EMATUM e a responsabilidade criminal de decisores políticos são assuntos muito importantes para um país. Mas nem toda a discussão a respeito desses assuntos é útil ao país. Tenho visto, ultimamente, várias discussões sobre isto e abano a cabeça incrédulo ao ver o desperdício de energia intelectual e política patente nessas pseudo-discussões, muitas vezes motivadas pela preocupação de ganhos políticos imediatos. OJosué Bila escreveu um texto muito interessante a este respeito cuja leitura recomendo pela oportunidade da sua intervenção e pela chamada de atenção que faz para que nestas discussões políticas identifiquemos o que realmente conta. Entretanto, há assuntos de natureza mais estrutural que merecem discussões mais amplas, mas simplesmente tropeçamos neles, levantamo-nos e continuamos a nossa marcha como se nada tivesse acontecido. É claro que este reparo é muito gratuito da minha parte, pois cada qual estabelece os seus próprios critérios de relevância e discute os assuntos nessa base. O que quero dizer, contudo, é que independentemente do assunto a maneira como discutimos pode ser boa ou má. E a escolha dos temas faz parte dessa cultura de discussão.
Li hoje, no boletim da AIM, algo que me deixou desconcertado. É uma notícia que informa que “[p]elo menos 3.700 pessoas de baixa renda, residentes na cidade de Maputo, serão integradas a partir da próxima semana em trabalhos de limpeza de valas de drenagem, ruas, cemitérios e recolha de lixo em locais públicos da capital moçambicana, no âmbito do Programa de Acção Social Produtiva (PASP)”. Vão ser selecionadas pessoas com idades compreendidas entre os 18 e 54 anos para mulheres e até 59 anos para homens desempregados ou sem fonte de rendimento que receberão mensalmente 650,00 meticais por trabalho distribuído por quatro dias de semana por períodos laborais de quatro horas. Estou mais ou menos a transcrever a notícia. Um trecho da notícia tenho que citar directamente pela sua ambiguidade resultante da forma como a pontuação é trabalhada: “O PASP é uma espécie de reedição do programa ‘Comida pelo Trabalho’, que no passado foi implementado em muitos distritos do país pelo governo central com o objectivo de reduzir a fome que assolava milhares de moçambicanos e a ociosidade”. Suponho que a ociosidade [sic] não fizesse parte das vítimas da fome…
Mais seriamente, contudo, não sei o que pensar deste tipo de iniciativas. Ou melhor, sei, e o que sei incomoda-me bastante. A protecção social é um assunto muito sério e, infelizmente, no nosso país continua a ser tratada de ânimo muito leve. O assunto é naturalmente muito técnico, envolve questões de natureza económica, política, cultural e social que não são de trato fácil. Mas uma maneira simples de colocar o assunto para uma discussão mais profícua consistiria em reflectir sobre a sua função. Tradicionalmente, no mundo, a protecção social foi usada como instrumento de socorro de emergência a grupos populacionais vulnerabilizados por uma razão económica ou natural qualquer. Enquanto algumas correntes de pensamento preferem reduzir a protecção social a essa função existem outras que vão mais longe. Essas outras acham que para além dessa rede imediata de segurança a protecção social devia também ter como objectivo corrigir problemas estruturais da economia proporcionando meios de consumo às pessoas (para a revitalização da economia), aptidões profissionais (para a reintegração das pessoas no mercado de trabalho) e oportunidades para que os afectados saiam das condições precárias em que se encontram (o termo eufemístico usado em inglês é “to graduate out of poverty”). Há um certo sentido em que o Estado-Previdência da Europa Ocidental é o resultado desta segunda abordagem.
Existe no nosso País, ao que parece (e segundo informa a mesma notícia), uma “Estratégia Nacional de Segurança Social Básica”. Não sei nada sobre ela, mas vou tratar de colmatar as lacunas e peço desde já a quem tenha o documento para me enviar. De qualquer maneira, pelo facto de ela ser coordenada pelo Ministério do Género, Criança e Acção Social já dá para suspeitar que ela tenha uma base filosófica assistencialista de curto prazo, mas com retórica de longo prazo. No dia em que alguém quiser ser sério em relação à protecção social vai integrar todos estes programas e iniciativas num ministério mais sério como, por exemplo, o ministério do trabalho ou o ministério das finanças onde fique mais patente o reconhecimento da natureza estrutural do problema que está a ser abordado. Nada contra o gênero, a criança e a acção social, mas esses são ministérios para o inglês (da indústria do desenvolvimento) ver…
Sobre este Programa de Acção Social Produtiva tenho as minhas reticências. Porque não simplesmente entregar esses valores às pessoas sem exigência de nenhuma contrapartida em forma de trabalho? Pergunto isto porque não vejo a utilidade do trabalho que se espera dessas pessoas para além daquela lógica de que quem não trabuca não manduca. Em Maputo existem serviços profissionais de recolha de lixo e limpeza de espaços comuns. Porque é que se faz esta concorrência desleal a esses serviços? Porque não se reforça a capacidade desses serviços de criarem postos de trabalho que serão devidamente remunerados ou porque se não investe esse dinheiro na promoção do “empreendedorismo” dessas pessoas de baixa renda para, por iniciativa própria, entrarem no negócio da limpeza? Que aptidões profissionais é que as pessoas vão adquirir nesses programas que lhes vão permitir a “graduação da pobreza”? Que sentido faz um programa que envolve pessoas com idades compreendidas entre os 18 e os 59 anos? Os problemas dos que têm idades compreendidas entre os 18 e os 25 são os mesmos que os problemas dos outros escalões etários? Homens e mulheres, mesmos problemas? Como é que este programa se articula com toda a política de geração de emprego no Município e no País? Que impacto é que esses valores que as pessoas recebem tem nas economias locais? E, por último, mas não menos importante, um programa desta natureza (com tão poucos meios num mar de tanta necessidade) não vai simplesmente promover corrupção e nepotismo sem trazer nenhum benefício palpável às pessoas? Não há uma melhor maneira de ocupar o pessoal do Município? De qualquer maneira, seria bom que este programa fosse objecto de estudos nas nossas universidades.
Pelo que sei de programas semelhantes na Etiópia e na Tanzânia, mas também na Índia com aquele gigantesco programa rural que abarca mais de 50 milhões de pessoas, não existem fortes indicações de que este tipo de intervenção tenha muita utilidade. Do ponto de vista político transmite a impressão de se estar a fazer algo, mas a lógica que lhe é subjacente, a lógica da indústria do desenvolvimento (neste caso específico sobretudo da FAO que continua a insistir nestes programas de comida pelo trabalho contra todos os argumentos que mostram que essas políticas são no mínimo fúteis – reconheço, contudo, que o assunto é controverso), é de pensar problemas estruturais sérios como pequenos acidentes de percurso que com pequenas intervenções serão ultrapassados.
Volto a EMATUM, ou melhor lá onde comecei. Alguém já ouviu que algum partido político se interessou alguma vez por este tipo de assunto? O MDM, por exemplo, que apostou na detenção de Guebuza tem alguma reflexão sobre a protecção social? Não precisa de ter pessoas próprias para produzirem tal reflexão. Há gente abalizada no nosso País que de certeza pode fazer isso, pois uma reflexão técnica é técnica e não compromete ninguém politicamente. Tem aí o António Francisco que é uma das poucas pessoas que tem dedicado muita energia intelectual a estes assuntos (sobretudo em relação aos idosos). Alguém já o abordou? Quando os deputados da Renamo não estão a bater palmas à agressão à constituição ou a falar da roupa interior dos seus adversários políticos, dedicam alguma atenção a este assunto? Ou isso fica para quando estiverem no poder?
Sempre defendi a seguinte tese: a política, na Europa, é o resultado da protecção social. Ela criou cidadãos, constituiu as balizas do debate político e viabilizou a tradução de política em acções. Não há muita coisa que a gente possa aprender da Europa, mas esta é uma delas. Nos meus momentos de maior identificação com teorias de conspiração tenho pensado que o silêncio ensurdecedor da indústria do desenvolvimento em relação a este assunto tem sido funcional à reprodução da nossa dependência. Mas no fundo a responsabilidade é nossa, isso é que conta. Só que, caracteristicamente, para a gente sair dessa letargia vai precisar dum programa qualquer de comida pelo trabalho...
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