medidas de segurança só existiam aqui na cidade. Na luta armada não, porque os portugueses podiam saber que a gente estava aqui, mas a gente não saía. ( Nota da autora: Esta afirmação tem pouco a ver com a táctica usada, em regra, pela guerrilha. E só pode explicar-se com o facto de o entrevistado, de facto, não ter feito a luta no interior do país.)
P - Acha que todos os antigos presos políticos foram reeducados?
R - Bem, houve presos políticos que se comportaram normalmente, de maneira revolucionária. E outros fraquejaram. E esses é que foi preciso << libertar >>,porque isso constituía para cada um deles um peso, porque as pessoas andavam na rua e sabiam que olhavam para elas. E sabiam que os outros sabiam, que tinham colaborado. Isso, paciência, é um estigma para qualquer.
A realização da reunião foi uma maneira de os libertar, porque quando publicamente digo aos camaradas: << Peço muita desculpa, mas fiz isto e aquilo e aqueloutro, mas foi nestas circunstâncias e, agora, reconheço foi uma falta, foi um erro>>
P - Não prenderam ninguém?
R - Absolutamente ninguém (Nota da autora: A afirmação não é verdadeira. Como se pode comprovar, pelo caso de MATIAS MBOA, que esteve cinco anos preso na Machava, por ordem administrativa da direcção da FRELIMO.) Nem julgados foram. Tratámos os problemas politícamente. Aquilo que nos interessava era reconstruir e educar.
P - Os antigos presos políticos foram mandados para campos de reeducação. Mas porque é que os chamados << comprometidos >> não foram também para campos de reeducação?
R - Os comprometidos? Que é isso?
P - Os Comandos, os Flechas, os grupos especiais de pára-quedistas (GEP) e outros.
R - Já era o ano de 1982!
P - Significa isso que a direcção da FRELIMO foi adquirindo experiência política e começou a ver as coisas de outra maneira?
R - Não, não. Naturalmente que, com os anos que passam, qualquer governo adquire experiência. Mas não é essa a base de reflexão. A base de reflexão é que, em 1982, já havia muita coisa vivida. E qual seria o interesse de mandar esses companheiros (sic) para os campos, de os castigar de os punir? Vamos lá a ver. Tivemos aqueles que foram para os Comandos voluntariamente e aqueles outros que foram obrigados a ir.
P - Mas aqueles que se entregaram voluntariamente e que constituíram os GEP, os Comandos, os Flechas, esses mataram, enquanto que os presos políticos...
R - Aqueles que mataram. não sei quem foram.
P - Mas esses matavam.
R - Sim. Mas também houve muitos que fugiram de Moçambique com medo de sofrerem represálias por parte da população. Há quem diga que, aí por volta de Julho de 1974, saiu o primeiro grupo de moçambicanos que tinham participado naquilo a que nós chamámos << sectores fascistas do Exército Colonial>> , em direcção ao Zimbabwe, dirigidos por um oficial português. Razão? Medo de serem presos pela população. Não houve o caso de um Mondlane qualquer que chegou a ser Capitão? Muitos fugiram. Mas temos por aí outros. O Freitas Branco e o Aurelio Lebon foram Comandos.
P - Mas foram voluntários ou obrigados?
R - O Aurélio Lebon foi voluntário.
P - Então a esses não foi feira reeducação?
R - Não sei. Talvez por ser mais tarde, quando as coisas já eram melhor tratadas. Mas não sentimos necessidade. O Freitas Branco, por exemplo, passou para o Exército Moçambicano, é hoje Oficial.
P - Há uma coisa que me faz um bocado de confusão. É que, apesar de tudo, os antigos presos políticos não andavam de arma na mão a matar e a incendiar aldeias, nem diziam ao Exército Português <<Estão ali> E foram para a reeducação. Ao passo que os Comandos, que mataram e incendiaram, não foram. Continuo a não perceber.
R - Ah! É fácil falar., dizer que os Comandos fizeram isto e aquilo. Por exemplo o Armando Loja era Oficial - Comando e nunca matou, até uma criança ele conseguiu salvar. Não é por ser Comando que se mata.
P - Então quando há pouco dizia <<os tempos de 1982 eram outros>>o que queria dizer?
R - Penso que já havia um melhor entendimento das pessoas e do que se devia fazer. Mas nada posso dizer. Facto é que nós, os principais interessados, não ficámos nada chocados com a maneira como as coisas foram tratadas. Isto é um facto concreto. Não ficámos chocados. Ficámos claros e conscientes. Recordo-me de que, por exemplo no caso do Freitas Branco, um caso que recordo perfeitamente, até achámos que O.K. << sim senhor, camarada!>>, pois sabíamos que muitos companheiros não tinham feito nada. Outro exemplo, o filho, o filho do Brás da Costa, era piloto da Força Aérea Portuguesa e nunca bombardeou a FRELIMO, mas morreu com uma anti-aérea da FRELIMO. Os camaradas não sabiam. Mas o pai não sucumbiu. O pai soube assumir e compreendeu. Brás da Costa era um grande empresário do Niassa.
Agora, na prisão, havia os outros. E até hoje ainda há casos de camaradas que não perdoaram.
P - Tenho uma curiosidade. Já alguma vez pegou no jornal que era feito na Cadeia da Machava? Viu-o alguma vez?
R - (risos) Ressurgimento? Não dá para falar. Vamos embora (levanta-se)
P - (risos) Não dá para falar. Vamos embora (levanta-se)
P- Não dá para falar, porquê?
R - (risos) Não sei.
P - Nunca viu o jornal.
R - Não falo. Vamos embora (dirige-se para a porta)
P - Mas aquilo que o presidente Samora pretendia.
R - Não era o que o presidente Samora pretendia, era o que a FRELIMO pretendia, porque essas coisas não foram vontade de Samora. Foram realizadas conscientemente, um trabalho dirigido pela direcção do Partido.
P - Mas então aquilo que o Partido FRELIMO queria era que as pessoas passassem a entender-se bem, que houvesse um grande perdão pelas atitudes do passado, que houvesse um reconhecimento dos erros que foram cometidos. Agora se há alguns que não perdoam aos outros por terem falado, então significa que esses não compreenderam qual era o objectivo da FRELIMO?
R - Então, mas aí...o que é que a gente pode fazer. Sabem que a FRELIMO perdoa, mas eles nunca perdoaram.É
P - A FRELIMO estava muito bem implantada no terreno da guerra. Acha que se não tivesse havido o 25 de Abril...!
R - Ah! Teríamos sido independentes em 1976.
P - Em 1976? Tinham perspectivas disso?
R - De certeza. Mais ou menos em 1976.
P - Acha que Portugal não tinha armas à altura?\
R - O problema eram os homens. Homens (fala mais alto). As pessoas que pegam em armas é o que conta. Não as armas.
P - Mas sabe que se diz que estava prevista uma ajuda a Portugal em armas, armas que iriam...
R - Vamos embora. Vamos embora.
* Entrevista concedida por Marcelino dos Santos a Dalila Cabrita Mateus em Maputo, Agosto de 2000. O CEMM obteve esta entrevista através da página Facebook de Aurelio Le Bon.
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