Grande parte da crise política que se instalou em Moçambique, que resvala amiúde para o campo militar, deve-se a alguma inflexibilidade dos nossos políticos nas reformas estruturais conducentes a criação de um sentido de pertença do Estado nos cidadãos. É o que se sente no nosso Estado, tanto quando o encarámos no seu sentido restrito, bem como quando o encarámos no seu sentido amplo. Reservo-me ao seu sentido mais restrito, de Estado enquanto ente público que era suposto que a todos pertencesse, o que não acontece porque somente pertence a alguns. Se afirmámos que grande parte dessa crise política se deve a inflexibilidade dos nossos políticos na promoção de reformas conducentes a uma maior inclusão dos cidadãos no acesso a esse ente público que se chama Estado referimo-nos à forma como está enraizada a cultura da confiança político-partidária para o acesso ao Estado. É por causa dessa cultura da confiança política no acesso ao Estado que este acaba por ser um verdadeiro prolongamento do poder político. Se o poder político é aquele que se adquire através das eleições, esse mesmo poder político não se esgota com a acção governativa para a qual foi eleito, mas sim acaba por tomar como sua toda a máquina administrativa do Estado. Se as constituições de 90 e de 2004 nos deram e aprofundaram alguns princípios basilares que norteiam uma democracia multipartidária, a forma como o poder político, uma vez constituído, acaba por tomar como sua toda a máquina administrativa do Estado permite-nos concluir que continuamos a viver numa ditadura monopartidária ou, se se preferir, num Estado-Partido. Ora, numa democracia multipartidária não se pode permitir que o aparelho dirigente do Estado seja um prolongamento do poder político. Apesar de havermos transitado da ditadura de partido único para a democracia pluralista, o poder político continuou a conservar o princípio da estrutura administrativa verticalmente hierarquizada característico das ditaduras de partido único como forma de manter a máquina administrativa do Estado como prolongamento do poder político. A acção do poder político, portanto, não se esgota com a composição do governo central, prolonga-se ao longo de toda a máquina administrativa do Estado, passando pelos governos provinciais, distritos, postos administrativos, localidades e povoações, onde cada um dos titulares dos órgãos do poder administrativo, do topo à base, é designado de acordo com o princípio da estrutura administrativa verticalmente hierarquizada que somente tiram proveitos os camaradas impondo a cultura da confiança político-partidária no acesso dos cidadãos aos órgãos do poder administrativo, a fim de permitir que se mantenha o Estado como pertença de um partido político e seus apaniguados. Vai daí que ganhar eleições significa levar para o partido toda a máquina administrativa do Estado. Não ser militante do partido equivale a ser um cidadão de segunda ou de terceira, o que vale a um verdadeiro apartheid político. Nessa lógica de funcionamento, não existe recrutamento dos titulares dos órgãos de poder administrativo na base da competência técnica, o que funciona apenas é a confiança política. Para além de nomear o Primeiro-Ministro, Ministros e Vice-Ministros, o Presidente da República nomeia Governadores Provinciais, sendo os governos provinciais a representação do governo central a nível provincial. Todos os oficiais provinciais são nomeados pelo governo central: o governador pelo Presidente da República, o secretário permanente provincial pelo Primeiro-Ministro e os directores provinciais pelos ministros das áreas responsáveis pela respectiva pasta num mínimo de sete a um máximo de doze. Não há ninguém a ser designado pela competência, antes de mais segue-se a militância partidária. É preciso que se sejam um camarada, não um camarada qualquer, mas somente aquele que ostenta o cartão vermelho de Marx. Passemos em frente. Temos, mais abaixo, o distrito, cujo administrador distrital é nomeado pelo ministro da administração estatal, que superintende a representação do governo central a nível local. Os funcionários básicos da administração estatal incluem o administrador distrital, a secretaria distrital e os directores distritais, que chefiam os serviços distritais, todos eles recrutados na lógica do partido. Unidades administrativas menores são os postos administrativos, cujos chefes são designados pelo ministro da administração local do Estado, assim como os chefes de localidade, designados pelos governadores provinciais. Somos informados apenas que esses são órgãos locais do Estado, como estabelece a Constituição, mas ninguém nos dá conta de como estes são o prolongamento do poder político antes de serem o Estado, dado que quem começou a nomear todos eles é o Presidente da República, na base da confiança política, valendo mais a militância no partido do que a competência técnica. No final do dia, continuamos a viver no partido único, onde a ideologia do partido é imposta ao Estado. Não há noite longa que dure para sempre. O líder da Renamo diz que vai governar nas províncias onde ganhou eleições. É claro, eu também diria o mesmo se tivesse a convicção de que fui eu quem ganhou as eleições e não aquele a quem foi confirmada a vitória. Só percebe o quanto o partido no poder perde com isso quem percebe que a máquina administrativa do Estado é um verdadeiro prolongamento do poder político através do princípio da estrutura administrativa verticalmente hierarquizada que torna o acesso ao Estado um privilégio somente daqueles que vivem da militância política e não da competência técnica. Entre nós, ganhar eleições equivale a alcançar nossa vez de comer. Tratando-se de vampiros, eles comem tudo e não deixam nada. Não existem eleições para governadores provinciais no nosso sistema eleitoral, o qual prevê eleições para a Presidência da República, a Assembleia da República, os Presidente dos Conselhos Municipais e Assembleias Municipais, sendo que o líder da Renamo, enquanto pretender designar governadores nas províncias onde considera ter ganho eleições, somente o faz enquanto Presidente dessa região, tal como Filipe Nyusi que nomeou governadores onde ganhou. Moçambique é uma democracia atípica. Enquanto houver inflexibilidade dos políticos em promover reformas estruturais no sentido de que a máquina administrativa do Estado deixe de ser prolongamento do poder político, tornando-se efectivamente acessível aos cidadãos, independentemente da sua cor política, então continuaremos a viver num país em crise. No mínimo, devia-se abrir o espaço para o debate. Mas isso não se consegue, devido ao patrulhamento ideológico que todos nós sofremos, de tal sorte que até patrulham os nossos pensamentos. Quem se arrisca a debater reformas do sistema de governo, assim como da forma de Estado, no lugar de ser acolhido de mais abertas, muito pelo contrário, acaba por atrair para si o frio das balas. Enquanto a TVM e a RM continuarem a ser prolongamentos do poder político, tal como toda a máquina administrativa do Estado, então muitos de nós continuaremos a murmurar, silenciados por um sistema opressor que instala os G 40s e companhia limitada para nos impedir de expressar as nossas opiniões de forma livre, independente, equilibrada e plural. É preciso escangalhar esse aparelho opressor, dado que os homens nasceram livres e iguais em dignidade e em direitos, independentemente da raça, religião, etnia, tribo, sexo, partido, região, estatuto ou orientação sexual. No nosso sistema de governo, um presidente que nomeia governadores também nomeia ministros. Quem pode mais pode menos. Espero ter estruturado o pensamento, antes de ser acusado de estar ao serviço de alguém que vai governar em Março e acabar sendo vasculhado os miolos com as balas perdidas nas artérias de Maputo.
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