É um dos maiores mistérios da História de Moçambique.
A 23 de Abril de 1971, o cargueiro português “Angoche” partiu do porto de Nacala com destino a Porto Amélia (Pemba), mas nunca chegou ao destino. O navio foi encontrado abandonado (em chamas) no Canal de Moçambique três dias depois pelo petroleiro panamiano Esso Port Dickson. A tripulação - 23 homens – e um passageiro desapareceram.
O “Angoche” foi alvo de explosões e de um incêndio, mas a carga militar (designadamente 100 bombas inertes de 50 Kgs da Força Aérea por tuguesa) não ficou danificada. Ninguém reivindicou até hoje a sabotagem do costeiro.
Há 21 anos, iniciei a investigação jornalística do caso “Angoche”. E parei.
Há duas semanas, resolvi regressar ao assunto por causa de um velho amigo, Phillip Knightley. Esse prestigiado jornalista, meu parceiro do International Consortium of Investigative Journalists, passou 25 anos a tentar entrevistar Kim Philby. Ano após ano, durante 25 longos anos, Phillip pedia uma entrevista ao espião, que se encontrava na URSS, e todos os anos recebia, invariavelmente, a mesma resposta negativa. Quando o repórter lhe solicitou a entrevista pela 26ª vez, o outro acedeu. Conclusão: as circunstâncias mudam, as pessoas mudam, e, no fim de contas, um “não” nunca é definitivo – pelo menos, em matéria de jornalismo.
Restam-me, portanto, mais seis anos de trabalho antes de dar esta investigação por tempo perdido. Criei mesmo um blogue para o efeito:
A Imprensa ( incluindo a estrangeira) atribuiu na altura a autoria da sabotagem do barco a organizações como a Frelimo, ARA (o próprio Joaquim Chissano menciona em Dar-Es-Salaam ao jornal The Star, de Joanesburgo – 11/5/1971 – esta organização próxima do Partido Comunista Português), LUAR (próxima dos socialistas), a PIDE/DGS e a países como a Tanzânia, União Soviética e China. E ainda há quem defenda, hoje, que há tripulantes do “Angoche” vivos que residem, designadamente em Moçambique.
Factos: ninguém apresentou até hoje qualquer prova fundamentada do ocorrido, mas muitos jornalistas (e não só) ousaram tirar desde o primeiro dia explicações rocambolescas e conclusões apressadas.
Pessoalmente, não escrevi uma única linha sobre o tema. É mais moroso, mas prefiro os factos. Teimo em persistir, encontrar respostas, descobrir dados factuais, recusando do mesmo modo a facilidade: recorrer a teses maquiavélicas precipitadas e a teorias da conspiração baseadas, por vezes, em meros boatos sem qualquer consistência. O rigor é essencial.
Passados 41 anos, o manto de silêncio sistemático e generalizado em torno do “Angoche” surpreende. E deve interpelar-nos a todos – moçambicanos e portugueses – na perspectiva da promoção nossa memória colectiva. A mentira e os silêncios cúmplices e cobardes nunca resolveram coisa alguma, começando pela (má) consciência. É mais do que tempo de narrar a realidade dos factos.
É precisamente isso que me move: promover a História. E é isso mesmo que creio ter conseguido realizar nos meus dois últimos livros de non-fiction (“O Diário Secreto que Salazar não leu” e “O Império dos Espiões” – ambos publicados pela Oficina do Livro, em Lisboa) sobre a espionagem em território português durante a Segunda Guerra mundial. Moçambique ocupa, aliás, um papel importante na área das informações. Levei 36 meses a compilar informação nos arquivos nacionais de vários países sobre a guerra secreta travada pelos beligerantes em Moçambique, mas obtive resultados inéditos e decididamente relevantes. Terei todo o prazer em partilhá-los, aliás, com os leitores do Nacalense.
Hoje, procuro testemunhos (formais ou informais) e documentos (incluindo fotografias!) sobre o “Angoche”. Os detalhes – os pormenores – mais insignificantes podem revelar-se essenciais.
O caso suscita inúmeras dúvidas:
- Quem o fez o quê, quando, como e porquê?
- Qual o destino dos tripulantes e do passageiro?
- Quem beneficiou com a operação de sabotagem?
- Qual a explicação para ninguém ter reivindicado a acção?
- Qual a razão que levou um dos membros da tripulação a adiar em cima da hora a viagem prevista e a pedir a sua substituição?
- Qual a razão que levou um militar português a proferir anonimamente ameaças a um jornalista de um vespertino de Lourenço Marques na Primavera de 1971 para que cessasse a investigação?
- Como explicar o facto de a PIDE/DGS não ter chegado a qualquer conclusão?
- Qual a razão que levou o governo de Portugal a não acusar ninguém?
- A “jangada ” (usada exclusivamente para efeitos de pintura) encontrada depois do desaparecimento dos tripulantes pertencia ou não ao “Angoche”?
Quem sabe se amanhã ou daqui a 6 anos, o mistério “Angoche” não se resumirá, afinal, a ficção sem que se saiba o que aconteceu de facto?
Até lá, podem dar uma vista de olhos pelo blogue http://cargo-angoche.blogspot.pt/
e, se tiverem elementos, não hesitem em contactar-me: 2360294@gmail.com
*Rui Araújo integrou a equipa do programa “Grande Reportagem” da RTP – foi o primeiro jornalista português a entrar em Timor depois da invasão indonésia. Em 1987, efectuou a investigação sobre a participação portuguesa no caso Irangate para a cadeia de televisão CBS News.
Colaborou com as agências noticiosas ANOP e UPI, as rádios RFI e TSF, os semanários Expresso e O Jornal, os jornais Público e Libération, e as revistas Grande Reportagem (de que é co-fundador), Visão, etc. Foi provedor do leitor do jornal Público. Tem dez prémios de jornalismo. É jornalista do International Consortium of Investigative Journalists, TVI e colaborador do semanário francês LE POINT.
O NACALENSE – 04.07.2012
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