sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Sobre uma certa PPP

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Ganhos fáceis
fazem carteiras
pesadas

Francis Bacon


Na capa da última edição impressa do “Canal de Moçambique” é notícia “a revolta dos importadores face à corrupção na Alfândegas”, supostamente propiciada pelo novo sistema de desembaraço aduaneiro, vulgo Janela Única Electrónica. Numa extensa reportagem, o articulista Borges Nhamirre tenta apurar a verdade, mas chega à conclusão que muito ainda há por esclarecer junto da MCNet.

E com efeito, há mas não só na MCNet. Primeiro, é preciso compreender o que sempre sustentou o actual sistema de desembaraço aduaneiro. Por que antes do Janela Única, Despachantes, Alfândegas e Importadores andavam sempre de braços dados, o que até lhos levou a constituirem-se em Parceria Publico-Privada (PPP) como consórcio MCNet. E o que é que se começou a passar agora, de tal modo que as regras de jogo já são menos flexíveis que num passado recente. Segundo, é preciso compreender o que está realmente por detrás do agravamento dos custos dos serviços. Se são factores meramente técnicos ao se proceder a avaliação da mercadoria, ou se são aspectos sancionatórios relativos a prova de fé do importador. Ou mesmo outros.

De facto, nunca foi novidade, e isso até o Centro de Integridade Pública - CIP já nos publicara em relatório no passado, que a colecta de receitas pelas Alfândegas, mesmo antes do desarmamento aduaneiro no quadro SADC, sempre foi um processo envolto em muitas nebulosas. O CIP denunciou, e nunca foi refutado, que não poucas vezes as Alfândegas pediam aos “grandes” importadores para anteciparem suas importações, ou seja, o pagamento antecipado das mesmas, para que a receita mensal ou anual cumprisse a meta estipulada pelo Governo. Em contrapartida, os importadores ficavam livres de se entenderem com as Alfândegas, para que estas fizessem o “recuo” das declarações de importação de modo a que aqueles nunca fossem penalizados com sobretaxas quando a mercadoria chegasse efectivamente aos terminais aduaneiros.

Em suma, vivia-se uma longa “lua-de-mel” entre ambos, com base num ela-por-ela oficioso. Este espécie de gentleman agreement adubou o terreno para que importadores como o MBS florescessem e impusessem mais tarde às Alfândegas outras condições, certamente por chantagem, para aumentar o volume de importações antecipadas e a consequente arrecadação das receitas. As consequências disso, são sobejamente conhecidas hoje no site Wikileaks e também com a publicação da lista negra do Departamento do Tesouro dos EUA.

Tudo isto foi possível, porque o próprio Governo moçambicano, pressionado por Bretton Woods, se comprometera a atingir determinados indicadores macro-económicos que lhe favorecessem depois em outros tantos propósitos macro-económicos e geo-políticos. Acho que nos recordamos das celebérrimas declarações de Luísa Diogo, enquanto ministra das Finanças, declarando que ao Estado o importante era aumentar as receitas e não determinar a proveniência das mesmas. Foi exactamente isso que as Alfândegas juntamente com a Direcção de Impostos começaram a fazer, quer com simples consignações de mercadorias diversas, quer com bens de luxo, como automóveis e outros. Porque, note-se, este poder discricionário não caracterizava somente o modus-operandi aduaneiro. Também se aplicava aos impostos internos, nomeadamente o Imposto Sobre Veículos. Pois que, na verdade, também aqui se pretendia somente maximizar as receitas, ainda que muitas vezes, se cobrassem duas, três ou mais vezes taxas pelas mesmas chapas de matrícula.

Mas neste caso recente do Janela Única, o que sucede é que o accionista maioritário da PPP (SGS com 60% das quotas) parece não estar disposto a abrir o “sistema” para reactivar o cenário anterior. E com isso, nem se produz “recuo” de coisa alguma, nem sequer se realizam importações pelo Porto de Maputo (TIMAR) nos volumes habituais, que note-se, ainda é o único local onde funciona o Janela Única.

E com efeito, enquanto se adensava esta polémica recente, verificou-se um aumento repentino de importações do mesmo género de mercadorias pelos portos de Nacala e Beira, mas também por Ressano-Garcia. Logo, é só ligar as peças para se perceberem as causas.

Por outro lado, isto põe a nú o nível de ineficiência do Estado quando se associa com operadores privados por meio de PPPs. O Janela Única, a meu ver, é um estudo de caso muito interessante em vários aspectos, num momento que se ultima um Decreto-Lei das PPPs em Moçambique. Porque dá-nos indicadores sobre o que deveria ser feito neste país, para que situações do género não se repetissem, já que a reedição dos erros cometidos em Portugal com as PPPs, parece não ter ainda a devida importância para os governantes deste país.

Outro tópico de não menos importância é o mecanismo compensatório que sustenta a famosa bancarização do imposto, onde o Janela Única uma vez mais se apresenta como pioneiro em todo o Aparelho do Estado, excluindo-se, claro está o caso das empresas públicas. Para materialização da bancarização do imposto, o país conta hoje somente com a Banca Comercial, totalmente dominada por accionistas estrangeiros. Talvez nos perguntemos, mas o que é que nos transportou para este estágio de erosão da nossa soberania bancária comercial?

Sem dúvidas nenhumas as imposições políticas de Bretton Woods. A ganância e corrupção das elites governantes configuraram o resto, resultando na liquidação do BPD, que estava presente em mais de 80 % dos distritos, e também, do BCM, que era a componente comercial do Banco Central. Foi um erro crasso. Erro contra o qual, o malogrado Carlos Adrião Rodrigues, ex-Vice Governador do Banco de Moçambique, advertira ao nosso Governo ainda nos anos 70. Segundo Adrião Rodrigues citou nas suas memórias“...Esta acção do banco (Banco de Moçambique) não foi muito popular, sobretudo para os abutres que se perfilavam no horizonte, desejosos de entrar na senda dos empréstimos nunca pagos para enriquecerem quer em moeda moçambicana quer em dólares, através das comissões que recebiam pelo controle do comércio externo. A primeira batalha foi a de quererem que o Banco de Moçambique fosse apenas um banco central e se autonomizasse a parte de banco comercial noutro banco. Claro que nisso tinham o apoio do FMI. Sempre achei que, pelo menos em países subdesenvolvidos, é de toda a conveniência que o banco central tenha uma forte componente comercial, para não perder o contacto com a economia real, que é o que mais importa. Por outro lado, a visão da economia real estimula e condiciona, em função dos interesses macro-económicos do país, a concorrência a fazer à banca comercial e para ela ser eficaz é muito conveniente a autoridade e os poderes do banco central. Assim defendi que, na altura a criação de um banco comercial era contrário aos interesses de Moçambique; mas nunca vi tanto marxista-leninista preconizar esta separação. O que foi mais tarde essa separação e a corrupção a que deu origem, só deram razão à minha tese que aliás o governador do banco, Alberto Cassimo, também perfilhava. Mas a clarividência de Samora Machel, a quem tive ocasião de expor a minha opinião e que não morria de amores pelas opiniões do FMI, abortou a tentativa dando uma resposta negativa à proposta...”. Lamentavelmente, os abutres sempre cumpriram a profecia depois de 1986.

Hoje em dia, o Aparelho do Estado tem de recorrer inevitavelmente à Banca Comercial para se poder modernizar. E como tal, todas as transacções financeiras resultantes da arrecadação de taxas também se devem atrelar a ela. E para isto, propõem-se dois cenários. Ou o Estado entra no mesmo “sistema” que as Alfândegas entraram no passado, ou paga as comissões de serviço devidas para a transferência das receitas arrecadas para os cofres do Estado.

Pelo que nos é dado a ver no caso Janela Única, o Estado alinha num meio-termo. Assim, fecha os olhos para o facto das suas receitas ficarem à guarda da Banca Comercial durante três dias, tempo suficiente para esta usar aquele enorme bolo financeiro para ganhar juros compensatórios, mas que resultam numa insanável previsão de receita deficitária do Estado.

Se bem que um processo de desembaraço pelo Janela Única tenha uma previsão de 180 minutos, cumpridos todos os trâmites aduaneiros, sublinhe-se, acaba durando três dias, pois o Janela Única é um sistema totalmente informatizado – e controlado pelo seu accionista maioritário – logo pouco propenso às indecisões dos humanos. E não é por pirraça. É porque os termos da Taxa de Concessão da PPP a que lhe deu origem assim o impõem.

Está lavrado que a remuneração da MCNet é proveniente da tarifa cobrada aos usuários e que será descontada na percentagem correspondente à Taxa de Concessão a ser recolhida para o Estado. A saber, 24 USD para cada importação com valor FOB de 10.000 USD. 64 USD para valores de 10.000-50.000 USD. Três por cento do valor FOB da mercadoria para importações superiores a 50.000 USD.
Já no caso das exportações, também se aplicam taxas. A saber, 24 USD para mercadorias com valor FOB até 50.000 USD, e 64 USD para mercadorias com valor superior a este último montante. A estas taxas, acrescem, 24 USD no trânsito aduaneiro. Ou o equivalente a 24 USD para todos os outros tipos de declarações como reimportação, reexportação, cabotagem, entrada em armazém e outros.
A isto, ainda se incluem outras parcelas. Como, todas as despesas de operação, abrangendo o custo e a conservação, os impostos e taxas de qualquer espécie que incidam ou venham a incidir sobre propriedade ou operações da concessionária. Despesas com actualização tecnológica imposta pelo Estado. Justa retribuição do capital investido pela MCNet , para além da Taxa de Concessão já referida acima.

Quanto à Taxa de Concessão, a MCNet deve entregar aos cofres do Estado o relativo às despesas de gestão e fiscalização, na ordem de três por cento da receita cobrada aos usuários pelos serviços. Este montante, deve ser recolhido mensalmente aos cofres do Estado, até ao décimo nono dia útil do mês seguinte. Caso a MCNet atrase a entrega da receita, o Estado exigirá a compensação calculada a partir da data em que o pagamento deveria ter sido feito, até à data em que o pagamento foi efectivamente – SUBLINHE-SE – efectuado.

Portanto, nas condições actuais, qualquer serviço pago pelo usuário aos Cofres do Estado, nunca se fará pelo Janela Única em menos de 3 dias, porque nem a MCNet está disposta a perder dinheiro. E nem sequer o Estado o tem para saldar as suas dívidas com a MCNet e ainda manter os níveis de receita impostos pelos doadores de Moçambique.

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