"A Rússia desmascarou o blefe norte-americano"
© Colagem: Voz da Rússia
A atual situação na Síria, o cerco dos rebeldes ao povoado cristão de Maaloula, a relação da população com a Rússia e com o Ocidente foram comentados à Voz da Rússia pelo jornalista e correspondente de guerra italiano Gian Micalessin, que presenciou os acontecimentos.
– Nos últimos dias se tem falado muito da tomada pelos rebeldes armados sírios do povoado de Maaloula. Como está atualmente essa situação?
– Está tudo bastante triste, porque o povoado foi abandonado pelos representantes das comunidades cristãs. Contudo, recordemos que se trata do povoado cristão mais antigo, onde se falava aramaico, a língua de Cristo. No sábado, o Exército tentou, sem sucesso, realizar uma operação para a sua libertação. Eu também participei. Os blindados e os soldados entraram com a alvorada, mas não conseguiram avançar em profundidade porque ficaram sob fogo dos militantes da Al-Qaeda que se entrincheiraram em posições mais elevadas, nas escarpas perto do Mosteiro de São Sérgio e São Baco. Os tanques ficaram atacados porque na estrada de montanha foi despejado petróleo bruto. A ofensiva falhou. Nesse momento, os rebeldes voltaram ao povoado e realizaram represálias. Por colaboração com o governo, eles mataram três cristãos da família Tarab, cujo funeral se realizou esta manhã em Damasco. Uma multidão enorme ocupou as ruas da parte velha da cidade. Os soldados de Damasco e os refugiados de Maaloula choravam os seus novos mártires. Depois teve lugar a cerimônia fúnebre religiosa numa igreja greco-católica na parte velha de Damasco. Os três caixões entraram na igreja aos ombros do povo que chorava. A dor, a tristeza e o medo alastraram a todo o povoado, um símbolo do Cristianismo, depois de ele ter ficado nas mãos dos militantes da Al-Qaeda.
– Como se sabe, os cristãos sírios estão muito preocupados com a possível intervenção norte-americana.
– Os cristãos não percebem os motivos da intervenção americana, especialmente na véspera do 11 de setembro. Porque é que é preciso atacar a Síria, onde atua a Al-Qaeda, o principal inimigo dos cristãos? Se o governo sírio cair, é bem possível que a capital e a maior parte do território fique sob controle da oposição. “Eu tenho pena dos cristãos e dos governos europeus que não percebem que depois de nós eles irão atingi-los a eles”, disse-me um sacerdote de Maaloula.
– Isso é muito difícil. O governo não tem o monopólio das armas químicas. Recordo que Carla Del Ponte, da Comissão da ONU, referiu no início de maio a responsabilidade dos rebeldes por ataques com armas químicas, nomeadamente em Aleppo no ano passado. Em seguida, em finais de junho foram descobertos no Iraque dois laboratórios da Al-Nusra e da Al-Qaeda onde eram fabricadas armas químicas alegadamente semelhantes às usadas nas zonas de Guta e de Jobar. No início de junho, os serviços secretos turcos encontraram em casa de um membro da Al-Nusra na Turquia uma garrafa com gás sarin. Há muitos indícios desse tipo.
Na frente de Jobar as linhas da oposição e das tropas governamentais estavam separadas por duzentos metros e o uso de gás nessa zona iria, sem dúvida, afetar as unidades militares. As áreas militares e pacíficas de Damasco são adjacentes. As áreas onde o gás teria sido usado ficam a dois passos dos bairros residenciais sob controle do governo.
Nesta situação, as armas químicas dificilmente trazem vantagens a alguém. Além disso, um ataque químico é eficaz se logo em seguida é realizada uma ofensiva de infantaria para essa área, o que não aconteceu. Temos de referir que a ofensiva já dura realmente há vários meses. Uma série de zonas já foram reconquistadas. Com que objetivo iria o governo usar gás em zonas onde já estava em vantagem, ainda por cima nos dias em lá se encontravam os inspetores da ONU? Do ponto de vista político, isso seria equivalente a um suicídio, pois os EUA já tinham dado a entender que em caso de um ataque com armas químicas a sua reação militar seria imediata. Por isso, na minha opinião, a procura de provas dos ataques com armas químicas ficará envolta no fumo da guerra, como sempre.
– Abordemos os sentimentos do povo em geral. Como é vista aqui a posição mediadora do ministro das Relações Exteriores da Rússia Serguei Lavrov?
– Os sírios e os cidadãos próximos do governo estão convencidos que a Rússia e Assad colocaram finalmente a administração Obama entre a espada e a parede. Se os EUA já decidiram atacar, eles hão-de encontrar um pretexto para atacar. Por outro lado, se os EUA não atacarem, isso significa que não foram encontradas provas do ataque com armas químicas e que a Rússia desmascarou o blefe norte-americano.
– Qual é a sua opinião acerca da proposta de Lavrov para a supervisão internacional das armas químicas do governo sírio?
– Eu penso que é uma excelente proposta feita na altura certa. Dessa forma a Rússia reforçou o seu prestígio. Recordemos que Obama chegou a afirmar que Putin, como político, não merecia ser ouvido pelas democracias ocidentais. Mas eis que Putin, ao invés do detentor do Prêmio Nobel da Paz, demonstrou que ele é o único capaz de dar um passo no caminho da paz e satisfazer os anseios do Papa por uma regulação pacífica da situação. Foi Putin, e não os cépticos ocupantes da Casa Branca, que se revelou como um verdadeiro líder em política internacional.
– Teve ocasião de falar com os rebeldes? É muito usado precisamente esse termo “rebeldes”, nunca especificando quem eles são na realidade.
– Os rebeldes são um mundo complexo que tem tido uma evolução negativa. No início, essa categoria de pessoas era muito abrangente: ela incluía muitos cristãos e a população urbana sob influência do governo. Todos eles não se rebelavam propriamente, mas sobretudo protestavam – organizavam manifestações, acreditavam em mudanças democráticas na estrutura do regime, o que dificilmente seria possível. Mas, numa determinada altura, eles perceberam que uma revolução pacífica não era possível e no meio dos comícios começaram a surgir armas. As fileiras dos descontentes se dividiram: alguns cederam, outros continuam uma luta radicalizada. Nessa altura se verificou que por trás dos slogans de democracia e liberdade estava o fanatismo dos grupos de islamitas armados apoiados militar e financeiramente pela Arábia Saudita e pelo Qatar. Parte dos antigos manifestantes recuou ainda mais quando descobriu que esses grupos islamitas, que aspiram à hegemonia militar, pertencem à organização internacional da jihade vieram da Chechênia, do Iraque, do Afeganistão e de uma série de outros focos do fundamentalismo militante. Os partidários da democracia tiveram, então, de adiar o caminho de luta pela liberdade e unir esforços com o governo, escolhendo o mal menor nesta guerra cruel.
– O jornalista do jornal La Stampa Domenico Quirico, que foi recentemente liberado das mãos dos extremistas, declarou que a Síria é um país onde venceu o mal. Comente essa ideia, por favor.
– Isso não é totalmente verdade. Claro que ele viveu uma tragédia pessoal e encarou o próprio mal. Mas nem toda a Síria está totalmente em poder do mal. Este é também um país de grande humanismo, um povo inteiro que, mesmo nestes momentos difíceis, te recebe de forma hospitaleira, com um sorriso. Não devemos confundir o que invadiu esse país com o resto do seu povo, que sofre e que não quer ter nada a ver com esse mal.
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