Após a independência de Moçambique foi criado um banco central sobre os
alicerces do então Banco Nacional Ultramarino (BNU). Alberto Cassimo viria a
ser o primeiro governador do novo banco emissor - o Banco de Moçambique. Carlos
Adrião Rodrigues, advogado com cartório na capital moçambicana e ligado ao
sector progressista da burguesia colonial, ascendeu à posição de
vice-governador daquela instituição bancária.
Membro do grupo de pressão denominado «Democratas de Moçambique», Adrião
Rodrigues havia-se evidenciado, conjuntamente com João Afonso dos Santos,
Pereira Leite e William Gerard Pott, num famoso processo jurídico conhecido
pelo «Caso dos Padres do Macúti» em que dois prelados católicos, detidos na
Beira pela PIDE/DGS no âmbito duma conspiração engendrada por Jorge Jardim,
eram acusados da prática do “crime contra a harmonia racial”, algo não
contemplado no Código Processual então em vigor na colónia portuguesa do
Índico. Desiludido com a política seguida pelo regime da Frelimo, mormente no
tocante à perseguição movida contra as minorias étnicas do país, Carlos Adrião
Rodrigues optou por se demitir do cargo para o qual havia sido nomeado pelo
governo de Samora Machel. Idênticos passos viriam a ser dados por outros
membros daquele grupo de pressão, como Pereira Leite, Sérgio Espadas, entre
outros. William Gerard Pott, causídico moçambicano oriundo da Zambézia, viria a
ser detido pelo SNASP.
Como consequência dos maus tratos e sevícias de que fora alvo por parte da
polícia política, Pott viria a falecer poucas semanas depois, vítima de colapso
cardíaco.
A seguir se transcreve o texto integral da carta de demissão que Carlos
Adrião Rodrigues endereçou ao Presidente Samora Machel:
Carlos Adrião Rodrigues
Rua de Infantaria 16, n° 103 2° Dto.
LISBOA
Exmo. Sr.
Presidente da República Popular de Moçambique
Excelência,
Venho apresentar a V.Exa a minha demissão do cargo de Vice-governador
do Banco de Moçambique.
Em resumo as razões que me levam a tomar esta decisão, são as
seguintes:
1. - A política de afastamento das minorias étnicas residentes em
Moçambique. Esta política - cuja determinação voluntária por parte do governo
não me oferece dúvidas e é facilmente demonstrável - além de pôr em causa a
existência de uma sociedade pluriracial em Moçambique, em que eu pessoalmente
apostara, empurrou o país para o caos económico e social.
Por virtude de uma injustiça decorrente da situação colonial, mas que
ao governo revolucionário seria fácil corrigir, parte importante dos
conhecimentos necessários ao país estavam concentrados nessa gama populacional
(brancos, indianos, chineses e mulatos).
Ora, grande parte dessas minorias étnicas ficaria no país, caso lhes
fossem dadas determinadas garantias básicas (direito a não ser preso excepto
nos casos permitidos por lei, respeito pela sua propriedade pessoal, garantias
de julgamento rápido e de defesa em caso de prisão legal, respeito da sua
identidade cultural própria.
Em troca destas garantias fundamentais (que não seriam uma excepção
porque se deveriam aplicar a toda a população) elas dariam ao país o seu
trabalho, que enquadrado numa economia socialista, era essencial para o
arranque económico.
Em vez de se aproveitar essa parte da população, preferiu-se
acossá-la. Multiplicaram-se as prisões arbitrárias, as violências verbais, o
desrespeito pelos bens pessoais. Procurou-se substituir essa população pelos
cooperantes e por uma apressada formação de quadros, mais apregoada que
executada.
Escorraçou-se do país para fora homens que eram absolutamente
insubstituíveis, para já, e que num outro contexto teriam ficado. Lembro só
para exemplo os quadros agrícolas e veterinários escassos mas extremamente
importantes, apostados em ficar mas que um a um se foram embora, bem contra
vontade; os quadros de geologia e minas, falsamente acusados de desvio de ouro,
nas primeiras páginas dos jornais locais, e que depois de se ter constatado a
sua inocência jamais mereceram uma reparação.
Os Zecas Russos, os Macamos e outros marginais ainda em circulação
foram promovidos a autênticos heróis nacionais, só porque espoliavam as pessoas
de seus teres e haveres o que, parece, era considerado altamente patriótico e
revolucionário. Verdade que eles espoliavam as maiorias e as minorias, o que resulta
em fraco consolo para umas e outras.
E, neste caminho, acabou-se na pequena truculência anti-branco ou
anti-mulato, como foram os casos da expulsão dos agricultores brancos do Vale
do Limpopo - gente pobre que trabalhava a terra - e a expulsão dos chamados
“comerciantes de nacionalidade” isto é, de pessoas que ao abrigo de uma lei
ridícula e que devia ser revogada, mas que existia e tinha sido publicada pelo
governo da República Popular de Moçambique, tinham mudado de nacionalidade,
para se garantirem um pouco mais contra as arbitrariedades que apontei. Ora,
esta expulsão veio afectar a economia do país, na medida em que afastou os
últimos operários com alguma especialização e de capacidade de direcção que não
fossem negros. E quanto a estes últimos ainda está por fazer o balanço dos que
fugiram. Mas segundo me consta, a zona do Rand, na África do Sul, está cheia de
carpinteiros, mecânicos, electricistas, operários da construção civil, fugidos
de Moçambique.
Durante muito tempo convenci-me que esta política era, não uma
política mas sim erros, próprios do processo. Ou tentei convencer-me. Mas a
constância dos erros e sobretudo o reforço da posição das pessoas que eram o
esteio desta política, surgido do 3° Congresso, convenceu-me que se tratava de
uma política sistematicamente prosseguida. Ora eu tinha apostado noutra: a
manutenção das minorias étnicas, o respeito pelos seus direitos, mas
contrariando severamente todos os privilégios que, indiscutivelmente os
beneficiava.
E Moçambique, porque um país onde tais minorias étnicas eram em
número reduzido, podia ser o laboratório experimental de uma política que me
parecia poder ser exemplo extremamente importante para a África Austral.
Por outro lado a força e o prestígio da FRELIMO permitiam-lhe fazer a
experiência. Não se fez e o resultado está à vista: o fracasso económico, e a
redução quase a zero das possibilidades de recuperação; um profundo
desengajamento do povo, tanto no trabalho da construção do país como na
actividade política; uma cada vez maior dependência da África do Sul que hoje,
mais que no tempo colonial é a grande fonte das nossas disponibilidades
externas e o grande fornecedor dos bens de consumo essenciais que a nossa
produção reduzida torna vitais.
2 - Convencido como fiquei de que a sobrevivência das minorias
étnicas e o projecto de uma sociedade pluri-racial estavam condenados em
Moçambique em virtude da política prática seguida - que contrariava a linha
política anunciada - cheguei à conclusão que eu, como branco e ainda por cima não
nascido em Moçambique, não tinha lugar nessa sociedade, pelo menos enquanto não
mudar a sua praxis e não se decidir a assumir como sua toda a população (que
era escassa) habitante do território. Portanto saio. Creia que não lhe minto se
lhe disser que o faço com a morte na alma.
E saio já porque também devo pensar um pouco mais em mim e que os
meus anos se vão passando para iniciar vida nova utilmente noutro país.
3 - A pressão sobre as minorias não resultou em qualquer benefício
para a maioria. Antes pelo contrário - a quebra na produção e a incapacidade de
recuperação que se nota em quase todos os sectores da economia, fazem prever um
acentuado decréscimo no nível de vida da população.
Postas as razões convém-me ainda esclarecer que considero V.Exa ainda
hoje, apesar das reservas expostas à política seguida, como o mais autêntico
representante do povo moçambicano, o verdadeiro líder nacionalista de que
Moçambique precisa.
Por outro lado, e como vacina contra boatos, quero afirmar que nas
minhas actuações sempre procurei defender com toda a honestidade os interesses
que me foram confiados por Moçambique. Mas a corrupção a alto nível dentro do
aparelho de estado existe, e dela tive confirmação em Lisboa.
Pelas razões que exponho para a minha saída, acho ser meu direito, e
também meu dever, pedir a V.Exa que autorize a saída dos meus bens pessoais que
me fazem mais falta e que só com dificuldade poderia substituir: mobílias,
electrodomésticos, livros, discos e um carro Simca 08-75, com 5 anos de uso.
Caso V.Exa autorize, pessoa amiga, que indico ao Cassimo, tratará das demarches
necessárias. Mas se V.Exa achar que não deve autorizar, também passarei sem
elas. Aceite V.Exa os cumprimentos meus e de minha mulher e os nossos desejos
das maiores prosperidades para o Povo Moçambicano.
(Carlos Adrião Rodrigues)
2006-03-30
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