janeiro 29, 2015 12:18
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Conflitos político internos, disputa por recursos energéticos com países vizinhos e o interesse estrangeiro na desestabilização da Nigéria. Como o temido Boko Haram se insere no contexto geopolítico global e regional e por que ele é muito mais que a classificação simplista de terroristas ou extremistas religiosos
Por Eric Draitser, em Counterpunch | Tradução: Vinicius Gomes
As histórias de mistério mais divertidas são aquelas com protagonistas interessantes, antagonistas obscuros e enigmáticos, com conclusões surpreendentes e/ou chocantes. De fato, sem esses elementos essenciais, é provável que uma pessoa nem chegue ao final da história. Todavia, quando se trata de política e geopolítica, de alguma maneira nossos contadores de história na grande mídia – o exército de jornalistas e especialistas militares em contraterrorismo – não apenas falham em nos apontar a direção correta na história, como também não consegue enxergar as coisas óbvias nela presentes, preferindo fingir que elas simplesmente não existem. É assim que funciona com o grande “mistério” sobre o Boko Haram.
Um grupo que em apenas poucos anos se tornou uma das mais conhecidas entidades terroristas no mundo, tendo realizado hediondos massacres de homens, mulheres e crianças; sequestrado milhares de inocentes e destruído cidades inteiras, o Boko Haram simboliza agora perfeitamente a mistura de barbarismo, fundamentalismo ideológico e religioso – e sem ninguém com a pele branca, que veio a existir para serem vistos, especialmente perante olhos ocidentais, como a manifestação do mal –, o diabo encarnado que só pode ser destruído pelas forças da honradez, dos “bonzinhos”.
Mas o que acontece quando não há “bonzinhos” na história? O que acontece quando você segue a história apenas para descobrir as intenções mais cínicas de cada uma dos personagens envolvidos? Tal qual é essa história com o Boko Haram e, na realidade, também são as histórias da política regional e da geopolítica na África Ocidental.
Ao tentar destrinchar a rede labiríntica de ligações políticas, econômicas e estratégicas que conectam um número significativo de personagens, se torna claro que nenhuma análise sobre o Boko Haram vale ser lida, exceto quando aborda três ângulos distintos, mas ainda intimamente conectados.
Primeiro, temos a política interna da Nigéria e o problema do Boko Haram, com a percepção de uma responsabilidade, tanto do governo quanto da oposição, pelo caos que eles têm causado. Com as eleições marcadas para fevereiro, o Boko Haram e a segurança nacional se tornaram, compreensivelmente, os assuntos dominantes na opinião pública. As acusações mútuas de ambos os lados forneceram um importante pano de fundo para entender como o Boko Haram se insere tanto no discurso público quanto nas redes de estratégias nos bastidores da estratégia política da Nigéria e, de maneira mais ampla, da região como um todo.
O segundo ponto é o tabuleiro de xadrez político-econômico da região. Na África Ocidental, uma área rica em recursos estratégicos, existem alguns personagens que de fato têm algo a ganhar com os contínuos ataques do Boko Haram, que podem resultar em uma completa desestabilização do Estado nigeriano. O Chade, país de fronteira com a Nigéria, passou por um escrutínio do aparato militar nigeriano por seu suposto papel no financiamento e na expansão do Boko Haram. O governo chadiano está de olho nos lucros da Nigéria com o petróleo, enquanto ele mesmo tenta expandir suas capacidades de extração por toda a Base do Chade – uma região geográfica que inclui significativas porções territoriais do Chade, Nigéria, Camarões e Níger. Além, claro, das principais empresas petrolíferas e das poderosas nações do Ocidente, que têm interesse em manter seus lucros vindos do petróleo no oeste africano.
Finalmente, e talvez mais importante, é a perspectiva global e continental: a Nigéria, como aeconomia mais dinâmica da África, apresenta grandes oportunidades e desafios para as maiores potências globais. Para a China, o país representa um de seus principais postos de investimento na África. Parceiro comercial chave para Pequim, a Nigéria recentemente se moveu em direção à órbita do Ocidente, transformando-se em um confiável, quiçá subserviente, aliado ocidental. Coincidentemente com esses fatos está a expansão da presença militar norte-americana por toda a África, principalmente na Oeste do continente, apesar desta não contar com toda a fanfarra midiática que a história do Ebola recebeu.
A mídia internacional se apropriou do trágico evento envolvendo as garotas de Chibok – com a onipresente hashtag #BringBackOurGirls – e, para a maioria das pessoas, isso é tudo o que elas sabem sobre o Boko Haram. Porém, tal compreensão superficial de uma das mais complexas histórias nos últimos anos, pouco faz para avançar no debate ou alcançar uma resolução. Em uma abordagem mais flexível no entendimento do caso, consegue-se colocar o Boko Haram em um contexto internacional mais amplo. Enquanto muitos dos detalhes permanecem obscuros – com poderosos personagens agindo nos bastidores –, os contornos de uma desestabilização regional e uma guerra por procuração já se tornam discerníveis.
As políticas do Boko Haram
Com as eleições nacionais a menos de um mês de distância, as facções em competição da estrutura política da Nigéria estão ocupadas tentando tornar seus adversários bodes expiatórios; com cada lado tentando implicar o outro em que estes estão, ou aliados ao Boko Haram, ou deliberadamente tentando capitalizar com a situação. Os dois maiores partidos do país, o governante Partido Democrático do Povo (PDP), liderado pelo presidente Goodluck Jonathan, e o Congresso Progressista (APC, sigla em inglês), tornaram o Boko Haram uma batata quente política, jogando o problema para o outro na esperança de que os eleitores associem o grupo ao partido adversário.
Em setembro de 2014, antes de o Boko Haram ganhar novamente as manchetes internacionais com seus ataques, o jogo sujo político já estava feroz. O presidente do Fórum de Conselheiros do PDP, Collins Onogu disse: “A maioiria daqueles que estão desabrigados no nordeste do país por conta do Boko Haram são membros do PDP. Quais foram seus crimes? O porta-voz do APC foi negligente para com seu dever e agora ele está dando declarações em nome do Boko Haram [...] o APC está usando a mídia para chantagear o presidente Goodluck Jonathan – seus planos são de tornar esse país ingovernável para ele”.
Enquanto a caracterização de Onogu sobre o assunto é certamente questionável, está muito claro que o PDP enxerga o caso do Boko Haram como um grande risco político para o partido e para o presidente Jonathan. É por essa razão que Onogu e outros líderes do PDP têm repetido as ameaças de “revelar os nomes dos membros do APC que patrocinam o Boko Haram”. É inteiramente possível que o PDP faça isso apenas para sabotar a campanha de seus oponentes, porém, é igualmente verdadeiro que o PDP está tentando desesperadamente se desassociar da culpa pela crise que se desenvolveu durante seu governo. De qualquer maneira, o PDP está tentando tornar o APC cúmplice pelo caos.
Por seu lado, o APC não apenas negou todas as acusações, como também rebateu as ameaças alegando que antigos oficiais do alto escalão do PDP estão intimamente envolvidos no financiamento do Boko Haram. O presidente nacional da sigla, John Oyegun disse, também em setembro passado. “O doutor Stephen Davis, que foi o homem contratado pelo governo de Goodluck Jonathan para negociar com o Boko Haram a libertação das garotas de Chibok, decidiu falar a verdade, pois acredita que a melhor maneira de vencer os insurgentes é revelar seus patrocinadores. E quem são eles? [Davis] nomeou o ex-governador de Borno, Ali Modu Sheriff, e o ex-chefe do exército, general Azubuike Ihejirika, como os financiadores do Boko Haram [...] Esses financiadores estão dentro do PDP e da presidência, eles são conhecidos do presidente Jonathan.”
Essas revelações, veemente negadas pelo PDP e pela administração Jonathan, certamente levantam importantes questões quanto às redes que estão apoiando e financiando o Boko Haram, assim como o porquê, quando e onde eles se organizaram originalmente. De acordo com informações confidenciais vazadas e obtidas pelo periódico nigeriano Premium Times, o ex-governador do Estado de Borno e aliado do presidente, de fato foi um dos principais organizadores do Boko Haram, baseando suas operações na fronteira com o Chade (e depois, dentro do país vizinho). As informações obtidas pelo jornal “pintam uma figura do que parece ser uma poderosa estrutura regional de apoio [ao Boko Haram], envolvendo o presidente do Chade, oficiais da Nigéria e do Níger, tendo como ponta de lança Ali Modu Sheriff, que aparenta ser uma poderosa figura dentro desse círculo”.
Somando-se a essa informação, estão as descobertas de um painel presidencial comissionado pelo presidente Jonatah: “O relatório traçou a origem das milícias privadas no Estado de Borno, em particular das que o Boko Haram faz parte, até políticos que as organizaram nas vésperas das eleições gerais em 2003. Tais milícias foram, supostamente, armadas e usadas como intimidadores políticos. Após as eleições, e tendo cumprido seu objetivo primário, os políticos largaram mão dessas milícias, uma vez que eles não podiam continuar financiando-os, nem contratá-los como funcionários. Sem qualquer meio de sustento, algumas dessas milícias gravitaram para o extremismo religioso”.
Certamente existem muitas questões a serem respondidas aqui. Seria Sheriff simplesmente um antigo aliado que decidiu “agir por conta própria” e estabeleceu seu próprio exército privado para enriquecer a si e a seus patrões estrangeiros? Ou será que Sheriff continua ligado, ao menos indiretamente, ao governo federal em Abuja e os militares nigerianos? De qualquer maneira, claramente existe uma complexa rede de relações conectando o Boko Haram com diversas partes na Nigéria, assim como em seus países vizinhos.
Segundo um memorando de 2011, vindo de oficiais da inteligência no Chade, “membros da seita Boko Haram são mantidos e treinados, algumas vezes, na região de Abeche (no Chade), antes de serem dispensados. Isso geralmente acontece quando o senhor Sheriff visita Abeche”. Assim sendo, até mesmo a mais conservadora das análises teria de admitir que é inegável a conexão entre a política doméstica da Nigéria, especialmente dentro do partido governante, com atores internacionais que têm seu próprios interesses – e são esses personagens, assim com suas motivações, que merecem uma análise cuidadosa.
Conflito regional, guerra por recursos naturais
As vastas riquezas da África Ocidental sempre foram almejadas, desde os tempos coloniais. Apenas a Nigéria se tornou um player global em termos de produção de petróleo, respondendo por pelo menos 8% as importações norte-americanas, apesar de isso ainda ser um debate se foi uma bênção ou uma maldição ao povo nigeriano. Por toda a região, interesses econômicos foram centrais nas políticas e na agenda de diversos líderes que têm tanto o cifrão brilhando em seus olhos, quanto o poder rondando suas mentes.
Isso foi acelerado apenas nos últimos anos, especialmente depois da guerra imperialista que derrubou o antigo líder da Líbia Muammar Qaddafi, cuja presença, apesar de tudo, ainda servia para manter uma certa estabilidade regional, ao manter “na linha” personagens periféricos como Chade, Niger e outros. Naturalmente, o impacto de Qaddafi era sentido de maneira distintas por esses governantes que tinham suas ambições “contidas” pelo líbio.
Talvez não exista nenhum outro líder, nos últimos anos, mais ambicioso do que o presidente chadiano Idriss Déby, que tem um papel central em toda a história envolvendo o Boko Haram – desde acusações de que seu governo ofereceu a eles um “porto seguro”, até suas tentativas em acordar um cessar-fogo entre o grupo e o governo nigeriano. Mas o que o Chade teria a ganhar com isso?
Antes de responder a essa perguntar, se faz necessário relembrar a história de como Déby chegou ao poder. Curiosamente, sua ascensão à presidência se deve a Qaddafi que, após anos de guerra com o Chade – uma guerra que o próprio Déby liderou tropas contra as forças líbias –, apoiou Déby contra o antigo governo de Hissène Habré, que mantinha no país diversos líbios anti-Qaddafi com fortes laços com comunidade de inteligência dos EUA, como por exemplo o general Hifter. Assim sendo, a guerra liderada pela Otan que derrubou Qaddafi em 2011 mudou radicalmente o horizonte político da região. Subitamente, uma pessoa como Déby podia agora ir atrás de suas ambições sem o olhar vigilante do líder líbio. Com uma antiga rede estabelecida de tráfico de armas e combatentes, o Chade se tornou um importante ponto de trânsito no deserto do Saara
Nos anos recentes, a descoberta de petróleo ao longo da Base Chade transformou a maneira como os países da África Ocidental enxergavam seu futuro econômico. No coração dessa base está o Lago Chade, que divisa países como Camarões, o Níger, Nigéria e, claro, o Chade. De acordo com uma pesquisa de 2010 do escritório nacional de estudos geológicos dos EUA, a Base Chade tem “estimativas de fornecer 2,32 bilhões de barris de petróleo, 14,65 trilhões de metros cúbicos de gás natural e 391 milhões de barris de gás natural líquido”. Tamanho potencial desses recursos certamente aguçou o paladar de personagens regionais e internacionais.
Todos os países que “estão” na base, expressaram seu desejo em explorar as reservas energéticas ali. Todavia, até agora, o único país que não conseguiu fazê-lo foi a Nigéria, por conta da presença do Boko Haram. Como lê-se em uma publicação, de março de 2014, da consultora energética Hart Energy, “entre 2011 e 2013, o governo nigeriano destinou 240 milhões de dólares para facilitar as atividades de exploração de gás e petróleo na base do Lago Chade [...] mas as atividades mortais do Boko Haram na região, interromperam os planos”. Então, enquanto a Nigéria é forçada a frear sua exploração no Lago, seus vizinhos Níger, Camarões e Chade, continuam a deles.
Permanecendo acima e por trás dessas atividades está a antiga potência colonial desses três países: a França. Hoje, o papel dominante do país europeu continua tendo seu porto de Le Havre como o destino final do petróleo não-refinado extraído debaixo dos pés dos africanos no oeste do continente. Desnecessário dizer que existem interesses muito poderosos tanto na África quanto na Europa que querem garantir que o fluxo desse precioso bem continue sem problemas. Além do mais, eles farão qualquer coisa para evitar que o maior exportador de petróleo da região, a Nigéria, participe do negócio.
É por esse motivo que o Boko Haram possui, de fato, o potencial de ser a fagulha de um conflito internacional. Mas quem teria interesse em ver toda a região da África Ocidental desestabilizada? Qual é o contexto geopolítico global para compreender essas questões complexas e interconectadas?
A segunda parte desse artigo examinará tais contextos, detalhando como os EUA e algumas potências da Europa estão explorando a situação para seu próprio ganho.
Foto de Capa: Digital Resistance
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