Friday, January 22, 2016

D. José dos Santos Garcia: 1.º Bispo da Sociedade Missionária Portuguesa

Faleceu D.José dos Santos Garcia,
bispo emérito de Pemba


11.Dezembro.2010 - Ainda não eram 13.00 horas quando a notícia nos chegou: D. José acabava de falecer, no nosso Lar, em Cucujães. De manhã tinha estado bem disposto.

O seu funeral realiza‑se na próxima segunda‑feira, dia 13, em Cucujães, pelas 15.00 (quinze) horas.

D. José dos Santos Garcia nasceu em 16 de Abril de 1913, em Aldeia do Souto, concelho da Covilhã.

Filho de Gabriel dos Santos e de Teresa Mendes Garcia, entrou no Seminário de Tomar (então fazendo parte dos Colégios das Missões) em 14 de Outubro de 1925. Aquando da passagem dos Colégios das Missões para a Sociedade Missionária, foi um dos que aderiram ao novo projecto da Santa Sé.



Em 15 de Setembro de 1935, no Seminário de Cucujães, fez o seu Juramento temporário ( o Perpétuo seria em 04 de Dezembro de 1937, em Cernache do Bonjardim). Foi ordenado sacerdote em 25 de Julho de 1938, na igreja paroquial de Cernache.

Ainda antes do Probandato, foi prefeito e professor em Cernache (1933‑34). Em 1934‑35 fez o Probandato em Cucujães. Após o Juramento, voltou a Cernache, onde continuou prefeito e professor até 1938. De 1938 a 1945 foi Vice‑Reitor do mesmo Seminário.

Em 13 de Novembro de 1945, embarcou para as Missões de Moçambique (de barco, saindo do porto de Leixões).

Foi colocado na Missão de Mutuáli, onde foi coadjutor e superior. Ao mesmo tempo, foi também Superior Regional dos nossos Missionários. Todos conhecemos as imensas actividades dele nesta Missão do Mutuáli, que se tornou célebre em todo o Moçambique.

Em 10 de Abril de 1957 foi nomeado Bispo da nascente diocese de Porto Amélia (actual Pemba), tendo sido sagrado Bispo na catedral de Nampula em 16 de Junho do mesmo ano. A Diocese de Pemba deve‑lhe a criação de todas as estruturas fundamentais de uma Diocese, a começar pelos Seminários.

Quem trabalhou com ele sabe quanto a própria Igreja de Moçambique deve ao seu esforço, ao seu ardor missionário. Como Bispo, participou no Concílio Vaticano II.

Em 31 de Janeiro de 1975 pede a sua resignação como Bispo de Porto Amélia. Regressa a Portugal, indo viver na sua terra natal numa casa pré‑fabricada adquirida pelo próprio, embora nunca abdicando do seu amor à Sociedade Missionária.

Colocou‑se à disposição da Diocese da Guarda para tudo o que a Diocese lhe pedisse. Foi responsável pela sua paróquia natal… deu aulas de Missionologia no Seminário Maior da Guarda… ajudou o Bispo da Diocese nas Visitas Pastorais, quando este não podia ir…

Em 2003 celebrou solenemente, em Aldeia do Souto, os seus 90 anos. E, em Fátima, os seus 50 anos de episcopado (2007).

Em 30 de Outubro de 2010 foi-lhe colocado uma prótese no cólon do fémur (fracturado numa queda em casa), no Hospital de Covilhã.

Depois de ter alta do hospital, e após a passagem pela Casa Sacerdotal da Guarda, veio para o nosso Lar de Cucujães a meio desta semana.

Paz à sua alma! Da Casa do Pai nós lhe pedimos que interceda pela Sociedade Missionária, que ele tanto amou.

Termino com as palavras‑testemunho do Senhor Santos Ponciano (ARM): 

É com muito pesar que recebemos esta notícia. Estamos todos de luto. D. José dos Santos Garcia foi sempre para nós uma referência como modelo de missionário. Lembro-me da alegria que transmitia aos jovens alunos quando visitava os nossos seminários. Todos lhe devemos homenagem.

Pessoalmente tive este ano o privilégio de ver parte da sua obra em Moçambique. Imponente. A sua memória em Pemba (Porto Amélia) é a de um Homem Grande. "Destemido, audaz, exigente, empreendedor, com visão estratégica e um homem de Deus", são palavras que ouvi de leigos que ainda residem naquele país.

Um abraço muito amigo, do

Pe. Martinho Castro e Silva, SMBN

 D. José dos Santos Garcia

1.º Bispo da Sociedade Missionária Portuguesa

In memoriam

Aires A. Nascimento





1. Um momento histórico. Era por meados do mês de Abril de 1957. Aproximava-se a Páscoa, que esse ano calhava a 21, um tanto sobre o tarde, como acontece este ano de 2011. O dia de Páscoa desse longínquo ano haveria de ficar indelevelmente marcada pela publicação da encíclica Fidei Donum, dedicada particularmente à África. Para nós, os da Sociedade Missionária Portuguesa (sobretudo para os que despertávamos para a vida), a aproximação desse dia teve um brilho particular: a eleição do primeiro bispo, D. José dos Santos Garcia, para a nova diocese de Porto Amélia, em Moçambique. É inevitável recordá-lo, em momento em que ele, D. José, passou definitivamente para o Pai (a 11 de Dezembro de 2010) .
Inesperadamente, em semana de Paixão, chegava uma notícia que nos alvoroçou no Seminário de Cucujães. Pela solenidade que revestia, o Reitor, P.e Domingos Marques Vaz, decidiu transmiti-la na capela, no final das “Orações do Meio-dia”. Com emoção contida, anunciou: “Habemus Episcopum; o Santo Padre Pio XII nomeou, esta manhã, o P.e José dos Santos Garcia, Superior Regional de Nampula, como bispo da nova diocese de Moçambique, Porto Amélia.”
Ao tempo, não se haviam introduzido ainda as palmas no espaço sagrado nem estávamos preparados para tanto. A resposta de aplauso, na surpresa da notícia, foi apenas de um olhar alargado e de um sorriso aberto, ambos admirativos, por parte da comunidade inteira, sem excepção. Ainda emocionado pela novidade que acabava de comunicar, o Reitor não adiantou muitas mais palavras. Na realidade, para nós, alunos (eu ia no 3º ano do curso de filosofia), o nome era conhecido, mas pouco mais tínhamos dele que a imagem de umas barbas fartas e longas, com doze anos em África, sem interrupção, admirado sobretudo pela obra que estava a erguer na Missão do Mutuáli, segundo ecos que nos chegavam. Era muito, no entanto, o que devíamos aprender de quem com ele convivera e com ele colaborara na edificação de uma comunidade – humana e cristã. Felizmente, não nos faltavam testemunhos imediatos.
O P.e Vaz, antigo companheiro de estudos e bem a par da actividade do P.e Garcia, ajoelhou voltado para o sacrário e rezou a antífona do Veni, Sancte Spiritus. Já não teve voz para entoar o Salve Regina porque a comoção era muita; apenas rezou: “Ó Maria, rainha das missões, dai-nos muitos e santos missionários”. Era o primeiro gesto de solidariedade com o novo bispo e simultaneamente de veneração e ansiedade pelo que a designação representava para a Sociedade Missionária.
Todos nos irmanámos num mesmo sentimento. Invocávamos sobre ele o Espírito de Deus: a Deus o confiávamos, por Cristo que o escolhera e por Maria de quem esperávamos protecção. A ele desejávamos as maiores bênçãos divinas. No fundo da capela, sentiu-se que o P.e Alfredo Alves, sereno, transpirava de júbilo. Sem se mover, o P.e Manuel Moreira Campos, Director Espiritual, que tudo acompanhava, contemplativo, curvado sobre o banco, também no fundo da capela, conteve-se para não exteriorizar a sua alegria; só no final do dia, ao exame de consciência, deixou ele expandir o que lhe ia na alma e que reflectia já o que ocupara as conversas do dia inteiro . Em lembrança rápida, o P.e Campos acentuava que a nomeação de um bispo da Sociedade Missionária devia ser motivo de acção de graças a Deus e de regozijo de todos pelo que significava de confiança por parte do Santo Padre.
No dia seguinte, à meditação, ele voltaria ao tema e às razões da alegria – contida, serena, mas autêntica. Sublinhava ele: todos sabíamos que Pio XII seguia de perto as actividades da Sociedade Missionária, desde os tempos em que fora Secretário de Estado do Vaticano; todos sabíamos também que o Santo Padre Pio XII, repetidas vezes, havia manifestado as suas expectativas quanto à acção que a Sociedade ia realizando no campo missionário; isso bem se podia deduzir de tantos gestos do passado, entre os quais se deviam contar as bem significativas palavras que na encíclica Saeculo exeunte octavo, ele dedicara à Sociedade Portuguesa das Missões Católicas Ultramarinas, salientando que a Sociedade tinha saído do coração do Papa; enfim, no ano em que íamos celebrar as Bodas de Prata da institucionalização da Sociedade, a nomeação de um bispo tomado de entre os nossos devia ser motivo de alegria e de renovação de fidelidade à vocação missionária: era momento, insistia, de agradecer a Deus e ao Santo Padre o gesto que nos abrangia a todos nós .
Estava dado o tom que iríamos respeitar, mas ficavam a pairar as novas responsabilidades de acompanhamento que iriam pesar sobre a Sociedade Missionária – um bispo, com uma nova diocese, num campo novo de missão, definitivamente aberto por um dos nossos…
Por tudo isso havia em todos uma alegria contida, com um misto de ansiedade, que prolongava a do Reitor do Seminário, que era também Assistente Geral e Secretário da Direcção da mesma Sociedade: o campo de trabalho em Moçambique iria alargar-se e obrigaria a repartir forças e efectivos por mais uma diocese, quando havia consciência de que os grupos do Sul do Save e de Nampula não tinham mãos a medir, apesar de, no ano anterior, em 1956, ter sido enviado um grupo de oito novos missionários.
O Superior Geral não estava em Cucujães, pois se encontrava de visita canónica a Moçambique (nesses dias, estava em Nampula, acompanhando as emoções de todos os missionários e particularmente do indigitado, com quem partilhara a novidade na véspera de ela ser dada a conhecer ao mundo). À nossa beira, o P.e Alfredo Alves demonstrava contentamento que contagiava, com uma descontracção que há muito não lhe conhecíamos; o P.e Francisco Mendes Sequeira acompanhava-o, com o P.e José Lourenço Baptista. Outros não ousavam exteriorizar muito os sentimentos, contentando-se com referir impressões de circunstância ou relatar episódios antigos em que a figura do novo bispo vinha à colação.
No dia seguinte, os jornais, nomeadamente o Novidades que nos vinha às mãos através do prefeito de disciplina, transcreviam o telegrama emanado do Vaticano, em 10 de Abril: “O Santo Padre Pio XII criou a nova Diocese de Porto Amélia, na África Oriental Portuguesa, desligando da Diocese de Nampula o território do distrito de Cabo Delgado. Foi nomeado Bispo da nova Diocese o Rev.mo Padre José dos Santos Garcia, Superior Regional da Sociedade Portuguesa das Missões Católicas Ultramarinas na Diocese de Nampula”.
O comunicado era lacónico e formal; não tinha havido um gabinete de imprensa que tivesse preparado outras informações e as expectativas multiplicavam-se. Em todo o caso, abria-se um enorme horizonte de alegria e de comoção. Na nossa candura juvenil, revíamos agora em retrospectiva as impressões das últimas semanas: não se haviam constituído episódios consistentes e precisos, mas era impossível não ter entendido que algo de menos habitual se estava a passar. Notara-se, efectivamente, que tinha havido alguma apreensão nos membros da Direcção Geral da Sociedade Missionária e alguns deles se haviam ausentado de Cucujães por breves dias. Os de maior imaginação, e com não menor atrevimento, aventuravam que tinha havido viagens a Lisboa para encontro com o Núncio Apostólico. Tudo era segredo em matéria sigilosa como era obviamente esta...
Comentavam-se agora as ordenações sacerdotais que iriam ter lugar em Maio: um grupo sólido, de gente bem disposta e inteligente que conhecíamos de perto pelos bons momentos que em anos passados nos haviam proporcionado: boas notícias para quem vivia lado a lado com eles; com os mais novos (eu ia nos meus dezassete anos) convivia mais de perto o Agostinho Rodrigues, vice-prefeito dos alunos de filosofia – fora ele quem, algumas semanas antes, em Março, me preparara para fazer a intervenção na Academia especial do dia de S. Tomás de Aquino, em que eu faria uma exposição sobre Henri Bergson, em apuramento de leitura de uma obra que o jesuíta Diamantino Martins lhe dedicara e que o P.e Alfredo Alves, professor de filosofia, me pusera nas mãos para eu ler e analisar; com o Agostinho, a terminar a teologia, podia eu, de mais perto, trocar algumas impressões sobre os novos acontecimentos.
Refazendo recordações de dias anteriores, comentava-se agora a ausência inesperada do P.e Alfredo Alves que, havia semanas, faltara alguns dias nas aulas de Literatura Portuguesa e nas de Filosofia; quanto ao P.e Domingos Marques Vaz, Reitor, notara-se que vivera um pouco mais retirado: se a ausência do primeiro não causava estranheza, pois, na qualidade de Prefeito Geral de Estudos, se deslocava com regularidade aos outros Seminários, a atitude do segundo não despertara sensações especiais, pois lhe conhecíamos o temperamento reservado, sempre atento a quem precisasse dele, mas sempre a correr para acudir a qualquer circunstância e com a ausência do Superior Geral para Moçambique acudiam a ele os problemas mais imediatos. No entanto, em insinuações de conversas em que cada um procurava acrescentar mais um ponto ao que o outro não se atrevera a dizer, em registo agora já mais desanuviado, alguém levantava a suspeita de que o P.e Alfredo Alves tivesse sido chamado à Nunciatura Apostólica, com o propósito de ser convencido a aceitar o cargo que agora fora entregue a D. José dos Santos Garcia; especulava-se que ele, P.e Alves, fora determinado e inflexível na recusa e que a argumentação por ele utilizada (a de que nunca estivera em serviço missionário directo) teria sortido efeito junto do Núncio Apostólico. Este era nada menos que D. Fernando Cento, que tinha já alguns anos em Lisboa (havia chegado em 15 de Dezembro de 1953) e que, no seu jeito expansivo, em visita que fizera a Cucujães (em 6 de Junho de 1954) , teria confidenciado que a sua visita se devia a recomendação expressa do Santo Padre, o Papa Pio XII, que acompanhava de perto todos os relatos das actividades da Sociedade Missionária e pretendia um testemunho mais directo da sua parte. A incumbência aparecia-nos agora sob perspectivas mais largas: afinal, o Núncio Apostólico acabara por convencer o Superior Regional dos Missionários da Sociedade em Nampula a aceitar novas responsabilidades na Igreja para ficar à frente de uma nova diocese. Porque aceitara ele o que outros teriam recusado?
Para todos os efeitos, havemos de reconhecer hoje que ele não ia para o desconhecido nem aceitara por mera condescendência ou por qualquer outro sentimento humano: conhecia as dimensões da diocese em que trabalhava e sabia a importância de repartir o terreno para melhor coordenação evangelizadora. Podemos ler hoje, no Diário do Mutuáli, o “Relatório de reconhecimento dos locais para a implantação das Missões de Iapala, Ribáuè e Lalaua”, feito por ele e pelo P.e Manuel Fernandes, em Setembro de 1953, e percebemos aí a sensibilidade e a lucidez de D. José em prever o que era indispensável numa estratégia de evangelização primária . Sabemos também que, em conversa com o Superior Geral da Sociedade, logo depois de receber o telegrama enviado pela Secretaria de Estado do Vaticano, já ele desenhara planos, nomeadamente quanto à criação de um Seminário na nova diocese, reatando assim o sonho perdido, ao sair de Unango .

2. O significado de uma escolha: um Instituto ao espelho das expectativas que recaíam sobre o novo bispo. Era um facto: preparávamo-nos para celebrar 25 anos da instituição formal da Sociedade Missionária Portuguesa. A nomeação de um bispo de entre os membros do Instituto aparecia como uma iniciativa papal que se adiantava à comemoração e consagrava o trabalho missionário realizado em vinte anos, em Moçambique, desde 1937, num tempo em que, à chegada, os sacerdotes naquele território não iam além de 40 e havia apenas uma prelazia, à frente da qual estava D. Teodósio Clemente de Gouveia, principal responsável pela ida dos nossos missionários para Moçambique .
Havia também ecos de um facto recente que não nos podia passar inadvertido (nem certamente passara às autoridades maiores), pois pertencia também à história da Sociedade Missionária: em 23 de Dezembro de 1956, tinham sido ordenados de presbíteros na catedral de Nampula, os primeiros sacerdotes moçambicanos, o P.e Leandro Feliciano da Cruz e o P.e Miqueias Elias Maloa; o primeiro era natural da Manhiça, no Sul do Save, mas fora levado, com seus pais, para o Norte, como catequista, quando os missionários da Sociedade Missionária foram transferidos para Unango, por decisão pastoral de D. Teodósio Clemente Gouveia, o segundo era natural da região do Norte, de Mutúcuè. Dava-se a circunstância de eles terem começado a sua preparação para o sacerdócio com os missionários da Sociedade, em Unango, no Niassa, onde haviam sido alunos também do próprio P.e José dos Santos Garcia, que aí se juntara aos outros formadores em 28 de Dezembro de 1945 (até passar em 14 de Agosto de 1946 para a missão de Mutuáli). Agora, à data da ordenação desses primeiros sacerdotes africanos, o P.e José dos Santos Garcia era o Superior Regional da Sociedade Missionária na diocese de Nampula e o pároco da catedral, onde eles recebiam a ordenação, era o P.e Manuel Martins Canas, também da mesma Sociedade. Por desígnios de Deus, a iniciativa tomada há doze anos (e interrompida por razões que nos ficam a distância e não é fácil escrutinar) tinha agora coroamento feliz. Tal acontecimento não terá passado desapercebido em esferas superiores.
Haviam sido longos anos de trabalho missionário. Longos, porque o tempo parecia não alterar as coisas – pelo menos para quem vivia longe e apenas de vez em quando tinha acesso a jornais e menos ainda a noticiários de rádio, confiando que a Providência iria dando rumo aos acontecimentos do mundo em volta. De facto, o mundo apressava o seu curso: os chamados Povos do Terceiro Mundo adiantavam-se, mas, por perto parecia reinar a tranquilidade, mesmo que faltassem condições materiais e houvesse que atender a tudo. Submetidos a prova de subsistência e de resistência tinham estado os missionários que, confiados em Deus e na expectativa de criar comunidades humanas e cristãs, ofereciam os seus préstimos aos poucos que aceitavam a sua presença.
Não se registava por esses tempos qualquer manobra contra tal presença: a administração portuguesa estabelecera-se em forma quase regular – até para evitar que, no desenrolar da II Guerra Mundial, aparecesse alguma potência ambiciosa a reclamar aqueles territórios como terra de ninguém (fosse do lado do país imperial que havia obrigado a rasgar o antigo “Mapa cor-de-rosa” para ligar directamente o Cabo ao Cairo, fosse do lado de forças entretanto pretensamente animadas em bater-se pela restauração do antigo Império Romano, esbanjando sonhos e deixando tropas pelas costas da Eritreia e da Etiópia, na mira de manter vivo o mito de Cipião Africano transposto para dias recentes).
Não era com poder e força que os missionários chegavam, embora tivessem a boa-vontade da administração portuguesa. Para trás ficavam posições da Companhia Majestática do Niassa que convidara os Missionários da Consolata a entrar em Moçambique (sabe-se hoje que eles contavam com a bênção papal, mas à revelia de qualquer autorização governamental – não tão insensível como poderia conjecturar-se); terminara, entretanto, a acção da Companhia e as responsabilidades da administração moçambicana haviam passado inteiramente para o Governo Português. O Acordo Missionário de 1940 viera facilitar o entendimento (rompido na República), mas os Institutos Missionários deviam estar suficientemente alertados para as consequências de subordinações tentadas num passado relativamente recente (do primeiro período republicano) e para não se deixarem enlear em acções de natureza política. Não havia suspeitas, por então, pois as atenções dirigidas para os esforços para aguentar os efeitos da guerra que lavrava no mundo inteiro criavam união de vontades e de perspectivas. Apontam-se hoje (com alguma displicência e até sobranceria mal medida), as falácias de uma linguagem de “patriotismo” um tanto épico que arvorara a gesta antiga dos Descobrimentos em motivação de novos empreendimentos da Colonização e da Missão. É facto que há pobreza, e até indigência, de temas e emblemas nas proclamações de então, avivadas pela Exposição do Mundo Português, na celebração dos Centenários, em 1940. Só alguns, com lucidez e coragem, como D. Sebastião Soares de Resende, se demarcavam ; a custo, outros seguiam nessa peugada e se abriam ao universalismo de valores da evangelização e às suas consequências.
Não é de espantar que, no contexto internacional, a Administração governamental tivesse de caminhar com rapidez na ocupação de territórios imensos, recuperando atrasos de séculos, com má consciência de tudo quanto não havia sido feito ou havia sido descurado em tempos mais recentes. Havia oportunidades para a Igreja se dedicar com maior afinco à evangelização que ficara em espera de séculos: a fundação da Sociedade Missionária era um apelo à Igreja Portuguesa, na convicção de que ela queria, porque devia, corresponder; novas motivações se propunham: o que partia para a Missão ia ao encontro de um irmão, sem levar mais que uma muda de roupa e um bastão, aceitava acomodar-se ao que a Providência lhe deparasse para irmanar-se com os mais pobres e ajudá-los a perceberem a mensagem do amor divino e a tomarem consciência da sua dignidade – não se prometiam reformas, apenas o prémio do trabalhador do Evangelho.
É facto que as motivações que andavam em voga eram algo diferentes e, por força das circunstâncias, temos hoje outra compreensão dos caminhos de salvação. Reconheçamos que ao longo do séc. XX se foi fixando o primado dos objectivos no anúncio do Evangelho, sem outros constrangimentos que os dos tempos apostólicos – em que, como Paulo havia que prover à própria sustentação. Na espiritualidade em que nos formavam, havia lemas constantes que nos eram comentados como matriz de base e apareciam nas estampas comemorativas de Juramentos e de Ordenação sacerdotal ou também de Expedições Missionárias: “ai de mim se eu não evangelizar” ou “fiz-me tudo para todos para a todos ganhar para Cristo” e bem assim “vim para que tenham a vida e a tenham em abundância”. Havia também uma profunda sintonia com a “compaixão” de Cristo pelos homens (cf. Mat., 15, 32; Marc. 8, 2) e era recorrente a palavra d’Ele no alto da Cruz: “Tenho sede” (Iohan. 19, 28). Fosse esse grito lancinante do divino moribundo entendido em sentido espiritual (sede de almas), fosse ele percebido mais imediatamente em sentido material, e referido às condições ignóbeis de populações a viverem em níveis de extrema pobreza, sem acesso a bens que lhe pudesse proporcionar o conforto de países minimamente civilizados (continuava a pesar, para o bem e para o mal, a imagem de uma palhota apressadamente levantada no meio da floresta), tal compaixão implicava uma dedicação de voluntários, dispostos a viverem junto de populações mal habilitadas e mal integradas no novo mundo que se pressentia de transformações rápidas e intensas para lhes transmitir uma mensagem nova – a do amor de Deus pelos homens. Dedicação de voluntários, a tempo inteiro e em prestação gratuita de serviços por toda a vida, entregues à evangelização por amor do Reino de Deus, era proposta do modelo e da condição dos missionários da Sociedade Missionária, rompendo com práticas do passado, por vontade expressa do Papa: a ruptura com o passado era tão evidente e tão molesta para os que pugnavam pelo anterior modelo, em que se asseguravam reformas de compensação material, que só podia ser assumida por voluntários e homens de boa-vontade.
A presença entre os povos era o primeiro passo para um relacionamento e uma plena integração – de parte a parte, em conhecimento mútuo e em enriquecimento recíproco. Dizemo-lo hoje, fundados na prática de muitos, sem teorias culturais, mas com o bom-senso de quem se aproxima do outro por lhe querer bem e suprindo no conhecimento directo os estereotipos que andavam divulgados (Madre Teresa de Calcutá é do nosso tempo e pertence a esses voluntários que se exilam para viverem da oblação de si mesmos; muitos outros sentiram a urgência da caridade – ficaram anónimos, mas a sua entrega foi fundamental para mudar o mundo).
Para ser testemunho de missão, essa presença tinha que se tornar visível, constante, consistente – por tal modo que criasse receptividade e terminasse em credibilidade.
A estratégia de aproximação implicava o descomprometimento e desapego da cultura ocidental. A isso ajudava a ascese: havia que admitir o desconforto de novas doenças e da falta de meios de todo o tipo; era necessário também robustecer na vontade de querer estar – não como condenado no meio de condenados, mas com a consciência de que a cultura é um processo longo de aprendizagem e de integração até chegar à comunhão ; importava sobretudo que gerar perspectivas – tanto de conhecimento como de preparação de habilitações práticas.
Passo prévio ao envio para a Missão era a formação, pois o convívio só resulta se preparado e desejado. As aulas de Missionologia e a leitura das revistas missionárias na tarde domingo abriam-nos perspectivas e deixavam-nos entrever que o mundo não era só aquele que se divisava em O Calcanhar do Mundo, no alto da serra da Melriça, em Vila de Rei, a dois passos de Cernache do Bonjardim e levava a velhinha que subir amparada pelos netos a dizer que o mundo é muito grande. O mandato missionário do Evangelho confiado aos Apóstolos e a repartição deles pelo Mundo inteiro constitui um quadro de referência. A ele se sobrepuseram outros, acomodaticiamente, sob a capa de poderes e de salvamentos, em que se traçou uma história messiânica e mítica de conquistadores e navegantes da Fé e do Império. Reconhecemos hoje a dificuldade em construir uma Teologia da Missão que, entre as várias valências, tenha a de ser formadora de integração e de reconhecimento do apelo do Outro . Tempos antes, no início do séc. XX, missionários com certa preparação científica no domínio da etnografia e da etnologia haviam-se dedicado ao estudo dos hábitos e costumes dos povos africanos: em Moçambique não faltaram missionários que entraram por esse caminho como foi Herni Alexander Junod, missionário suíço protestante (autor de Usos e Costumes Bantu) e as de Paul Schebesta, dos missionários do Verbo Divino (Congregação que no início do século lançam a revista Anthropos, com a bênção do próprio fundador, Arnaldo Janssen) .
Com esforço (servido mais por intuição e empatia que por preparação científica adequada), o P.e Alexandre Valente de Matos, justamente enquanto caminhava pelo Mutuáli, captou o sentido da cultura da região em que trabalhava e deu o tom que outros iriam tateando ; com verdadeira devoção e inestimável dedicação (com inteligência superior), outro companheiro de missionação, o P.e António Pires Prata dedicou-se à constituição de gramática e dicionário da língua macua , pois a aprendizagem das línguas nativas era uma das primeiras obrigações inculcadas aos missionários da Sociedade Missionária Portuguesa e a maior parte empenhava-se em constituir léxicos e casos de gramática. O estudo e a pregação na língua nativa aproximava o missionário das populações e criava uma empatia que nunca mais se esvaía. Assim fez o P.e José Garcia que desde cedo se fazia entender directamente, sem recurso ao “língua” de que se servia a administração colonial. Este enraizamento na cultura dos povos adoptados tinha por contrapartida a adopção do missionário por parte dos destinatários.
Teve o P.e José dos Santos Garcia uma função fundamental neste esforço. Apercebeu-se ele da importância de viver com os povos macuas e para isso empenhou-se em levantar as estruturas materiais que respondessem ao intercâmbio que se gerava. Ao longo de uma década, mesmo que servindo-se ainda de uma igreja coberta de colmo (que lhe valeu em certo momento uma pequena censura de quem não tinha ainda entendido a dinâmica que animava o missionário), dedicou-se ele a erguer edifícios e a explorar a terra, ao mesmo tempo que ia partilhando a vida das gentes macuas e aprendendo com elas as formas simples de viver. Em pouco tempo, multiplicando as sementes que ia lançando à terra e aproveitando a colaboração que lhe era oferecida ou integrando, em modos minimamente dignos, os trabalhadores que eram postos à sua disposição, deu vulto ao que para outros era apenas sonho e ganhou para um convívio mais alargado o coração de muita gente que vinha ao encontro da catequese e de um nível de vida humana mais digno, sem castigos e cheio de afectos. Sem alardes, em pouco tempo, a sua obra chamava a atenção e era conhecida em todo o Moçambique: Mutuáli passaria a ser lugar de visita para entidades de topo.
A expressão maior de reconhecimento pelo trabalho desenvolvido expressava-se publicamente na eleição de D. José dos Santos Garcia para dirigir uma nova diocese – Porto Amélia, ao norte de Moçambique. Tal escolha tinha a sua razão nesse trabalho, humilde e abnegado, persistente e dirigido a objectivos planeados – em nome do Evangelho e destinado à sua difusão; para o fim tinha ele deixado a igreja da Missão – porque a queria grande para nela caberem os que com ele queriam passar à outra margem do lago, depois de se terem sentado na relva do primeiro encontro (cf. Mat., 14, 16-34) .
Na nota pastoral que emitiu pela criação da nova diocese e pela eleição para ela de D. José dos Santos Garcia, o bispo de Nampula, D. Manuel Medeiros Guerreiro, manifesta o seu júbilo e saúda o novo bispo, qualificando-o de grande trabalhador, “prudente e de invulgares qualidades” . Não era cumprimento de circunstância, pois já em 9 de Dezembro de 1949, no Notícias da Colónia de Moçambique, um anónimo dedicava uma local à Missão de Mutuáli, onde o Superior, Rev.º P.e Garcia, era apresentado como pessoa de “extrema modéstia, mas grande valor pela sua sabedoria e competência”, acentuando, de seguida, que “devotado à causa que serve, bem-intencionado, trabalhador e persistente, enfrenta as mil dificuldades que se lhe deparam”.

3. O perfil de um evangelizador. O percurso de D. José Dos Santos Garcia foi lembrado por várias vezes ao longo da sua vida em múltiplos actos em que foi recebido e homenageado. Ele próprio o narrou em primeira pessoa, mas a memória ganha dimensão com recordá-lo.
Nascido em 1913, a 16 de Abril, na Aldeia do Souto (Covilhã), diocese da Guarda, ao tempo em que era chamado ao episcopado, ia completar 44 anos de idade. Entrara no Colégio das Missões de Tomar em 1925; transitou depois para Cucujães, manteve-se no percurso da Sociedade Missionária, ao tempo em que as decisões de Roma se tornaram definitivas quanto ao modelo e destino dos Colégios das Missões e sua transformação em Seminários da Sociedade Portuguesa das Missões Católicas (ainda a erigir), quando outros tomavam um rumo diferente (em desacordo, com o projecto que agora lhes era proposto ). José Gabriel (como ao tempo era conhecido, recebendo o apelido do nome do pai) contou com a amizade de D. Teotónio Vieira de Castro que, confiadamente, em 1930, lhe entregou dinheiro para utilizar para ida e regresso de férias, caso decidisse continuar – os pais interpretaram tal gesto como declarando que o filho era bem-querido no Seminário e animaram-no a voltar .
Fez Juramento na Sociedade Missionária em 1935 (depois de um ano em que foi chamado a funções de professor e prefeito em Cernache do Bonjardim); foi ordenado sacerdote em 1938 (na igreja paroquial da freguesia de Cernache do Bonjardim). Durante o período de formação teológica e depois já como sacerdote, foram-lhe confiadas funções de prefeito e professor; depois também as de Vice-reitor por largos anos (1938-1945) e, por dois meses (de Setembro a Novembro de 1945), as de encarregado da quinta do Seminário, imediatamente antes de partir para as missões em 13 de Setembro de 1945.
Ciente das suas responsabilidades de formador, espírito pragmático e conhecedor das lacunas existentes quanto aos instrumentos de trabalho ao seu dispor, escreveu ele o compêndio Sagradas Cerimónias, que mereceu edição tipográfica e foi largamente usado na preparação dos seminaristas para o desempenho correcto e digno das cerimónias do altar ; proporcionou igualmente aos seus alunos apontamentos de Matemática – disciplina sempre mal-amada e tanto mais detestada quanto faltavam manuais de estudo. Na formação humana dos seminaristas teve de obviar a dificuldades de vária ordem e ultrapassar limitações agravadas pelas circunstâncias da guerra que grassava na Europa: com inteligência e com bom senso resolvia deficiências do grupo de formadores, moderando o que por vezes era exagero de disciplina dos prefeitos .
Foi o P.e José Garcia designado para Moçambique em 1945 e integrou a sétima expedição missionária da Sociedade para aquelas terras: as suas barbas longas e fartas deram que falar na viagem de barco, tendo sido objecto de algumas apostas entre os passageiros do barco, por considerarem alguns que eram postiças; o missionário entrou na brincadeira com bonomia, mas nunca se desfez do seu distintivo pessoal, que lhe mereceu poder ser imediatamente identificado no mundo inteiro quando, em 1967, apareceu a acolitar o Papa Paulo VI, em Fátima.

 Recebeu-o em Santo António de Unango o P.e Celso Pinto de França, superior da Missão; rapidamente se integrou no trabalho, que tinha de ser repartido por todos e era multiplicado ao sabor das circunstâncias: ficava-lhe no imediato reservado o ensino de várias disciplinas aos alunos do Seminário e da Escola de Catequistas-professores e a pregação diária aos seminaristas. A sua passagem por Unango foi curta, pois no final de Julho de 1946 a responsabilidade da missão passou dos Missionários da Sociedade Missionária para os Missionários da Consolata .
Em 15 de Agosto de 1946 é transferido para a Missão do Mutuáli, onde, por indicação do Prelado de Moçambique, já se tinham instalado os missionários da Sociedade Missionária, em 23 de Dezembro de 1938 . Haviam-se sucedido os superiores na Missão para ajustar funções e integrar os que chegavam de novo com os que tinham já alguma experiência.
Naquele ano, a 16 de Janeiro, o P.e José Lourenço Baptista, entregara a missão do Mutuáli aos cuidados do P.e António Luís de Carvalho; o P.e José dos Santos Garcia toma as funções de coadjutor, mas, em breve, a 15 de Dezembro de 1947, é-lhe confiado o cargo de superior; uma semana depois, em 24 de Dezembro, vê chegar o P.e Alexandre Valente de Matos, que será seu coadjutor e braço-direito, ao longo de dez anos; com ambos vão ficar três Irmãos Auxiliares, em regime permanente, mas por ali vão estagiar outros Irmãos que chegam de Portugal (em 1950, os Irmãos residentes eram o Ir. Domingos, o Ir. Gaspar, o Ir. Martins – um para as obras, outro para a agricultura, outro para as actividades de superintendência doméstica; viria depois o Ir. Veloso e outros). A equipa manteve-se por vários anos, o que diz bem do seu coordenador. Tinha a Missão já então assegurada também a colaboração das Irmãs de Nossa Senhora das Vitórias (Madeirenses). Alguns missionários passarão por Mutuáli antes de assumirem funções definitivas nos lugares de destino, como aconteceu com o P.e Manuel da Silva ou com o Ir. Lopes; embora fora de mão, frequentemente servia de ponto de descanso, pelo bom acolhimento que todos aí encontravam.

4. Ao serviço de Deus e dos Homens. Homem metódico, o P.e José Garcia traça, desde início, um mapa preciso da região em que irá desenvolver a sua actividade missionária e, com serenidade, mede as responsabilidades que recaem sobre os seus ombros: distâncias longas (até Nampula, sede da diocese, que fica a 300 km); espaços marcados de forma irregular com escolas e algumas capelas (umas a 30 km, outras a 80, 90, 115, 120 km…); vida administrativa ainda a estruturar-se, mas já equilibrada com o funcionamento das autoridades nativas, os régulos. Para sede da Missão fora escolhida, havia pouco, a sede do antigo posto administrativo, pelo facto de o responsável se ter retirado com medo de contrair a doença do sono. A população encontrava-se dispersa – havia uma povoação nas imediações, a 5 km, mas outras sedes de circunscrições estão afastadas.Apesar de tudo, a vida já estava minimamente organizada e podiam os missionários usufruir de estação de Caminho de Ferro (a 6 km) para as suas deslocações ou para fazer chegar recursos indispensáveis; por outra parte, entrava em actividades a Sociedade Algodoeira do Niassa. Apercebeu-se rapidamente o P.e José Garcia das fragilidades e procurou ultrapassá-las: viver à mercê das circunstâncias nunca lhe agradou e considerava que era tentar a Deus contar com milagres ou deixar-se levar por improvisações. Imaginou depressa o que havia a fazer: arrotear, plantar as primeiras árvores, atender à capoeira, abrir caminhos, urbanizar, encomendar as máquinas e os utensílios mais indispensáveis, projectar os lugares de habitação e de serviços (a começar pela Maternidade, seguida dos Internatos), prover à captação de água (daria uma demão o P.e Antero da Silva, “vedor” nas horas vagas), explorar os recursos naturais (o barro para a produção de tijolos e de telha), integrar no trabalho aqueles a quem formava ou outros, os contratados, a quem pagava e procurava valorizar. A implantação de um grande relógio de parede na residência dos missionários significava que a vontade humana se impunha ao ritmo (e abandono) da natureza; adquirir a máquina de trabalhar a madeira, montar o moinho para a farinação, proceder à instalação do Posto Sanitário, pôr uma betoneira a trabalhar, procurar meios para a aquisição de um camião ou de um tractor, tudo isto, e muito mais, fazia parte do dia-a-dia. Sem arrebatamentos, em vida dedicada, empenhou-se o P.e José dos Santos Garcia em estabelecer sinais do Evangelho, ainda que fosse apenas para celebrar o culto divino (durante dois anos, dois homens muçulmanos espreitaram a actuação dos missionários e depois pediram o baptismo), mas também para consagrar a dignificação do humano na sua grandeza e diversidade (pelo que nem iria faltar, desde cedo, uma grande sala para actividades teatrais).
Havia poucos recursos de início e sabia-se que a Missão não podia contar com ajudas estranhas. O Superior da Missão não se intimidou. O diário da Missão do Mutuáli não é modelo nem literário nem estrutural, pois é monótono e desigual ou sem continuidade nos acontecimentos, mas, mesmo assim, deixa perceber uma gestão de base engenhosa e consequente e, na ingenuidade do registo, mostra como não inventa o que retrata .
Houve racionalidade na gestão e na procura de recursos. O investimento era feito de tal modo que habitualmente se pagavam, a tempo, as despesas contraídas e se geravam novos investimentos, que, por seu lado, atraíam a atenção das autoridades e revertiam em ajudas financeiras. A previsão permitia acudir a tempo e horas às necessidades que aparecessem. Às contas da Sociedade só foi imputada, por concessão do Superior Geral (em tempo de ajustamento económico), metade das despesas com a aquisição de um camião que chegou em 6 de Agosto de 1949 – 75.000$00, uma pequena fortuna para o tempo (que a diocese não admitiu subvencionar). As rotinas obedeciam a programa delicadamente traçado, em que cabiam actividades espirituais (momentos de oração, retiro dos catequistas e retiro dos missionários), actividades materiais (trabalho de vária ordem) e humanas (convívio familiar e relações com os estranhos – administrativos, técnicos ou forasteiros de passagem). Havia tempo para tudo – para Deus e para os Irmãos! Vivia-se pobremente, mas na alegria dos “filhos de Deus”: como pobres têm os missionários de atender ao dia-a-dia e correr os riscos habituais de serem roubados (como acontece certa vez, no dia 3 de Junho de 1948 em que o cebolo desapareceu da horta) ou de esperar que, em momento oportuno, na despedida de D. Teófilo, este lhes conceda verba para comprarem alguns metros de rede mosquiteira; como pobres se alegram quando uma figueira começa a dar frutos ou se conseguem colher os primeiros de um pessegueiro (para matar saudades); como pobres suportam as doenças, aplicando o remédio (que pode ter consequências inesperadas, como as de uma injecção mal ministrada por um enfermeiro), esperando pacientemente o momento da cura ou confiando-se aos cuidados do posto deambulatório; como pobres deslocam-se nos transportes comuns ou ficam dependentes de pessoas amigas que lhes prestam esse favor, até arranjarem uma bicicleta, depois uma moto, depois outro meio de locomoção (o camião, quando ele é adquirido, ou um pequeno carrito Austin, que se despista numa curva com o P.e José Garcia lá dentro – 12 de Setembro de 1954)! A forma de vida impressionou de tal modo os Inspectores Escolares (de Lisboa e de Nampula) como se pode deduzir do relatório que, no dia 20 de Maio de 1948, transmitiram ao bispo da diocese: a Missão do Mutuáli era a mais pobre de quantas tinham visitado até ali, mas uma das mais bem organizadas… No entanto, o Diário não anota qualquer queixume ou comentário; apenas em outro momento refere que os investimentos (em maquinaria) não tiveram origem na diocese – sorriso algo traquina, para gozar um pouco, quando tudo acabava em bem. Em contrapartida, o mesmo Diário confere importância a “ramalhetes espirituais”, em favor da acção missionária em Mutuáli, uns enviados por amigos distantes, outros subscritos por nomes desconhecidos, comunicados por carta e agradecidos em tempo oportuno, com a sinceridade de quem sabe que está ao serviço de Deus e Ele tudo encaminha na sua Providência. Não notamos, nesses primeiros tempos, nem registos de entradas de dinheiros nem reclamação de ofertas (algumas apareceriam mais tarde, em consequência das boas relações estabelecidas por amizade ou quando as autoridades têm de vergar-se à realidade da dedicação, pelos resultados de um trabalho humilde e dedicado)! Quando as colheitas não correspondem às expectativas, reage-se com o desabafo que é um acto de fé: “Deus super omnia”. A oferta de um garrafão de vinho de 10 litros é motivo de agradecimento aos amigos e a Deus. Tal como em casa de qualquer pobre, espreita-se o tempo e deseja-se a chuva benfazeja ou aposta-se na lotaria; não saiu nada? – Paciência. Partilha-se com os outros o que se consegue produzir: em 31 de Dezembro de 1948, envia-se ao Chefe de Posto um cabrito, com os votos de Boas Festas e Feliz Ano Novo.
As maiores alegrias vêm da celebração de sacramentos com a Cristandade que vai crescendo: no Natal de 1948, festejam-se 13 baptismos e 7 casamentos; no final do ano, são 121 os baptismos. Conclui-se que no ano que finda se receberam muitas graças:uma delas foi a da entrada da Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima por Mutuáli, quando passou da diocese da Beira para a diocese de Nampula; tal acontecimento deixa um rasto de luz que preenche algumas páginas do diário, com o texto da homilia do Superior da Missão e com o texto da Consagração da região ao Imaculado Coração de Maria, lido pelo próprio Administrador do Mutuáli.
A pouco e pouco, a obra vai crescendo, tornando-se árvore, onde as “aves do céu” vêm pousar e os “filhos de Deus” vêm abrigar-se, como se lê no Evangelho. O Diário do Mutuáli regista esse crescimento, em linguagem simples, pontilhada de pequenos acontecimentos e de entranhados afectos – alguns que mais se adivinham do que se exprimem, mas se alargam. É facto: os registos do Diário são testemunho insuspeito e traduzem bem a sua dedicação missionária e a sua determinação no trabalho; por outro lado, os resultados obtidos com a catequese e com o levantamento de estruturas tornam conhecido o Superior da Missão do Mutuáli.
Sua preocupação, desde início, foi a inserção no meio de chegada (reconhecimento das possibilidades materiais e conhecimento das populações, para o que a aprendizagem da língua se lhe tornou exercício feito com afinco e gosto); logo depois, preocupou-se com o estabelecimento de estruturas de base que lhe permitissem proporcionar uma sólida formação humana e cristã aos que aceitavam a evangelização.
Ao fim do primeiro ano de estadia em Moçambique, sem desmerecer do trabalho que lhe fora confiado, o P.e José Garcia havia já composto, para uso pessoal, uma colectânea de homilias em língua macua. Agora, com raro sentido das possibilidades e das oportunidades, encontra os meios necessários para resolver necessidades e lança os fundamentos para uma pastoral de evangelização consequente: valendo-se da colaboração de colegas (como foi a do P.e Alexandre Valente de Matos e Irmãos Auxiliares – Ir. Cipriano, Ir. Veloso, Ir. Domingos e outros que por ali passam ou ali vêm estagiar) e com o apoio de religiosas (Irmãs de Nossa Senhora das Vitórias – Madeirenses) ou com o contributo de catequistas que o acompanhavam de perto na assistência às comunidades humanas dispersas por um vasto território, projecta e executa as estruturas fundamentais para a formação humana e cristã daqueles que se apresentavam ao baptismo. Lançando mão de meios exíguos, foi dotando a sede da missão de Mutuáli com um conjunto de edifícios tão imponentes nas suas dimensões como importantes nas perspectivas pastorais que lhes estavam subjacentes: dois internatos (masculino e feminino), com 80 metros de frente, flanqueavam a igreja (que foi a última a ser levantada); em redor, levantou outros edifícios que foram crescendo harmoniosamente, abrangendo escola, posto médico, maternidade, oficinas, instalações para pecuária e agricultura. A igreja definitiva foi benzida apenas em 3 de Outubro de 1956 pelo bispo da diocese, mas, a essa data, no total, a Missão de Mutuáli, dedicada a Santa Teresinha do Menino Jesus, contava já com 12 edifícios de alvenaria, com áreas cobertas de mais de 12.000 metros quadrados. Pastoralmente, a Igreja dos corações estava assegurada e a igreja-edifício podia avançar como sinal da primeira que começara com a catequese mesmo debaixo de um embondeiro. O catecumenato ocupava lugar prioritário, sendo frequentado de cada vez por uns trezentos rapazes e raparigas vindos da periferia e recrutados pelas escolas (numa rede de sessenta espalhadas pela área da missão, vulgo mato); famílias inteiras podiam participar na formação, em grupos de quarenta, a viverem um ano inteiro na zona da missão; a catequese era acompanhada de formação humana, feita no amanho da terra ou no desempenho de trabalho de oficina. Para atender a toda esta população, eram necessários meios: a exploração agrícola com os serviços anexos servia para a formação humana e para resolver os problemas mais imediatos de subsistência; as verbas que a diocese distribuía aos missionários, em aplicação do Acordo Missionário, eram feitas com parcimónia e racionalidade em favor da evangelização, nomeadamente para pagar a catequistas que, na sua condição de professores, serviam o duplo objectivo de elevação do nível de vida das populações e de acompanhamento na prática cristã. Faltam-nos as suas crónicas de apostolado, à maneira das do seu colega, P.e Alexandre V. Matos, a quem eram confiadas a viagens pelo “mato” e de onde saíam saborosos relatos de convívio com catequistas e cristãos ou gente simples que, mesmo sem estarem baptizados, se aproximavam de quem lhes queria bem (O Missionário Católico registou bastantes desses relatos). No relatório de final de ano pastoral, em 1953, comentava D. José o trabalho realizado pela equipa missionária, composta por ele, dois sacerdotes coadjutores, dois irmãos auxiliares e quatro irmãs da Congregação de Nossa Senhora das Vitórias: “A área da missão mede 12.600 km2. A população passa dos 85.000 habitantes. Contam-se já 2.011 católicos, sendo 390 europeus, 1.576 africanos e 38 mistos. Ao lado de ainda 74.777 pagãos contam-se 6.350 maometanos e 250 protestantes. Os catecúmenos são 2.100. No correr do ano, administraram-se 323 baptismos e 29.400 comunhões, e deram-se 12.981 lições de catequese. Funcionaram, na área da missão, 69 escolas, sendo 9 de letras e 60 de catequese, com 5.980 alunos matriculados, de ambos os sexos. Os catequistas, na sua maioria, exerceram um apostolado bastante profícuo. Além de dezenas de casais, trazidos para a missão, a fim de se prepararem para o baptismo e renovação do consentimento matrimonial, baptizaram-se 90 pessoas em perigo de vida. Os dois internatos da sede funcionaram com 133 rapazes e 101 raparigas. Na sede da missão, funcionou um catecumenato para famílias já constituídas, onde cerca de cem catecúmenos tiveram um ano de preparação para o baptismo. No dispensário, foram tratados 3.044 doentes e fizeram-se 45.082 curativos. As visitas aos doentes foram em número de 320. Deram-se 4.317 injecções. A maternidade registou o nascimento de 49 crianças. Fora dos trabalhos agrícolas, alunos da missão frequentaram as oficinas de alfaiataria, carpintaria, cerâmica, sapataria, serralharia, serração, etc.” Ao fim de seis anos de acção missionária, em 13 de Março de 1953, foi o P.e José Garcia nomeado Superior Regional dos missionários da Sociedade na Diocese de Nampula (sucedendo ao P.e Albano Mendes Pedro que era chamado a funções de assessoria no Ministério do Ultramar, depois de Mons. Amadeu Ruas). Aumentavam as responsabilidades, não esmorecia a sua actividade pastoral, apesar dos percalços de uma saúde relativamente débil.
5. Do Mutuáli para a diocese de Porto Amélia. Mutuáli passou a ser um lugar de referência: a 21 de Abril de 1953, chegam dois indivíduos americanos para visitar as instalações – anota o Diário, com a ingenuidade habitual, que “desconfiando-se de que fossem espiões, o Rev.º P.e Superior informou-os de tudo, com uma certa reserva”. O P.e José S. Garcia era prudente, porque conhecia o coração dos homens, era discreto, mas observador: não admira por isso que lhe tivesse sido confiada a função de Superior Regional. As autoridades cimeiras da política demonstravam que seguiam a sua actividade e por isso, no dia 1 de Maio de 1953, o próprio Governador Geral de Moçambique apresentava-se a visitar a Missão do Mutuáli, acompanhado das autoridades distritais, e dando a notícia de que pretendia trazer ali o próprio Presidente da República, Gen. Craveiro Lopes, quando ele fizesse a sua visita a Moçambique .

  

Ao comentar a sua sagração episcopal, em 1957, o diário Novidades, de Lisboa, havia de destacar as suas “notáveis qualidades de inteligência, capacidade de trabalho e de organização”. Retrato verídico de uma personalidade generosa – que não perdia tempo a congeminar estratégias nem a discutir políticas. Homem prático, tinha por guia o Evangelho e por norma a caridade, fazendo-se tudo para todos, para a todos anunciar Jesus Cristo – com a simplicidade do coração e com a intuição que lhe permitia aproveitar os meios existentes para responder às necessidades que se lhe apresentavam, fazendo-o com olhos postos no futuro e por isso estruturando o que tinha à sua disposição. O Diário de Mutuáli, em 10 de Abril de 1957, apenas regista que “o rádio divulgou a notícia que o Rev.mo Superior desta Missão, P.e José dos Santos Garcia, fora nomeado primeiro bispo da diocese de Porto Amélia”; no dia 12, anota apenas que “têm chegado alguns telegramas dirigidos ao Senhor Bispo eleito de Porto Amélia”. Admitamos que não é fácil mudar de registo de escrita, mesmo que o mundo se altere à nossa volta – de facto, por muito que se pense o contrário, esse mundo é do tamanho da nossa sombra e esta é mínima nos trópicos à hora do meio-dia! Aparentemente, o ritmo de vida muito pouco se alterou nos dias imediatos na Missão do Mutuáli: D. José continua a visitar as comunidades; viaja de comboio, como noutro tempo; para qualquer eventualidade, faz-se acompanhar de um Irmão Auxiliar; procede a transferência de funções, sendo isso facilitado pela presença em Nampula do Superior Geral da Sociedade. Sabemos hoje que era vontade do novo bispo receber a sagração episcopal na igreja de Cucujães, em homenagem à Sociedade Missionária que ali tinha a sua Casa principal e como testemunho da sua vinculação a ela; com isso tencionava também significar quanto esperava da colaboração pastoral dos membros do Instituto na nova diocese a que ia presidir. Por razões aparentemente menores, tal desejo não foi secundado pelo Superior Geral da SM. A cerimónia teve lugar na catedral de Nampula em 16 de Junho daquele ano, com a presença de quase todos os bispos moçambicanos e com grande representação de todas as Missões confiadas à Sociedade Missionária em Moçambique e de outros Institutos.
A autoridade de que ficava revestido dava a D. José a autonomia própria de quem está directamente associado aos responsáveis pela sucessão apostólica – Papa e Bispos. A Sociedade Missionária sentia-se particularmente vinculada ao Bispo que saíra das suas fileiras e no seu meio criara uma experiência de vida apostólica. Com a SM manteve laços de estreita e viva colaboração, considerando-se sempre como um dos seus membros, visitando as suas Casas com regularidade e mostrando-se sempre disponível para as iniciativas para as quais fosse convidado. Contava com a colaboração dessa mesma Sociedade e sem fazer discriminações a outros, por deferência, apresentava os seus projectos ao Superior Geral da Sociedade, por admitir que com isso adiantava tempo na planificação de trabalhos e na designação de missionários; admitia que nem todas as previsões podiam ser satisfeitas nem todos os pedidos iriam ser atendidos, mas era sabido, e nem ninguém lhe levava a mal que tivesse a seu lado aqueles que conhecia melhor e solicitava para a organização da diocese. Assim acontece com a formação da Cúria Diocesana e na escolha do Vigário Geral (tendo sido cedido o P.e Joaquim Lopes Valente, licenciado em Direito Canónico, na Universidade de Salamanca, prescindindo da sua participação na esquipa formadora do Seminário de Cucujães, onde ensinava as disciplinas de Direito Canónico). Mantendo uma relação directa e interessada, colocava-se também D. José à disposição da para funções que estivessem ao seu alcance. Assim ministrou ordens a muitos dos membros da Sociedade, na capela de Santa Filomena, em Cucujães, quando para tal era convidado e tinha disponibilidade (assim aconteceu em 1962, ano em que o signatário destas linhas foi por ele ordenado de presbítero, num grupo de oito).

6. Território a estruturar pastoralmente. Em Moçambique, tinha D. José o coração e com toda a inteligência e generosidade se dedicou à nova diocese que a Igreja, pela voz do Papa, lhe entregava. Ganhara ele a amizade de muita gente naquela terra do Índico; a confiança que havia concitado iria permanecer, agora em condições novas que haveriam de ser frequentemente dolorosas. Não desanimou até que as forças se esgotaram e a doença o levou a pedir a substituição. Coincidia a Diocese de Porto Amélia com as dimensões do distrito de Cabo Delgado, divisão administrativa criada em 1954, o qual era constituído por dois concelhos (Porto Amélia e Ibo) e diversas circunscrições (Macomia, Macondes, Mecúli, Mocímboa da Praia, Montepuez, Palma e Quissanga), com uma população oficialmente estimada em 497.105 habitantes, distribuídos por 78.480 Km2. As dimensões territoriais eram enormes; o número de católicos era de cerca de 37.000; a evangelização contava com 31 Sacerdotes, dos quais 29 Monfortinos e 2 do clero secular, 2 Irmãos Monfortinos e 27 Irmãs da Consolata, distribuídos por 10 Missões, com 357 escolas de ensino rudimentar, com 372 professores para 32.253 alunos . Os Missionários Monfortinos haviam chegado em tempos relativamente altos para a entrada de outros Missionários: vinham da Holanda e tinham recebido indicações do Papa Bento XV para exercerem apostolado em Moçambique; entraram no Norte e fundaram a Missão de Namuno em 1922, a de Nangololo em 1924, a que se seguiram outras; tinham sido chamados pela Companhia Majestática do Niassa, cuja concessão em terras moçambicanas terminou em 1929. As Irmãs da Consolata estavam no norte de Moçambique já em 1930.
Mal teve tempo para viver em tranquilidade os seus tempos iniciais de bispo, pois a doença, primeiro, e a participação no Concílio Vaticano II, quase em simultâneo, levaram-no para fora da sua diocese. Sempre atento, porém, como o Bom Pastor do Evangelho, estava disponível para regressar no primeiro momento em que fosse necessário tomar decisões importantes. Alguns anos depois, foi a guerra pela independência, sobretudo a partir de 1965, a tornar difícil o encontro com as cristandades que lhe tinham sido confiadas e que, apesar das dificuldades, não deixavam de demonstrar que estavam unidas ao seu Bispo e comprovar que mantinham uma fé deveras arreigada.
Como divisa de armas escolheu D. José o lema Caritas Christi urget nos – a caridade de Cristo nos impulsiona; no campo do escudo, apenas se vê o XP, o crísmon, símbolo de Cristo, encimado por três rosetas vermelhas, a simbolizar a virtude da caridade, bebida na sua fonte divina, o amor do Pai pelo Filho no Espírito Santo, e a lembrar a chuva de rosas que Teresinha do Menino Jesus, padroeira da sua Missão do Mutuáli, prometera distribuir pelos seus devotos e particularmente pelos missionários que adoptara.
Era uma escolha que coincidia com uma personalidade: simplicidade, fixação no essencial, liberdade no resto, caridade acima de tudo (segundo a divisa atribuída a Santo Agostinho, in fide unitas; in dubiis, libertas; in omnibus caritas). A urgência era de tempo e era de mandato, na consciência de uma Igreja a que faltavam meios, mas à qual não podia falta dedicação – como serviço a quem a quisesse aceitar, mas envolvida com os mais pobres.
Tinha presente no seu espírito que, num momento histórico de mudanças planetárias (com tudo o que significou a voz erguida na Conferência de Bandung em 1955 – onde entram na cena internacional os chamados os “Países não Alinhados” ou “Países do Terceiro Mundo”), fora chamado a colaborar apostolicamente numa acção missionária que tinha séculos de esforço : apesar das interrupções, havia uma história de Igreja em Moçambique e D. José sentia que a sua acção missionária devia fazer expandir a semente que, num momento quase perdido no tempo, pelos anos de 1500, fora depositada naquele território do Índico .
A evangelização dos novos tempos implicava o anúncio do Evangelho, em acções de humanização plena: comunhão com as velhas Igrejas pela presença de enviados seus; acção de catequese, implantação de comunidades de culto. As acções de formação humana, de escolarização e de assistência desenvolvidas em Mutuáli haviam servido para consolidar uma experiência que agora podia ser continuada em âmbito diocesano. Pragmático, soubera encontrar fórmulas fáceis de reter e fáceis de explicar: quatro verdades fundamentais, tomadas do Credo e do Ritual do Baptismo serviam de base; honestidade de vida e prática de fé, em comunhão com a comunidade cristã.
A Diocese de Pemba deve a D. José a criação de todas as estruturas fundamentais de uma Diocese, a começar pelos Seminários e pela formação de vocações de vida consagrada. Em 1 de Julho de 1973, entregava a Missão da Mesa aos padres nativos, o P.e Atanásio Valério Muitu e ao P.e Bernardo Américo Nrimohúviha, formados nos dois Seminários da Diocese de Porto Amélia. A essa data, já haviam sido ordenados oito padres africanos, fruto da actividade desenvolvida no Seminário Menor de Mariri e no Seminário Maior de Porto Amélia ; a primeira ordenação ocorrera em 1968. Não havia demorado D. José a promover uma Congregação Feminina de consagradas: em 1959, como Pia União, que em 1967 recebia as primeiras profissões; em 1972, era promovida, por decreto próprio a Congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria, que em 1999 perfaziam 19 professas e 3 noviças, tendo, nessa data, já falecido uma ; na sua formação estava previsto possuírem o curso secundário completo. Em 1973 tinha o bispo como colaboradores 47 sacerdotes, 13 Irmãos Auxiliares, 67 Religiosas e 1 missionária leiga; como auxiliares de evangelização contava a diocese com um contingente de 542 professores e monitores de Posto Escolar, que eram também catequistas; o ensino estendia-se dos níveis elementares até ao Ensino Secundário – Colégio Liceal de São Paulo, de Porto Amélia; Escola de Formação de Professores do Chiúre; compreendia também Escola de Artes e Ofícios.

7. Tempos difíceis de uma missão episcopal. Orgulhava-se D. José, com razão, da promoção que tinha empreendido em favor do povo africano nas zonas onde trabalhara. Conheceu abusos e lutou contra eles, chamando a atenção das autoridades, quando a lei não era cumprida; era respeitado, mas não tinha competências para mais nem ele se considerava juiz (cf. Luc. 12, 14) para cominar penas ou decidir de diferendos (“milandos”). Os africanos ficavam sensibilizados com a defesa que fazia das suas vidas e convenciam-se de que estava a seu lado. Poderia ir mais além? A distância (de tempo e de mentalidade), é fácil reclamar denúncias públicas, mas não era essa nem a sua vocação nem a sua própria forma de estar alguma vez o levaria a lutar contra o sistema político: embora não o considerasse perfeito, não o contestava por lhe reconhecer possibilidades de melhorar e lhe permitia trabalhar na evangelização. Na tarde da vida, escreveu que de há muito tinha consciência de que a permanência da administração portuguesa em terras africanas não podia aguentar por muito mais tempo . Não temos que pôr em causa a sua palavra, mas quer-nos parecer que se trata de uma transferência deslocada no tempo, já que o tempo a que se refere é a escola primária; provavelmente, as reflexões feitas com outros durante o Concílio Vaticano II e a observação da realidade impuseram-lhe um juízo que prudentemente nunca expressou (nem em Moçambique nem em Lisboa) e que dolorosamente guardava para si ou reservava para os momentos de oração com Deus e para confidências em hora de exame de consciência. A mentalidade de toda a primeira parte do século XX era diferente.
Foram precoces os acontecimentos dirigidos à independência que teve de conhecer na sua Diocese de Porto Amélia. As modificações ocorridas em África, ao longo dos anos 60, foram rápidas e dolorosas. Não lhe causaram inteira surpresa: tinha consciência de quanto as gentes da sua diocese, mormente no planalto dos Macondes, eram ciosas da sua identidade ; à medida que foi tomando conhecimento das resistências e lutas formadas contra a actuação da Companhia Majestática do Niassa, ter-se-á convencido do irredentismo dessas populações – menos dóceis que as de etnia macua, que conhecia do Mutuáli e encontrava na parte Sul da sua Diocese (entre o sábio, macua, e o altivo, maconde, havia diferenças fundamentais).
D. José apreciava as qualidades dessas suas gentes, prezava a sua fidelidade, mas sabia também a dificuldade em ganhar a sua confiança, pois ela só se revelava como resultado da boa convivência e depois de convencimento das boas qualidades e intenções da outra parte. Sabia que só ao fim de meia-dúzia de anos a observarem as atitudes dos Missionários Monfortinos, as gentes do Planalto se haviam aproximado e tinham aderido ao que eles lhes propunham: “só em 1930 os Macondes começaram a converter-se à fé católica, em grupos”, assevera; por coincidência, acrescentamos nós, a essa data, a Companhia do Niassa, que durante décadas nada conseguira contra as resistências macondes, extingue-se e a administração passa para responsabilidade directa das autoridades portuguesas. Nos anos posteriores, apesar das dificuldades da II Guerra Mundial, as missões da região dos Macondes foram crescendo em número e as expectativas de aumento de cristãos eram grandes entre os missionários .
No entanto, escreve D. José nas suas memórias, havia grande descontentamento, pelo esquecimento a que as populações se sentiam votadas e pelos modos como frequentemente eram maltratadas por uma administração colonial, servida por gente que, na selva, se libertava de escrúpulos morais e pouca preparação humana trazia. Surpreendido, no entanto, pelos acontecimentos de 16 de Junho de 1960, em que inicialmente não viu mais que um descontentamento contra abusos e abandonos (falta de estrada e falta de benefícios públicos para acesso a bens comuns), considera insensata a reacção das forças de segurança contra uma população sem armas. Lendo com atenção a carta que S[imão] Matola escreve a seus filhos em 26-6-1960 , onde relata os acontecimentos do dia 16, havemos de inferir que o levantamento não foi espontâneo e que os cabecilhas procediam do Tanganica e tinham motivações revolucionárias – a referência a Julius Nierere que podia influenciar os governos da América, da Rússia, da Alemanha e da China não permite dúvidas. Por outro lado, a reacção armada, os ferimentos e as mortes bem como a ocupação de Mueda pela tropa portuguesa (retomando posições abandonadas em 1929 pela Companhia do Niassa) ofendeu o brio maconde e nada se podia augurar de bom, muito embora o Governador do Distrito tivesse prometido melhorar as condições de vida. As mortes não foram esquecidas e a acção revolucionária foi ganhando adesões. Quatro anos se passaram e outro episódio sangrento agitou definitivamente a vida da Diocese. A morte do missionário monfortino, P.e Daniel Boormans, em 24 de Agosto de 1964, atingido por uma seta e morto depois à catanada, é já sinal de um conflito em marcha e da sua penetração nas comunidades cristãs. A dimensão do acontecimento não foi imediatamente compreendida e percebem-se as hesitações do registo de D. José. O atentado foi interpretado inicialmente como devido ao facto de se tratar de pessoa desconhecida – “estava em Nangololo só há oito dias”; pouco tempo depois, no entanto, já é visto como consequência de estratégia montada por extremistas que vivem no exterior, “sabendo-se por algumas cartas vindas do Tanganica que os missionários seriam tratados como qualquer europeu”.

Facto é que, no grupo de atacantes, havia cristãos (um professor da Missão e um indivíduo que era Presidente de um grupo da Legião de Maria – reconhece-o quem os formou) e que o afrontamento chegara ao ponto de um deles ter subido para o carro que transportava o corpo do defunto para o cemitério. Acto isolado para marcar posição? Talvez, embora o bispo preferisse a informação que atribui o acto a desespero por ter falhado o golpe contra o Chefe do Posto administrativo do Chai, que não compareceu no local onde era esperado; verdade é que, se fosse por ódio aos missionários, teria sido relativamente fácil atacar todo o grupo de missionários a que pertencia o P.e Daniel, já que a comunidade se encontrava reunida para retiro espiritual. Havia que reconhecê-lo: ao longo de quatro anos, haviam-se agravado as condições, por um processo evolutivo que não recuaria. Assistiu assim o bispo de Porto Amélia aos levantamentos anti-coloniais, a começar pelo depois chamado “Movimento dos Macondes”, formado na sequência dos acontecimentos de 16 de Julho de 1960. Julgamos entender dos registos de D. José que ele fez sentir, verbalmente, os erros cometidos aos responsáveis governamentais e que, na análise conjunta, pôde assegurar-se de que eles reconheciam que a actuação das forças havia sido errada, pois a multidão que se apresentara frente à Administração vinha desarmada e apenas pretendia protestar contra o abandono a que se encontrava votada. Pequena consolação num mundo que já era diverso daquilo que aparentava. Sofreu depois o bispo de Porto Amélia com a morte do primeiro missionário, sentindo-a tanto mais quanto não pôde estar presente nas cerimónias fúnebres (falta de transporte aéreo, que, num primeiro momento ainda se considerou possível); mais ainda lhe custou saber que entre os cabecilhas havia cristãos que se movimentavam por ódio. Na sequência de tudo isso, pesava-lhe a desorientação por que passaram as suas comunidades cristãs: ao longo de anos desconheceu onde paravam 40.000 cristãos das suas comunidades; perdeu 92 professores e 59 catequistas; em 1968, teve conhecimento, pelo P.e Guilherme Meels, em visita ao Tanganica, do trabalho que a Legião de Maria levava a cabo, através de 40 Presídios. Por consequências da guerra, teve a diocese de encerrar 7 Missões florescentes, na região dos Macondes, já em 1965; outros encerramentos se tornaram inevitáveis tempos depois, em 1971, por falta de professores, devido à sua inscrição no serviço militar. Foi parco D. José em descrever as reflexões feitas com os seus missionários. Observava atentamente, ouvia, reflectia, calava e agia com prudência, depois de estudar as consequências. Não lhe conhecemos qualquer comentário ao acolhimento dado por Paulo VI aos representantes dos Movimentos de Libertação de Territórios Portugueses, em finais de Junho de 1970, mas a essa data já ele tinha sido provado ao longo de dez anos. De forma declarada, considerou que os Macondes se deixaram atrair e dominar pelos dirigentes da FRELIMO e que sem a organização dos Macondes a FRELIMO não teria chegado ao poder, mas concede que a FRELIMO não actuava, programaticamente, contra as Missões, tendo até procedido contra os assassinos do P.e Daniel Boormans. Seguindo com apreensão os acontecimentos, ponderando os efeitos negativos extremos da desconfiança e da insegurança desencadeadas e bem assim a redução de campo de trabalho, não cruzou os braços. Defendeu as suas comunidades contra excessos de zelo da administração (num caso, contra um grupo da Legião de Maria); a caminho de uma das sessões do Concílio Vaticano II, em 2 de Setembro de 1964, deixou indicações para estabelecer uma rede de comunicações por via rádio, mas desistiu do intento, por inútil, apesar de ter obtido anuência por parte das autoridades. Entre este fazer e desfazer de planos, a situação agravou-se.
Por uma carta de Simão Matola para sua família, a 31 de Julho de 1965, guardada por D. José, percebemos que no seguimento dos acontecimentos de 1964, logo em Agosto, há homens que são forçados a sair para o Tanganica (a carta refere-se a 32, dos quais o régulo Licomatere, e um capitão-mor Chinandere), onde ficam presos por longos meses, em condições deploráveis (alguns chegam a morrer por maus tratos, a comida que lhes dão está deteriorada – a ponto de Simão Matola considerar que “agora a terra de Tanganica é muito pior de mais do que antes que governava[m] brancos; isso é verdade, eu digo” ). Procurou D. José atender às circunstâncias particulares das comunidades cristãs. Foi o bispo procurado por muitos (cristãos e não-cristãos) que viam nele uma tábua de salvação no meio da confusão e da intranquilidade da guerra. Teve ele de arrostar com ataques a missionários (mais corajosos ou mais desinibidos) na assistência aos seus cristãos (foi o caso do P.e Paulo Lopes, da SM, que, finalmente, o Comandante General do Exército Português, Gen. Kaulza de Arriaga mandou reconduzir ao local onde fora preso pelas tropas portuguesas ); ignorou, ou apenas em privado revelou, destemperos de algum missionário, preferindo o prudente silêncio, compreendendo atitudes e desculpando-as, mesmo quando o atingem pessoalmente ; impede, com o apoio dos Consultores Diocesanos, que um dos Sacerdotes macondes seja aproveitado politicamente numa missão à ONU . Sabia que nas proximidades das Missões se acoitavam rebeldes que se misturavam com as populações para se apresentarem a receber apoio alimentar ou médico-sanitário: não admitiu denúncias nem qualquer tratamento discriminatório. Defendeu os missionários de calúnias e desconfianças: já em 1964, submeteu à decisão dos missionários a aceitação de militares nas Missões, quando isso foi proposto como defesa; embora considerando que o encerramento das Missões tinha mais inconvenientes que benefícios (ao menos com a presença dos missionários evitavam-se extremismos), não contrariou as decisões tomadas pelos missionários Monfortinos, pelo que mais tarde um deles, com respeito a amizade, lhe confessou que, como pastor, tinha exagerado no conformismo, ao procurar ser prudente . Verdade é que os próprios cristãos, nomeadamente os responsáveis pelos grupos da Legião de Maria, aconselhavam a não arriscar o regresso. Reagiu com prudência às manifestações hostis aos missionários e defendeu-os junto do Governador-geral (documento de 16 de Janeiro de 1965) ou de outras instâncias (por vezes com uma simplicidade que desarmava os mais enquistados) e, junto das autoridades de Lisboa, concretamente junto de Salazar, evitou a expulsão dos Missionários Monfortinos ; arbitrando com eles a sua deslocação, quando a sua vida pudesse estar em risco nalguma Missão , respeitou a decisão por eles tomada de encerramento de algumas Missões, já em Março de 1965, e sancionou as instruções a dar aos cristãos na ausência dos missionários.
Junto das autoridades civis e militares, depois de ter levado o assunto numa Assembleia de Bispos, reclamou e conseguiu D. José o direito (porque era também dever) de prestar assistência religiosa a todos os que a procurassem; assim garantiu protocolos de circulação (salvo-conduto). Numa primeira deslocação, a 3 de Dezembro de 1968, a missão foi confiada ao P.e Jan Guilherme Meels (de seu nome completo) e ao seu acompanhante José Ernesto Macanga; em Nangololo, no entanto, o P.e Meels encontrou um dos cristãos que andava no mato, presidente de um Presídio da Legião de Maria, que havia sido preso pelo exército português há três semanas e conhecia bem a situação: o Gregório (assim se chamava ele) desaconselhou a visita, por saber que a Frelimo não a aprovava e que ele seria morto imediatamente ou levado à força para o Tanganica e entregue às autoridades da Frelimo, com as consequências que daí adviriam. Ao fim de duas horas de diálogo, o P.e Meels não tinha coragem de avançar; comunicou a sua apreensão ao Comandante Militar de Nangolo e pediu para transmitir a sua situação ao Bispo de Porto Amélia, o que foi feito: em resposta, veio um avião para levá-lo de regresso. O P.e Meels redigiu uma exposição dos factos, que enviou ao Comandante de Nangololo, Major Horácio Vilhena de Jesus, para a difundir pela região; recebeu como resposta um convite para voltar, pois já encontraria a igreja da Missão “desocupada, reparada e aberta ao culto” e a confirmação de que carta tinha já sido divulgada. A 27 de Janeiro de 1969, o novo Comandante informa da apreensão de informações que referem contactos da Legião de Maria com o P.e Meels; solicita confirmação de autorização do bispo da diocese; este responde, a 20 de Fevereiro, que o material apreendido passou por outro intermediário e que nada havia a censurar ao P.e Meels. A delicadeza e a isenção eram escrupulosamente observadas – ao menos por parte dos militares, pois, por parte da PIDE, D. José sabia que a vigilância era constante. No final da guerra, D. José recebeu a informação de que uns 200 Catequistas, de combinação com a Legião de Maria, haviam feito nada menos que 66.248 baptismos, preparado e assistido 550 matrimónios durante os dez anos que tinham ficado privados de contactos com os missionários. De tudo faziam eles registo que guardavam (em latas que enterravam). Fizeram eles questão de entregarem os documentos ao seu bispo: o encontro foi pedido com urgência e D. José, que se encontrava em reunião episcopal na cidade de Lourenço Marques, tomou o avião e foi propositadamente receber a representação formada por três catequistas. Era Dezembro de 1974.
Dias depois, ao dirigir-se a Nangololo em 12 de Janeiro de 1975, além de uma multidão de cristãos, computada em 2.000 pessoas, teve a apresentar-lhe cumprimentos as autoridades militares e políticas da Frelimo. A recepção foi emocionante. Na despedida ficaram as suas palavras: “A paz vos deixo; estarei convosco”.
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8. Apóstolo na retaguarda. Homem de acção, D. José dos Santos Garcia, como padre e bispo missionário, apostava na simplicidade das actuações e na colaboração que oferecia e solicitava – com humildade e sem alarido, deixando liberdade de acção pastoral, intervindo com mão firme quando isso se tornava necessário. Despediu-se da Diocese de Porto Amélia em 28 de Janeiro de 1975, depois de se ter despedido dos seus sacerdotes, a 12 do mesmo mês, na Festa do Baptismo do Senhor. Anteriormente, durante o mês de Setembro, tinha percorrido os caminhos da Diocese para um último contacto com as cristandades. As razões eram muito objectivas: porque as forças lhe minguavam e porque a saúde o obrigava a ausências prolongadas do campo de trabalho, considerou que seria tentar a Deus esperar que Ele supriria o que lhe ia faltando; por outra parte, olhando em frente e reflectindo sobre as exigências dos novos tempos, considerou que outros podiam e deviam assumir o leme da direcção pastoral. Fez questão de se despedir de toda a população, crentes e não-crentes, cristãos e não-cristãos. Entrara nela sem se demorar mais que o necessário para receber o sacramento que o instituía como bispo e para vencer as distâncias que o separavam do seu anterior posto de trabalho; toma posse da Diocese em 16 de Junho de 1957 e entra em funções a 20 de Junho. Despedia-se agora com a simplicidade com que entrara, entregando a Deus a obra realizada, congratulando-se com todos quantos tinha encontrado pelo caminho, particularmente os sacerdotes, seus companheiros de trabalho, a quem procurado garantir a “a liberdade de iniciativa permitida pela legislação eclesiástica e com a necessária e suficiente orientação pastoral que as circunstâncias aconselhavam”. Não hesitou em prestar contas declaradas de uma administração serena e firme, com superavit verificado pelos Consultores Diocesanos e com uma obra material que em dezassete anos dotara a Diocese com um total de 145 edifícios, entre os quais se contavam os dois Seminários, um Colégio Liceal, uma Escola de Professores-Catequistas, igrejas, residências, escolas, dispensários, além de edifícios de rendimento para a Diocese.
Com humildade, retirou-se para Aldeia do Souto, onde passou 35 anos em comunhão e sintonia plena com os representantes da Igreja diocesana da Guarda e na disponibilidade que lhe permitissem as suas forças – em assistência pastoral e em administração de sacramentos ou também na partilha das suas reflexões e práticas, mormente na leccionação da disciplina de Missionologia no Seminário da Guarda, bem como num convívio discreto e activo com as gentes da sua aldeia, com quem partilhou alegrias e tristezas, esperanças e angústias, planos e concretizações e a quem deixava as suas inquietações com uma abertura ao mundo de Moçambique, onde tinha levado o seu coração e de onde trouxera muitas histórias e muitas saudades. Lembrava ele lendas aprendidas em criança, como as da Senhora do Caneiro; tomou a peito recuperar uma capela da sua terra. Conviveu com todos e levou longe o nome das terras das suas origens. Em testemunho de reconhecimento, a cidade da Covilhã homenageou-o a 20 de Outubro de 2006, entregando-lhe a Medalha de Mérito Municipal, na categoria de Ouro. Apreciador do convívio e da amizade, teve a felicidade de ter a maior parte dos bispos portugueses na celebração das suas Bodas de Ouro Episcopais, em 21 de Junho de 2007, em Fátima.
Voltou três vezes a Moçambique para celebrar a fé dos que com ele a haviam formado, nomeadamente os sacerdotes por ele ordenados e as irmãs da Congregação por ele fundada.
Com graciosidade e brilho no olhar, nos últimos anos, recordava ainda episódios de toda a ordem, com uma memória vivaz e precisa: episódios pessoais e alheios; dos cristãos que baptizara e que com ele aprenderam os gestos mais significativos da vida cristã ou a quem proporcionara uma vida humana mais digna; de não-cristãos que se aproximaram de Deus, com ele, também; de alguns a quem salvou a vida. Não sendo muito expansivo por natureza, era sensível sobretudo à dor dos outros e procurava levar-lhes conforto. Ele próprio contou alguns casos singulares. Um dia, em final de tarde, ainda em Mutuáli, dizem-lhe que há um casal de velhinhos que não tinham ninguém e estavam dispostos a deixar-se ficar no ermo para que alguma fera viesse abreviar-lhes a vida, pois iriam morrer à fome, sem ninguém a assisti-los; eram pagãos: o missionário deixa tudo para ir ao encontro deles antes que a noite chegasse; leva-os com ele e, depois de lhes proporcionar os primeiros cuidados, designou quem na Missão os devia acompanhar; mais tarde, foram eles que pediram o baptismo. Sensível a quem o ajuda de qualquer maneira, não esquece todos os seus benfeitores; nas suas memórias não esquece uma velhinha que lhe salva a vida quando ele seguia por um carreiro e estava em risco de se estatelar com a bicicleta contra um muro; a velhinha esqueceu esse gesto: foi o missionário que um dia, quando ela estava doente, a foi visitar e lho lembrou – algum tempo depois ela pediu o baptismo. Deixou algumas memórias escritas – com repetições inevitáveis; mas nelas reproduz memórias que o tempo tendia a apagar: ficamos-lhe gratos por traz à superfície documentos e factos que enchem de luz e calor mesmo a distância, num rosário de dores e de bênçãos.
Tinha devoções constantes, simples e firmes: à Eucaristia e ao Coração de Jesus, à Virgem Maria, a Santa Filomena – devoções que lhe eram familiares desde criança e que manteve, em actos que por vezes eram apenas acompanhadas pela Irmã Emília que o assistia na sua residência do tempo que passou em Aldeia do Souto.
Confiava ainda passar connosco o centenário de vida completo, para levar outros a louvar a Deus pela sua vida – porque ele nunca se esquecia de o fazer. Uma queda, por falta de equilíbrio, foi-lhe fatal: o internamento e cuidados zelosos que lhe foram prestados no Hospital da Covilhã não foram bastantes para lhe restituir as forças que se iam perdendo. Se lhe faltaram as forças finais, não faltou ânimo para continuar a rezar e a lembrar todas as graças recebidas de Deus e os favores dos seus amigos. Continuou a fazê-lo, por último, em Cucujães, que sempre considerou a sua casa e onde regressou para partir definitivamente com os seus irmãos a assisti-lo. A 11 de Dezembro de 2010, partiu para o Pai, preparado pela oração frequente, sobretudo a do Rosário. Mantinha as barbas brancas que foram ficando menos fartas, como os cristãos de Nangololo em 12 de Janeiro de 1975 não haviam deixado de notar. Por elas foi identificado, no mundo inteiro, quando esteve ao lado do Papa Paulo VI, na celebração eucarística em Fátima, em Maio de 1967. Não tinham nele qualquer motivação especial, além de ter remontarem a um tempo em que apareciam como distintivo de missionário, aceite como tal até aos anos de 1950, anos em que foram postas de lado. Passou fazendo o bem e levando outros a fazê-lo. Entrou agora no gozo do seu Senhor. Com saudade o revemos e lhe rezamos: “Bendito o que vem em nome do Senhor”!





Lisboa, 8 de Janeiro de 2011

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