sábado, 8 de março de 2014
Afonso Botelho e o problema universitário
Entrevista a Afonso Botelho
Alameda Universitária de Lisboa |
«Mais do que fixar o que o aluno deve aprender, importa a um sistema de ensino superior valorizar a interrogação, ou a possibilidade prévia, do que aprende, de rejeitar a matéria fixada, e nos termos em que se fixou. Tal condição, que é própria do grau superior do ensino universitário, consente e promove o exercício da inteligência do adolescente na sua função de discriminar e dinamizar o saber. Interrogar é, assim, o verbo que proporciona ao espírito a manifestação da inteligência, do intelecto activo, antecedente da enunciação da "matéria", que aquele, primeiro, identifica e, depois, escolhe.
(...) O exame é, contudo, o obstáculo mais grave exactamente porque inverte o sentido da interrogação, dando toda a iniciativa ao examinador e afastando a "matéria" da individuação intelectual do estudante, da sua capacidade de identificação e de escolha».
«(...) Não vemos na secular história das instituições de ensino exemplos bastantes para podermos falar na possibilidade de uma fecunda relação universitária de mestre-discípulo. Mas fomos discípulos de Leonardo Coimbra. E embora saibamos que só ocasionalmente Leonardo Coimbra foi professor universitário, embora não tenhamos sido seus alunos na Universidade – como José Marinho, como o Padre Dias de Magalhães – ao seu magistério atribuímos um exemplo fecundo do ensino universitário. Para quê? Para não perdermos a esperança nas instituições e assim sermos o reverso do poeta que "onde punha a esperança as rosas murchavam logo".
Bem vemos, pois, como é difícil tratar este problema do ensino. Mas se somos escritores e se somos senhores da nossa responsabilidade poderemos deixar de o tratar? E, ao tratá-lo, poderemos levar às evidentes consequências a crítica, que é o ponto de partida? Ou será, noutro extremo, o problema insolúvel? E se o é, podemos aceitá-lo como tal ou iludimo-nos em sucessivas, frustradas soluções? E todos nós, desde António Sérgio, que ainda terá vivido a grande esperança na reforma constitucional da República, desde Marcello Caetano e Delfim Santos, que viveram a confiança num poder quase criador do Estado, desde Magalhães Godinho, que tudo transfere para uma alteração mais estadual do que real, até Álvaro Ribeiro, que não desespera onde as rosas murcharam, e quando olha Saturno já vê nascer Apolo; até Afonso Botelho e António Quadros, últimos companheiros no mesmo drama, que já é mais vivo nos que se lhes vêm seguindo – todos nós havemos de sofrer ou de sorrir, com paciência ou com ironia, a esta velha história de que o "rei vai nu".
Todos nós o vemos nu, mas creio bem que temos já os ouvidos fechados à voz do primeiro homem de coragem que há-de conseguir gritar-nos isso que todos nós estamos vendo».
«Nas Faculdades de Letras, a "filosofia", entendida como produto ou manifestação departamental, equivale à revolta das Letras contra o Espírito. Por outras palavras, a filosofia não é uma actividade de gabinete, isto é, não é susceptível de desenvoltura e recriação pneumática em gabinetes gélidos onde os estudantes ou os candidatos a profissionais da "filosofia" se prestam a exames, vexames ou até a interrogatórios quase policiais com a mera finalidade de passar à cadeira e, por conseguinte, obter o diploma de fim de curso. De resto, os profissionais em questão destinam-se, na sua maioria, a engrossar as fileiras de funcionários públicos do ensino médio, onde, caso consigam singrar, limitar-se-ão a inculcar aos adolescentes um programa curricular praticamente ditado pelas directrizes ideológicas de uma agência especializada das Nações Unidas, mais particularmente da UNESCO.
AFONSO BOTELHO E O PROBLEMA UNIVERSITÁRIO
No inquérito aos pensadores católicos iniciado há algumas semanas nesta página da Flama, cabe hoje a vez de ouvir o escritor Afonso Botelho, personalidade bem conhecida pelo mérito dos seus livros e pela sua acção social nos ambientes culturais. Autor de livros que não escaparam à observação do público, tais como O Drama do Universitário e Estética dos Painéis, para não citar mais elementos de uma vasta bibliografia, o nosso entrevistado exerceu as funções de chefe dos Serviços da Campanha Nacional de Adultos.
Convidado a prestar as suas declarações sobre o problema universitário, o ilustre escritor acedeu gentilmente. A princípio ficámos embaraçados na escolha da primeira pergunta, mas logo tomámos a decisão de começar a entrevista abruptamente para não perder tempo. E assim dissemos:
- Continua o sr. dr. Afonso Botelho ainda interessado pelos problemas do ensino? Não esqueço o efeito do seu ensaio O Drama do Universitário, tão discutido por altura da sua publicação.
- Continuo, mas de um modo muito diferente daquele com que escrevi esse meu livro. Hoje penso e sinto aUniversidade intelectualmente, ao passo que há cinco anos escrevia porque participava intimamente nos destinos dainstituição universitária. Escrevi grande parte do livro enquanto estudante e sinto-me honrado por isso, esquecendo assim as críticas, sobretudo dos professores, que procuravam esconder a razão dos argumentos na motivação pessoal do autor. Estas críticas parecem-me falsas não só relativamente àquela obra mas também na dialéctica da cultura portuguesa em que a maior deficiência está na falta de participação pessoal nas ideias e nos problemas.
Se a Universidade na minha opinião deve ser dos estudantes, só os estudantes enquanto tais, isto é, enquanto sofrem as humilhações morais e intelectuais provenientes do desvirtuamento da Universidade, estão em condições de escreverem, de falarem ou de pensarem sobre ela.
Afonso Botelho |
- Quer dizer, se bem entendo o pensamento que o sr. dr. expressou já em O Drama do Universitário, a Universidade será uma corporação dos estudantes. E os professores? De que modo participariam nesta Corporação?
- Na verdade sempre pensei e afirmei que a instituição universitária pertence aos estudantes. Hoje estou ainda mais convencido disso e dou até ao verbo pertencer o seu mais amplo significado. A experiência ensinou-me que as manifestações parciais da autonomia dos estudantes perdem-se tanto nos Conselhos das Faculdades como no silêncio com que a opinião pública acolhe e isola as mais legítimas reclamações. E enquanto não se entender a Universidade como uma corporação só dos estudantes, todas as tentativas, conscientes ou inconscientes, de restaurar a Universidade apenas podem ser consideradas como reclamações, sujeitas portanto, mesmo quando legítimas, a não serem atendidas por motivos de interesse geral ou pela natural disposição para o esquecimento. Só depois de se fazer presente esta ideia é que poderia ser útil responder à sua pergunta, visto que o destino que caberia aos professores na Universidade só estaria em causa depois dela pertencer aos estudantes. Nesta situação surgiria uma alternativa; ou os professores entrariam na corporação também como estudantes, ou seriam seus funcionários.
- Quer o sr. dr. dizer que lhe repugna considerar os professores como empregados da Universidade, quaisquer que sejam as categorias ou nomenclaturas com que encubram a sua situação servil, ou de serviço, perante o Estado?
O nosso entrevistado não respondeu porque seguia talvez outra linha de pensamento. Resolvemos insistir:
- Em vez de empregados do Estado, os professores seriam talvez empregados dos estudantes ou da respectiva Corporação. Não é assim?
- De modo nenhum, pois do meu ponto de vista a Universidade não se relaciona directamente com a cultura. Da confusão entre a Universidade e a cultura provêm as consequências que cada estudante tem ocasião de verificar diariamente, pois nas aulas ou nas publicações de carácter universitário fica patente que os assuntos culturais surgem sempre diminuídos e empobrecidos, parecendo imediatamente aos auditores ou leitores que eles são expostos em segunda mão. Com efeito, a Universidade considerada como fonte de cultura tem que ser sempre inferior aos meios actuais de difusão cultural, mais directos e mais fiéis, às verdadeiras fontes de criação que foram e serão exclusivamente as obras individuais.
Uma amostra do "constitucionalismo universitário" em Portugal |
-Desculpe, mas neste ponto não estou de acordo consigo. Parece-me, que separando o espírito e a cultura, o autor e o professor, diminuirá muito a importância e a missão da Universidade...
- Pelo contrário, a separação que eu faço não serve para diminuir a Universidade mas para a dignificar, visto que não reputo a cultura como a manifestação mais elevada do espírito humano. Acima da cultura coloco a sabedoria e acima dos autores, a verdadeira autoria que é, como quem diz, a inspiração divina na participação da Verdade. Separando a Universidade da cultura, liberto-a daquela situação inferior em que a espera uma derrota certa na concorrência dos outros meios e das outras instituições culturais.
- Então qual a verdadeira missão da Universidade segundo o seu ponto de vista?
- Já que você fez e muito bem a distinção entre autor e professor posso dizer-lhe que a Universidade, para mim, não deve preparar professores, isto é, homens com licença para expor e examinar, mas futuros autores ou seja, homens dispostos a encontrar a autonomia dos seus actos na relação transcendente com o princípio de toda a autonomia, ou de toda a autoria. Daí que a relação mais elevada que pode haver entre o corpo docente e o corpo discente passe a ser, na Universidade que prevejo, a relação mestre-discípulo. Para ela deve tender a convivência quotidiana de professores e alunos, embora ela só se consiga raramente porque raros são os verdadeiros mestres e pouco frequentes os bons discípulos. No entanto, volto à mesma ideia afirmando que tal relação mestre-discípulo só se realizará se o professor entrar na Corporação Universitária na qualidade de estudante e se, portanto, só aos estudantes couber o governo da mesma Corporação.
Terminam aqui as declarações do nosso ilustre entrevistado. Ao compilar as notas para a redacção deste texto pareceu-me ver que as teses do dr. Afonso Botelho são hoje as seguintes:
1. A Universidade deve ser a Corporação dos estudantes, e por eles dirigida.
2. Os professores são também estudantes mais adiantados e mais experimentados.
3. Mestres e discípulos colaboram na realização de uma obra que está acima da cultura divulgadora.
4. Não há, portanto, lugar para exames nem para desigualdades humilhantes de categorias sociais ou profissionais dentro da Universidade.
(in Flama, ano XIV, n.º 522, Lisboa, 7 de Março, 1958, pp. 11 e 18. Conversa originalmente editada com o título: "A instituição universitária pertence aos estudantes").
terça-feira, 29 de maio de 2012
O exame e o ensino superior
Escrito por Afonso Botelho
«...Por vezes, em consequência da execução da pena de morte, há uma cabeça que se separa do corpo e um corpo que se separa da alma. Na execução da pena de exame, há certamente muitas cabeças que deixarão de pensar, o que é o mesmo que dizer que se separaram para sempre das benemerências do Espírito.
Quem poderá esquecer-se da agressividade mortífera do estudo preparatório para exame?! Uma preparação assim - quem não a sentiu? - transforma-se na técnica mais decisiva de nos cindir por dentro, até atingirmos a perfeição de haver um outro que pensa por nós [António Telmo, no seu livro "Arte Poética", define assim o automatismo mental]. Esse outro coincidirá com a imagem do juiz que espera a hora final do exame para nos devolver à Natureza, donde viemos, classificando-nos com os mesmos critérios com que se classificam insectos espetados por alfinetes».
Afonso Botelho (revista «Escola Formal», n.º 4).
«O ensino oral da literatura e da filosofia, como também o da história, só tem valor educativo quando transmitido por artistas inspirados e eloquentes. O professor sedentário, que se senta e preside aos trabalhos escolares, que murmura correctamente a lição de apontamentos colhidos em livros alheios e que verifica se os alunos são capazes de fixar, de repetir, ou pelo menos de resumir o que ouviram durante o ano lectivo, está muito longe do ideal do magistério. Quanto mais impessoal quiser ser, em sua didáctica, o professor que desligue o seu espírito e a sua alma da relação afirmativa com o objecto do ensino, tanto mais degradará a sua função de ministro da cultura.
Só o crente pode ser mestre, só o homem esperançado é capaz de conceber os argumentos, as provas e as demonstrações que iluminam e aquecem as almas dos seus conviventes. O didacta que se limite a expor a ordem de um programa, para habilitar o aluno a responder a um interrogatório ou exame; o didacta que não exerça a crítica, que não formule juízos de valor, que não relacione as ideias com os sentimentos; enfim, o didacta que não se entusiasme - realizará um ensino frio, baço e infecundo. O verdadeiro ensino da filosofia é incompatível com a neutralidade restrita de obediência aos estatutos, com a imparcialidade e a impessoalidade.
(...) O que magister dixit quanto a bibliografia é quase sempre respeitado pelos alunos, pelo que os professores não deixam de recorrer a este processo eficaz de unificação cultural. Assim desviam a atenção dos alunos, assim evitam perturbações no ensino, sem que por isso estejam livres de que um escritor leigo consiga com um opúsculo modesto esclarecer o que o clérigo não explicou bem nas suas lições magistrais. O aluno extremamente dócil aceita do "magister" o aviso contra os escritores que não seguiram a carreira universitária, mas o estudante de espírito livre, aquele que prefere julgar por si a julgar por outrem, não deixará de completar a informação bibliográfica, descobrirá bons livros que o professor não citou por julgar maus, e acabará, muitas vezes, por encontrar uma tradição cultural que contradiz o dogmatismo da escola».
Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
O EXAME E O ENSINO SUPERIOR
Mais do que fixar o que o aluno deve aprender, importa a um sistema de ensino superior valorizar a interrogação, ou a possibilidade prévia, do que aprende, de rejeitar a matéria fixada, e nos termos em que se fixou. Tal condição, que é própria do grau superior do ensino universitário, consente e promove o exercício da inteligência do adolescente na sua função de discriminar e dinamizar o saber.
Interrogar é, assim, o verbo que proporciona ao espírito a manifestação da inteligência, do intelecto activo, antecedente da enunciação da «matéria», que aquele, primeiro, identifica e, depois, escolhe.
Digamos que da precedência da interrogação depende a liberdade do ensino e não, como é usual dizer-se na linguagem de economia política, do acesso de todos, a todos os graus do saber.
O fluxo das gerações de aprendizes, crescendo em progressão geométrica e correndo em avalanche para as fontes disponíveis de licenças de trabalho, gera-se na ideia de igualdade e não na de liberdade, como a propaganda democrática se empenha em fazer crer.
Será o organismo social naturalmente obrigado a reagir perante as consequências práticas de tão abstracta e inviável ideia. Todavia, os responsáveis políticos pela educação supõem que a eles cabe a livre iniciativa das medidas para conter tal avatar. Deste modo se amanham as reformas do ensino com o remédio da doença que previamente se inoculou e sempre com a assinatura dos ministros respectivos. As vítimas reais são estudantes, a quem se vão criando os obstáculos para os impedir de serem estudantes.
Assim como a divisão constitui a operação imediatamente inversa da multiplicação, o «numerus clausus» constitui a consequência imediata deste absurdo.
O exame é, contudo, o obstáculo mais grave exactamente porque inverte o sentido da interrogação, dando toda a iniciativa ao examinador e afastando a «matéria» da individuação intelectual do estudante, da sua capacidade de identificação e de escolha.
Sem interrogação não há pensamento. E pensadores deverão ser, por definição, os estudantes do ensino superior.
Se durante os primeiros graus do ensino é indispensável criar virtudes intelectuais para se poder pensar, no grau superior, trata-se de exercer o pensamento na matéria que mais enigmática e interrogável se apresentou a cada estudante. Retirando ao aluno a possibilidade de escolher o enigma, ou a propriedade do interrogável, retiramos-lhe o estímulo para continuar a reassumir a interrogação. Ora, «a interrogação que não se reassume a cada instante do pensamento é, dizemos, tão-somente pergunta ou procura, infecundo interrogar ou já estéril no qual se torna vã toda a resposta» (1)
Pela perda da liberdade de encontrar o enigma próprio, o aluno, sujeito a exame, sente-se como o expropriado, vazio de conteúdo, sem estima pelos conhecimentos que não lhe pertencem; pela perda das formas de pensamento, emergentes da interrogação que perdura, o examinado deseja ansiosamente esquecer tudo que aprendeu, logo a seguir ao exame. Invertido o sentido da interrogação, o único, portanto, que continuará cumprindo o seu dever de interrogar, mais correctamente, é aquele a quem compete apenas ensinar.
Nestes termos, o ensino superior, afectado pelo exame, no acesso e na saída, dirige-se às faculdades menos criadoras e mais inferiores da mente humana. Sem atender às leis da memória que iluminam um vastíssimo campo, de limites ainda desconhecidos, desde a consciência de si próprio às fronteiras supra-sensíveis com o «outro», o exame sujeita o candidato ou a profissional, no ingresso para a universidade e no egresso para a «vida», a um interrogátorio que contraria todas aquelas regras, incluindo as de identificação do examinando consigo mesmo.
Este desacerto da subjectividade do discente com a objectividade do ensino tem a sua confirmação plena nas formalidades do exame que se iniciam com a exigência de apresentação do bilhete de identidade. A partir dessa primeira exigência, todo o ritual se desenvolve no sentido de anular a individualidade do estudante e também a do professor. Disfarçada com o sentimento moral da imparcialidade, que o comum das pessoas intervenientes no exame (examinador, examinando, família do examinando) aceita e até reclama, volta a ideia de igualdade a ser causa de uma distorção social irreparável: a transformação do professor num juiz, a quem se retira, como progressivamente se tem feito à Magistratura, o «sagrado» dever de aplicar a lei universal ao caso singular.
Efectivamente, tanto o legislador como o que governa, pautando os defeitos pessoais ou as imperfeições humanas pela ficção socializante da igualdade dos homens (e das mulheres), elaboram leis, já não universais, mas apenas gerais, em que tentam prevenir todos os casos particulares, ou emitem ordens e portarias baseadas na mesma desconfiança dos outros e na estulta presunção de evitar os seus erros. Conhecida a causa ideológica do exame, não podemos esperar que o ensino superior se aproxime do que deve ser. Pelo contrário, a perspectiva socialista aumentará o poder do exame, o seu carácter judicial, a unidade nacional de seus quesitos por forma a que o estudante universitário não interrogue mas seja interrogado, até desistir de ser estudante. Plenamente integrado, será mais útil à «Sociedade» (in revista «Escola Formal», n.º 2).
(1) José Marinho, Teoria do Ser e da Verdade, Guimarães Editora.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
O drama do universitário (ii)
Escrito por Afonso Botelho
O culto do diploma
1. «(…) A Universidade confirma hoje as situações mais rendosas do País e também, o que é mais grave, as situações dos remediados e menos que remediados, visto que, para os lugares de privilégio e para o sustento da classe média, é exigido o beneplácito dos professores universitários através dos diplomas de acesso. Esta sujeição constitucional duma pátria a uma instituição, contribui primordialmente para a adulteração do princípio de finalidade na convivência dos portugueses».
2. «A classe dos Professores Universitários não é renovadora da Universidade, mas a cada momento confirma o seu comprometimento no declínio progressivo e efectivo da instituição e de tudo o que ela representa».
3. «A relação paterna, protectora, e iniciadora na sabedoria da Natureza e da Família, fica inteiramente negada na Universidade, onde o aluno, é determinado, pela lei e pela mentalidade universitária dominante, como elemento do mundo dos seres da Matemática, como algo morto e estático, que não se move, não sofre e não opera. Para oprofessor universitário, que ordena a Universidade, a acção estudantil é o oposto da noção de enteléquia, é o contrário de obra e de fim. Torna-se por isso contraditório que o estudante possa ter um fim próprio a atingir ou uma obra pessoal a realizar. A única operação que se lhe atribui é a da adição, através do dever de somar os valores necessários à obtenção do diploma».
4. «O monopólio do trabalho ou do diploma, que é a autorização de trabalhar, intensificou-se cada vez mais nas mãos das Faculdades, animicamente agonizantes – até matar, em alguns casos, a última réstea da liberdade de estudo».
Catedratismo
1. «O catedratismo é uma doença generalizada entre nós, em todos os meios e em todas as instituições. Porém, a sua origem permanente e genérica está na Universidade».
2. «Os dois sintomas que apresenta, na vida social – o imobilismo e a eminência – são exactamente a reprodução dos aspectos mais salientes da posição catedrática. De resto, o catedratismo social define-se também como posição, nunca como situação. A situação é o lugar de relações passivas e concretas, a posição (social) é lugar de expressões unilaterais e abstractas. O catedratismo é realmente a ilusão endémica da posse duma cátedra, isto é, a manifestação puramente subjectiva dos sentimentos e volições que alguém pode ter numa posição separada dos outros e mais alta do que eles. E por ser ilusão e abstracção é que o catedratismo pode existir em todos os meios sociais, em todas as profissões, desde a de catedrático propriamente dito, passando pela de chefe político, até à de contínuo, à de merceeiro ou barbeiro».
3. «(…) o catedratismo universitário não é tão ilusivo porque se fundamenta numa estrutura social e numa construção jurídica. O catedrático universitário usufrui, dentro e fora da Universidade, da mais alta consideração social e dos mais seguros privilégios. Basta pensar que ao catedrático está reservada, com total exclusivismo, pelo menos, uma das pastas do governo».
4. «Só no plano pedagógico, naquele que lhe é próprio, é que o catedrático universitário representa a mais ilusória, senão a mais contraditória das realidades. Com efeito, a posição separada e superior do catedrático contradiz a natureza psicológica do jovem estudante e a essência da comunidade».
5. «(…) na Universidade portuguesa actual, o catedrático (…) é o sujeito principal, para não dizer único, da vida universitária; governa a instituição e os estudantes, com total exclusivismo; conduz as aulas e distribui ou nega os diplomas; escolhe e elabora os programas, etc., etc.. (…) A posição do catedrático é, portanto, pedagogicamente errada e tende naturalmente a transformar-se num erro social e político – o catedratismo. Os professores universitários, por melhor intencionados que sejam, por vezes mesmo inconscientemente, sofrem a atracção do catedratismo – do erro pedagógico e social resultante duma posição humanamente falsa».
6. «Esta posição é também consequente, no campo da doutrina, onde se projecta dum modo talvez ainda mais grave, pois, dominando a cultura aparente duma época, torna-se universal e universaliza os seus erros e desvios».
7. «A sociedade portuguesa actual sobrevaloriza apenas o professor imóvel e catedratizado e quase desconhece a missão condutora ou educadora do professor convivente».
8. «A cátedra, vista unicamente como pertença da colectividade burguesa dos nossos dias, perdeu também a riqueza do seu simbolismo, quer esotérico, quer exotérico».
9. «A cátedra do nosso tempo desceu ainda mais (enquanto ironicamente subiu no conceito social), porque deixou de ter qualquer relação com o símbolo – manifestação e incentivo do saber ascendente. Perdeu também a ordenação ao mundo das significações espirituais, aliás como a profissão e até o professar, ambos com a mesma raiz de professor».
10. «O professor que usa socialmente os favores da cátedra já não pode fugir ao seu império, gravitando em torno da sua imobilidade, aspirando sobretudo a conservá-la e a conservar-se nela. Deste modo se ordena o superior ao inferior e a cátedra, não podendo ser sede de sabedoria, é fulcro material da inferioridade dos que a ela se candidatam (de desejos e ambições, intrigas e malevolências), ponto de encontro de relações sociais vazias».
11. «A relação pessoal com a Verdade também o catedrático a tem prejudicada pelo condicionalismo da sua situação. Não encontrando nela nenhum motivo de liberdade, nem individual nem colectivo, o professor catedrático não se move no mundo da Verdade mas no mundo das verdades, não expõe um saber de si próprio mas dos outros, isto é, não podendo saber o que sabe, apenas expõe o que expõe – é um mero expositor».
12. «A perturbar o comprometimento natural do homem surge sempre o comprometimento social do catedrático, e só excepcionalmente, contra a sua situação, ele consegue comprometer-se com alguém. Quer dizer, a categoria do professor universitário é uma categoria social falsa, porque não recebe em si, não se amolda à humanidade de quem nela se integra».
13. «Houve portanto uma sucessiva degradação nos tipos de Professor Universitário, desde o primitivo e genuínolente, para quem a cátedra era suporte duma leitura esotérica, passando pelo professor propriamente dito, cuja missão era declarar exotericamente o seu saber, até ao catedrático de hoje que cumpre o mero encargo de expor saber alheio».
Estado
1. «A autonomia deveria ser uma realidade indiscutida e indiscutível na Universidade».
2. «(…) o Estado, perante uma Universidade que não se impõe, nem revela vida própria, julga-se na obrigação (e com a facilidade) de prefixar juridicamente a vida de professores e alunos, metendo-se assim entre uns e outros, impossibilitando cada vez mais a corporação universitária».
3. «A educação não pertence primordialmente ao Estado, mas apenas subsidiariamente».
4. «O Estado não tem direito actual de transformar uma instituição sem atender ao fim para que foi criada e ao lógico envolver histórico dos seus interesses e atributos».
5. «A Universidade não é uma construção mecânica e intemporal que, em qualquer momento, possa ser virada de um lado para o outro e cuja vida dependa dum plano abstractamente concebido e exclusivamente elaborado por entidades, por força do seu cargo, estranhas à mesma construção».
6. «A Universidade não é um regulamento que se substitua por outros regulamentos, é antes de mais a vida orgânica dos estudantes, historicamente iniciada há séculos, com o sentido social e cultural marcado por uma missão que transcende, em muitos aspectos, a própria missão do Estado. (…) Reformá-la, com o mesmo direito com que se altera o horário do funcionalismo ou a orgânica de uma direcção-geral, seria desconhecer a própria razão histórica da Universidade…».
7. «O Estado que sonega o poder espiritual das suas universidades governa um povo, incompleto para a continuidade tradicional, por lhe faltar uma das suas melhores garantias, e aberto a influências culturais que o impedem de tomar o lugar que lhe cabia no desenrolar da História».
Cientismo
1. «(…) o culto da Ciência é o fruto duma transposição abusiva do pensamento. (…) Nas nossas universidades esse culto reedita-se constantemente (…) na adaptação vulgarizada do profissionalismo e do tecnicismo».
2. «O profissionalismo é a adaptação social desse culto. (…) O tecnicismo é a consequência imediata da ausência de hierarquia entre as ciências universitárias e a expressão elucidativa da falta de universalidade na sua interpretação – o que equivale à inexistência dum elemento indispensável ao simples conceito de Universidade e à sobrevalorização do útil, na Ciência aplicada».
José Ortega y Gasset |
3. «A Universidade não se reduz a uma fábrica de ciência, nem se basta com o significado dum rótulo igual ao de «Ensino Superior» porque, tanto pela sua génese, como pela categoria institucional que lhe está na base, é, sobretudo, um núcleo humano dirigido a um fim e agregado por ele. Mas é um núcleo humano, e o fim a que se dirige encontra-se radicado ainda na própria natureza humana, no homem considerado na sua totalidade».
4. «Vem muito a propósito citar o seguinte passo da «Missão da Universidade» de Ortega y Gasset: «A Ciência é o maior prodígio do Homem; simplesmente, por cima e acima da Ciência está a própria vida que a torna possível…».
5. «(…) educação científica é uma expressão absolutamente contraditória. Educação significa sempre um caminhar para a realização integral do Homem, e nunca pode esse título autêntico de homem realizar-se com o que a ciência lhe fornece. A Ciência é feita para o servir, ou no domínio da natureza que o rodeia ou no progressivo conhecimento da sua própria natureza. Só por abusiva transposição o próprio criador da Ciência passa a servi-la, ou antes, passa a supor que a serve porque, quando a Ciência está no topo dos valores de uma época, não é na realidade ela que está, mas a prova de que o Homem se esqueceu de metade de si próprio».
6. «A Universidade, que pelo seu curriculum nega ao aluno a reflexão, impondo-lhe exclusivamente ciência experimental e relacional, pelo magistério opõe-se à sua evolução para o sobrenatural. Com efeito, usando categorias estrangeiras, a Universidade intercepta a natural marcha do pensamento português, que, começando em realidades imaginadas, ascende naturalmente às imagens realizadas, às imagens do culto».
7. «(…) o Positivismo «é mais uma corrente de opinião do que uma escola filosófica». O ambiente da cultura vigente nos países onde o Positivismo fez carreira (e estão nesse caso Portugal e o Brasil) é propício à formação, em cada uma das sucessivas gerações, dum espírito ou dum critério a que corresponde uma força social».
8. «Ambos obrigam o modo de pensar a exteriorizar-se, chamando o sujeito do pensamento à integração no mundo exterior, da História das ideias como factos, da religião social. O real, a que o Positivismo vincula toda a realidade exterior ou interior ao homem (transcendente ou imanente), representa o máximo da exteriorização, pois atinge os aspectos antropológico, cosmológico e teológico do saber humano e, dum modo efectivo, já que é uma corrente de opinião constituída em força social».
9. «O Positivismo, sendo uma corrente de opinião, penetrou as ideias e ideais da nossa época pela sua raiz social, igualando-as nos seus efeitos e significados às instituições e às entidades político-sociais. O progresso daexteriorização do modo de pensar chegou aqui ao seu máximo limite – que é também o limite da contradição implícita no seu sentido. O termo exteriorização já não serve. O modo de pensar extroverte-se, pois já não é no pensamento que encontra o fim perseguido, mas num verdadeiro mundo de obediências, compromissos e vinculações sociais. O real, ainda aferente da realidade, tem agora um qualificativo que exprime o afastamento da Natureza e de Deus; o real é positivo. Positivas têm que ser as ideias, os actos, os sentimentos, a vida enfim, para que valham na cultura vigente em Portugal, e ainda influente na convivência internacional».
Augusto Comte |
10. «O Positivismo estabeleceu-se, portanto, como critério de ortodoxia, que pouco a pouco se transmuda em modo de pensar. Em todos os planos, quer no intelectual, quer no social, quer no cutural, o pensamento espontâneo encontra o mundo de artifício positivista. E do mesmo modo por que o candidato às colocações estáveis, ou aos graus universitários, tem de submeter-se a exames e concursos para os quais se faz, se forma, (disformando a sua livre personalidade) – as ideias fazem-separa o pensamento social vigente e dominante. A factibilidade das ideias é a primeira exigência da sociedade positivista. E as outras seguem-se, levando os valores espirituais à integral subordinação do real positivo, exterior ao homem concreto, a Deus Pessoal, à Natureza intacta, exterior ao que fundamentalmente determina o pensamento espontâneo do português».
11. «Os comentadores continuadores, relacionadores do pensamento genial, são entre nós, na sua quase totalidade, dominados pelo espírito positivo, ou, pelo menos, por categorias de pensamento invisuais para o nosso modo de pensar».
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
O drama do universitário (i)
Escrito por Afonso Botelho
Prelúdio
Relembremos agora o estado de calamidade pública da Universidade em meados do século passado. É de facto mais um factor fundamental para compreendermos o estado de podridão a que a mesma Universidade chegou nos dias de hoje, sem remédio nem esperança à vista. Do autor sabemos, aliás, que já então usufruía do magistério espiritual de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Sabia, portanto, do que falava e escrevia, quanto mais não fosse por haver experienciado o que já então não passava de um arremedo institucional.
Porém, certas e determinadas alusões à Igreja Católica foram aqui preteridas. E a razão reside no facto de a acção católica, hoje praticamente destituída de pensamento, se ter tornado estéril e inoperante. Deste modo, sem que tal signifique qualquer espécie de animosidade para com o Magistério da Igreja, e muito menos para com a correspondente profissão de fé do autor, transcrevemos apenas aqueles trechos que mais incisivos se nos afiguram ou apresentam para um melhor entendimento da questão universitária.
Por outro lado, a ideia de Universidade enquanto corporação espiritual, bem como a de instituição promotora da transcendência no concerto dos povos, é já coisa de antanho. Esqueçam, para efeitos de actualidade, a histórica filiação da instituição universitária no claustro monacal. Esqueçam ainda o modelo medievo arquitectado e inspirado nas sete colunas do Templo da Sabedoria. Tudo isso foi irreversivelmente banido e ultrapassado pela pós-modernidade triunfante.
Por conseguinte, resta para a maioria dos Portugueses o espectro da Universidade Pombalina, em que Aristóteles não mais representa o eixo. Todavia, o mestrado de Aristóteles continua por cumprir. E porquê? Porque quem «estudar Aristóteles sem mediação de comentadores desactualizados, quem se compenetrar da filosofia e da filomitia do Estagirita, não encontrará dificuldade em concluir que o melhor aristotelismo se concilia com o pensamento português».
Estas últimas palavras, da autoria de Álvaro Ribeiro, falam por si, tal como, aliás, também falam as de Afonso Botelho sobre os erros, as contradições e as iniquidades da hodierna Universidade defunta. E como não, se, na expressão do autor, «a grave crise [da cultura portuguesa] é inconsciente e secreta»? Logo, erguendo a âncora da filosofia portuguesa, vejamos no que consiste o drama do universitário.
Filosofia Portuguesa
1. «(…) na Universidade (…) se faz uma verdadeira ocultação dos autênticos pensadores portugueses, sobretudo dos contemporâneos e, claro está, dos seus discípulos directos. Ocultação de obras e de pessoas».
2. «No (…) pensamento [de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Pascoaes, Fernando Pessoa, etc.] (…) estão postos em causa os principais postulados do ensino oficial, tanto no que respeita à doutrina dominante, como no que respeita às bases pedagógicas que sustentam as instituições de ensino. A triste cadeira semestral de Filosofia Portuguesa [ou, mais propriamente, de "Filosofia em Portugal"] que faz parte do "curriculum" de algumas secções das Faculdades de Letras de Coimbra e de Lisboa, é também um dos processos de ocultação, visto que nela se oculta a originalidade actual e efectiva do pensamento filosófico português, pelo estudo da originalidade histórica e inofensiva da Filosofia Portuguesa».
3. «Nem a Filosofia Portuguesa se defende como uma coisa, embora seja atacada quase sempre como tal. Defender a existência e originalidade da Filosofia Portuguesa é defender, para portugueses, a autonomia do pensar e do falar. É essa autonomia que a Universidade dos Professores não pode ou não quer defender».
4. «Da relação mestre-discípulo conheço, apenas um caso, de resto tão significativo que chegou a dar forma nova à própria instituição e seu regime, ao mesmo tempo que individualizou um grupo de pensadores, continuadores das constantes dum pensamento comum, embora muito diferenciado nas suas posições doutrinárias. Refiro-me a Leonardo Coimbra».
Leonardo Coimbra |
5. «Um dos seus discípulos mais próximos, José Marinho, escreve no livro de «testemunhos dos seus contemporâneos»: "Leonardo Coimbra surge, pois, como um Mestre no mais nobre sentido da palavra. Isto quer dizer que jamais transmitiu saber feito, nem método para o alcançar". Esta afirmação só se entende, fundamentadamente, em paralelo com a realidade patente no nosso actual ensino universitário – em que o saber transmitido aos alunos não possui qualquer relação de existência, nem no espírito do que o transmite, nem na alma daquele a quem se destina, é um saber feito, isto é, acabado, morto. Daí, o facto evidente de se preferir, nas nossas “Faculdades de Filosofia”, sobretudo as disciplinas da história do pensamento e se ensinarem os métodos científicos do conhecimento como fundamentos do próprio saber».
6. «Assim como a via da relação mestre-discípulo excede os limites normais da Universidade a ponto de, quando se verifica, chegar a romper as normas estatutárias, a via da cultura fica aquém da natureza e missão próprias da instituição medieva. A via da cultura é (…) a que está mais próxima do conhecimento e mais afastada do saber. A cultura é, sob certo aspecto, saber objectivado e permite, portanto, que as relações concretas da elaboração de pensamento derivem e se integrem no esquema exterior e abstracto do acto geral do conhecimento, nas relações menores de sujeito-objecto».
7. «(…) o estudante que não encontre durante o curso um mestre, vivo em si próprio, ou nas suas obras, não completou a sua formação embora leve consigo a garantia da sua formatura».
Língua Portuguesa
1. «A degradação da linguagem no sentido da letra morta explica todo o nosso ensino, em que é patente e geral a hegemonia da palavra escrita sobre a palavra oral. No ensino secundário, cada vez se acentua mais o predomínio das palavras escritas; no ensino superior, até mesmo as provas orais são, no fundo, a repetição do que está escrito na sebenta, não significando, portanto, qualquer libertação da letra».
2. «Este processo de degenerescência de linguagem teve, por causa, a situação heterónoma em que culturalmente esteve, e está, a Língua Portuguesa, sujeita ao falar e ao escrever do estrangeiro, e por efeito, a perda total de autonomia das instituições de educação e cultura. E mesmo o Catedrático, que no regulamento da Universidade é, indiscutivelmente, o titular dos únicos direitos, deixou, à porta de entrada, a sua independência cultural, para não ter que utilizar a porta de saída».
3. «O "trivium", que é afinal o estudo da oralidade, cedeu hoje completamente o seu lugar na hierarquia do saber, ao conhecimento da letra e das letras».
Professores e alunos
1. «O elemento docente, como tal, está constituído em função do pluralismo da sociedade, das potências sociais, não podendo concorrer portanto para o universal, que a essência da Universidade exprime. Rigorosamente, a Universidade de hoje não deveria chamar-se universidade mas "diversidade", pois a sua missão, interna e externa, é a de "diversificar": diversificar a Ciência, impedindo uma hierarquia de conhecimento verdadeiramente progressivo, do múltiplo para o uno, do conhecer para o saber; diversificar a alma dos alunos pela adição dos conhecimentos científicos e subtracção dos valores de Espírito; diversificar os licenciados, ou "formados", pela especialização das profissões e das funções do Estado; por último, diversificar-se a si própria, no âmbito dos que a dirigem, através de intrigas pessoais, estreitos redutos de escola ou sistema, processo de ensino, posição política, etc., etc.».
2. «Enquanto o drama do Professor é um drama de vontade ou de consciência, que termina quase sempre em comicidade, o drama do aluno é um drama de obediência, de paixão inconsciente, que se prolonga pela vida fora, imerso nas carências da personalidade e nos erros dos costumes sociais».
3. «O primeiro conhecimento que a Universidade oferece aos seus neófitos é o da distinção, ou separação absoluta, entre a doutrina e a personalidade».
4. «Os estudantes universitários não formam nenhuma classe, nem à face do Estado, nem muito menos à face dos professores; formam sim, eles e os professores, uma instituição que deverá viver harmonicamente com as outras dentro da Nação».
5. «A quebra da tradição universitária, o corte na sua essência histórica, fê-la perder o poder espiritual exercido em três sentidos correspondentes às três formas da sua missão: fê-la perder o seu próprio domínio interno, que era o da educação e da convivência universal de estudantes e professores – Universitas magistrorum et scholarium; fê-la perder a sua acção determinadora na vida nacional (…); fê-la perder, por último, a sua acção no entendimento espiritual das nações…».
6. «Enquanto a vida interna da Universidade não tiver configuração própria, enquanto professores e alunos não estiverem ao serviço de uma causa comum que lhes ordene a existência e lhes complete a personalidade, enquanto o ser universitário não for uma qualidade que implique certo tipo espiritual, não há "Universitas" nem se reconduz a Universidade à sua acção educadora».
7. «A nossa Universidade nasceu e desenvolveu-se de raiz vincadamente discente. Os escolares, os seus interesses, ou, mais tarde, o valor simbólico dos seus direitos, deram sempre à Universidade portuguesa o carácter estudantil e não professoral. (…) O panorama actual (…) é a própria oposição do que, outrora, a Universidade portuguesa foi».
8. «O tipo discente de Universidade é aquele que assenta numa comunidade de estudantes, no universal concreto, determinado pela vida, em comum, de pessoas que se juntam para estudar. Este foi o tipo da Universidade portuguesa (…), o tipo mais real de Universidade. (…) Isto não quer dizer que os professores não caibam na corporação, mas antes que o seu lugar é, secundário, enquanto lentes, e legítimo, enquanto estudantes».
9. «A comunidade dos que estudam, primacial e antecedente da corporação dos que lêem e dos que ouvem, em qualquer tipo de Universidade, tem, no regime da Universidade portuguesa, a tradição de garantir aquela comunidade básica dando ao elemento discente toda a autoridade e supremacia em desvavor do elemento docente».
10. «Não é a corporização dos mestres e dos escolares que nos deve preocupar porque nem uns nem outros formam, por si, elementos essenciais da Universidade. Se a quisermos verdadeiramente reformar, temos que descobrir primeiro o segredo daquela comunidade de estudantes sobre que todo o resto assenta. A corporação ou a convivência ordenada de professores e alunos virá depois, no decurso lógico da vida comunitária dos que têm por finalidade o saber universal».
11. «Assim como toda a verdadeira comunidade só deve governar-se por si própria, a Universidade, para voltar a sê-lo, só deve ser governada pelos estudantes».
Capela de São Miguel da Universidade de Coimbra (século XVI) |
12. «A mais evidente causa da morte da Universidade portuguesa é o seu funcionalismo total – que atinge alunos, professores e a própria instituição…». «Faltando à Universidade civil uma finalidade espiritual, toda a sua acção se degradou. Desapareceram nela, na sua vida corporativa normal, as únicas fontes de liberdade – avocação e o desejo de saber».
13. «O professor tem uma significação meramente social na vida portuguesa. Já ninguém suspeita da missão educadora que esse nome devia suscitar».
Pena de Exame
1. «Ao estudante, oferecem-lhe apenas autonomia para o sofrimento dos exames. É uma autonomia motivada mas não justificada, porque o sofrimento que não sirva a salvação, não é justo nem justificável».
2. «O drama do exame é, em Portugal, um drama colectivo, que cada vez mais se alastra através da alfabetização, se intensifica pela influência do número às colocações e se imprime na sensibilidade e no carácter dum povo».
3. «Onde porém, o exame é mais falso e também mais dramático, enquanto se sofre evidentemente, é no ensino universitário, visto que, na Universidade, o estudante espera o fim do adiamento cultural sofrido durante a instrução primária e o Liceu».
4. «Tanto no que respeita à personalidade, como no que respeita à Sociedade, a instituição universitária, pelo menos a partir da reforma do Marquês de Pombal, opõe-se ao livre desenvolvimento do princípio de individuação, que na comunidade política, se designa por nobilitação».
5. «Com a perda da tradição aristotélica na Filosofia, perdeu-se também o princípio fundamental da educação da nobreza, daquela nova nobreza que justificou a maior evolução e dilatação da Pátria».
6. «Desde que se considere o exame como método pedagógico, e é como tal que o consideramos em todo o nosso ensino, porque lhe damos a primeira e última palavra, a unidade lógica e temporal da aprendizagem é o conceito terminal, o conhecimento sem continuidade, que a cada momento se suspende para ser examinado».
7. «Acentuou-se o valor do exame, entre nós, com o progresso do critério experimental, a ponto de, hoje, se reputar este critério, não só o único capaz de avaliar o saber do aluno, como o único possuidor de virtudes estimulantes e pedagógicas».
8. «O método experimental, tal qual é preferido pelo senso comum destina-se a conhecer os fenómenos, a aparência da realidade, e é exactamente como aparência que o aluno é conhecido no exame».
9. «Quanto mais se radica o ensino no saber examinável, mais se descobre o desconhecimento em que forçadamente são colocados o examinador e o examinando – basta observar o crescente cuidado de anonimato nos exames liceais, onde se está logicamente à espera da máquina perfeita, que consiga mascarar por completo a pessoa do examinador, pois este cuidado tem origem na opção de quem ensina e de quem examina, sendo a passividade do aluno apenas um reflexo da actividade do Professor. Isto significa que (…) o sistema do anonimato, da classificação e do exame, não consegue esconder totalmente a bilateralidade da nota classificadora. O professor que classifica, classifica-se».
10. «O examinando é que sente o falso drama, porque recaiem sobre ele, sujeito passivo do exame, as consequências sociais e espirituais de um ensino positivista. Fala-se no ensino positivista porque o Positivismo é a escola filosófica (pelo menos considerada como tal) que, exceptuando o Marxismo, mais se organizou para se efectivar socialmente. É uma escola que se exprime e se difunde através do curso, do discurso e do catecismo. Conseguiu, portanto, criar no meio docente de há várias gerações um substracto que explica todas as outras tendências e aparentes progressos».
11. «O examinando sente o absurdo de um saber que termina na prova, e que nada tem que ver com a formação da sua personalidade, porque, no exame, se devolve aos Professores que examinam os conhecimentos que ensinaram. E percebe também que a experiência a que vai ser sujeito é uma humilhação necessária para se manter o sistema em que o Professor domina o aluno».
12. «Todos os factores convergem neste momento para agravar a humilhação, mas o que fere mais cruelmente o estado emocional do examinando, é o conluio que se estabelece entre a sua família e o professor que examina, a antecipada concordância que pais e parentes manifestam perante a justiça do exame, denunciando assim que confiam mais no critério de estranhos do que no poder revelador do amor familiar. Uma boa parte das famílias portuguesas vem a reconhecer o valor ou desvalor dos seus filhos pelos resultados dos exames».
13. «No sistema da prova, tal qual se realiza no ensino português, falta a projecção natural da Fé, da Esperança e da Caridade: não se crê no que se aprende, não se espera nada do que nos é ensinado nem se confia em quem nos ensina, porque o exame é contrário ao amor humano e só estimula malquerenças, invejas e adulações».
14. «Nele, no exame, está realmente o segredo. A esse balcão comercia o aluno com o professor um diploma; aí se radicam os interesses fundamentais da Universidade. O professor, quer queira quer não, ensina para o exame, e o aluno aprende para o exame».
15. «O exame é o segredo. O segredo que conserva um agregado social na aparência de ser composto por dois corpos – o docente e o discente – que tem relações de tipo societário, isto é, de interesses ocasionais, com vários alunos, indiferentes entre si, mas supondo e dando a supor que constituem o corpo discente».
16. «O exame para os alunos, e o concurso para os professores, são dois ardis pelos quais o conselho dos catedráticos das várias Faculdades constantemente recusa a necessidade de escolher. Claro que a opinião individual continua a ser o elemento preponderante e decisivo. Não obstante a objectividade que se quer atribuir ao exame, todos os que já foram alunos ou professores sabem que, querendo estes, não há exame que valha à sorte dum aluno. Nos concursos a decisão escondida é ainda mais evidente, mas apenas porque os candidatos são em muito menor número do que os examinandos e os interesses postos em jogo muito mais concentrados. Num e noutro caso, porém, passa-se o mesmo: recorre-se a um processo de aparência para fugir à decisão activa e pessoal, esconde-se a potencialidade da opinião sob a carpintaria dum acto abstracto e positivo».
17. «O que o exame jamais consegue, nem mesmo na aparência, é doar a disposição de aprendizagem, o amor à Verdade (…). E isto porque o exame não chega a ser um processo pedagógico, mas uma derivante grosseira do questionário, que, por sua vez, já é uma derivante do método psicológico da experimentação».
18. «(…) todo o português é, hoje, por estado normal, um examinando. O exame estendeu as suas raízes muito para além dos limites da escola e (…) se seguíssemos a sua sombra, caminharíamos por regiões insuspeitas e insuspeitáveis. Talvez chegássemos à mais alta hierarquia temporal e até religiosa. Quero com isto dizer que o ambiente de prova de exame, acalenta o estado anímico do português, em todas as suas manifestações, quer profissionais, quer políticas, quer religiosas. Talvez não seja difícil sustentar a tese de que o próprio Deus é hoje mais usualmente crido e sentido como Supremo Examinador do que como Deus de Amor».
19. «Todo o recém-nascido é já um examinando em potência e mal começam a amadurar as suas faculdades já o é em acto. E nunca mais o deixa de ser até à reforma – ou seja até à morte para o trabalho social».
Continua
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