quinta-feira, 8 de novembro de 2012

‘Os Retornados – Um Amor Nunca se Esquece’, de Júlio Magalhães

24.02.2008
 
Júlio Magalhães
Este livro não é um ajuste de contas
Já passaram muitos anos. Os suficientes para que se aborde o tema da descolonização sem complexos. Sem raiva. Júlio Magalhães, que o público conhece da televisão, estreia-se no romance com um livro sobre a ponte aérea entre Lisboa e Angola. Com lançamento previsto para 6 de Março, ‘Os Retornados – Um Amor Nunca se Esquece’ é um livro de quem sabe o que escreve.

Bruno Colaço

Júlio Magalhães

- Que memória guarda de África?

- Voltei com 13 anos. Tenho memória de tudo – da minha casa, do sítio onde brincava, do Rio das Pedras, da minha escola, a infantil, ‘Os Piriquitos’, depois a nº 60 Luís Vaz de Camões. Se voltasse lá (Sá da Bandeira, actual Lubango) tenho a certeza de que ia direitinho aos sítios onde vivi, brinquei e estudei.

- Como foi o regresso?

- Eu e o meu irmão viemos à frente, em 1975. Passados dez meses veio a minha mãe com a minha irmã. Ficámos em casa de família, no Porto. O meu pai permaneceu para tentar trazer alguma coisa, mas acabou por vir sem nada.

- Percebeu o que se passava?

- Sim, sobretudo no aeroporto de Luanda, quando me despedi dos meus pais. Foi o momento mais difícil. E antes, em Sá da Bandeira, quando me despedi dos meus amigos. Sabíamos que em breve estaríamos todos no continente.

- Como foi a adaptação ao Porto?

- Difícil. Era uma cidade muito fechada e atrasada, quando Angola era um país desenvolvidíssimo. Lá as pessoas viviam em liberdade e ao ar livre. No Porto, os meus colegas viviam dentro de casa. Eu ia para a escola, regressava à hora de almoço e passava a tarde em casa. Ia dormir às dez da noite. Só saía duas vezes por semana para jogar basquetebol no Porto. Era o meu momento de liberdade. Também me custou o frio intenso. Trazia cinco camisolas, mais um casaco e luvas, que nunca tinha usado.

- Sentiu-se alvo do olhar dos portugueses da ‘metrópole’?

- Senti que olhavam para nós, retornados, como origem de tudo o que havia de mau: o álcool, os vícios, a libertinagem... andávamos de calções e as mulheres de saias... Por outro lado, na escola sentia, por parte dos meus colegas, uma grande admiração porque os de África tinham uma visão mais alargada das coisas e jeito para quase tudo, praticávamos desporto, estudávamos...

- Os retornados também foram recebidos como exploradores...

- Foi essa a principal causa de desconfiança, terem-nos considerado exploradores dos negros e dizer que queríamos viver à custa do País, o que não correspondia à verdade. Houve abusos. Lembro-me de que havia o IARN, instituto que foi criado para ajudar os retornados. Houve gente que ganhou dinheiro e burlou o Estado. Houve retornados que não tiveram nada e outros tudo.

- ‘Os Retornados - Um Amor Nunca se Esquece’ é um livro diferente dos outros que escreveu. Como surgiu?

- Nunca pedi para escrever nenhum livro. Escritores somos todos. Escrever é um acto de liberdade e de criação. Todos escrevem, nem que seja uma carta de amor, ou uma mensagem ou um livro. Quando digo que não sou escritor quero dizer que não vivo disso e nunca pedi a qualquer editora para escrever livros. Sou convidado para escrever.

- Trabalhar na televisão ajuda?

- É evidente que devo isso ao facto de trabalhar na televisão e ser mais ou menos conhecido. A aventura nos livros começou pelo Futebol Clube do Porto. Pelo meio houve “Professor, Boa Noite”, em co-autoria com o José Carlos Castro. Há um ano surgiu o convite para escrever um livro romanceado, com registo jornalístico, sobre África, partindo de um facto histórico. Pensei abordar a perspectiva de que só aproveitámos os jogadores de futebol numa descolonização desastrada. Mas era de novo ligado ao futebol e decidi fazer uma coisa diferente.

- É então que se lembra da conversa com uma hospedeira...

- ... com uma hospedeira da TAP, a quem às tantas contei que tinha vindo de Angola. Ela disse-me que o momento mais dramático e intenso da carreira dela tinha sido a ponte aérea. Disse-me que tinha feito onze voos em duas semanas para ir buscar pessoas que partiam sem nada. Então pensei escrever um livro passado dentro do avião, com a história dos passageiros, mas era difícil.

- Porquê?

- Faltam-me muitos anos como escritor para conseguir prender o leitor durante 300 páginas dentro de um avião. Também podia escrever histórias, o que não fugia muito do que tinha feito com o professor Marcelo, mas a editora tinha-me pedido um romance.

- Isso foi o mais difícil? Ficcionar?

- Pediram-me o livro em Janeiro para Junho. Não consegui. Ficou para o Natal. Não consegui. Durante dez meses recolhi testemunhos e ouvi pessoas. Já tinha muita coisa e não conseguia encontrar o fio condutor, até que imaginei a ligação entre a hospedeira e um passageiro da ponte aérea 27 anos depois. A partir daí foi mais fácil.

- A descolonização foi precipitada ou foi aquela que era possível?

- Toda a gente que veio de África viveu durante muitos anos revoltada, mas o livro não é um ajuste de contas com a História nem uma crítica política. Hoje, o sentimento que tenho a partir do que me disseram as pessoas é que, para a maioria, essa revolta se esbateu.

- No livro refere Mário Soares, Álvaro Cunhal e Rosa Coutinho.

- São aqueles contra os quais as pessoas que vieram de África mais se revoltaram pois acharam que tinham entregue aquilo ao MPLA e à esquerda. Hoje, algumas dessas pessoas reconheceram, tal como os líderes, que, dado o momento político, não se podia fazer melhor do que aquilo. Devia ter-se feito melhor mas o momento político não permitia. Não quero julgar ninguém.

- Uma personagem diz que a verdadeira colonização é agora...

- Reflecte o que me contou um familiar que regressou. Angola é um país de oportunidades. Para lá deslocam-se muitos estrangeiros – chineses, americanos, portugueses também –, que vivem em grandes condomínios e estão a tomar conta do país em termos económicos. Outro amigo deu-me também essa ideia – de que a maioria dos estrangeiros vai com intenção de ganhar dinheiro rapidamente e vir embora, sem qualquer interesse pelo desenvolvimento do país. A ânsia é de fazer fortuna e por isso aconselham-se mal, entram em esquemas de negócios com pessoas erradas, alguns já ficaram sem nada. Julgam que aquilo é fácil e não é.

- O olhar da hospedeira ‘Joana’ sobre Angola é outro... Ingénuo?

- O olhar da ‘Joana’ é um olhar ingénuo, de quem quando conhece África se apaixona pelas pessoas e sente necessidade de ficar ou, pelo menos, de construir pontes de ajuda. Não pensa no carácter político-financeiro do investimento mas em termos humanitários. Muitas pessoas podem rever-se nela.

- Identifica-se com ‘Carlos Jorge’, médico que regressa?

- Não. Resulta das múltiplas histórias que ouvi, sobretudo de familiares. São quase todas iguais, de pessoas que perderam tudo, ficaram sem nada, vieram e reconstruíram a sua vida e o País.

 

- Mas esta também é uma história de amor entre ‘Carlos’ e ‘Joana’.

- Ela apaixona-se pela força interior de um homem destroçado, que tinha tudo, era médico, fica sem nada e tem de arranjar forças para ele e para a família. Tem de convencer a mulher de que vão dar a volta à vida e não deixar os filhos perceber que tudo vai mudar.

- Na realidade, os retornados tiveram essa força interior?

- Foi a força interior dos homens e mulheres que vieram de África que contribuiu para a dinamização de Portugal. O desenvolvimento económico da década de 80 é atribuído aos dinheiros da União Europeia e nunca se fez justiça ao facto de terem sido os retornados a imprimir uma dinâmica económica que o País não tinha.

- O ressarcimento dos que perderam tudo ainda faz sentido?

- Faz. Há gente que foi séria e honesta, há gente que aproveitou o momento para alguma desonestidade e acabou por pagar na vida e outra que até ficou bem demais. Mas também há muitas pessoas que não conseguiram ultrapassar o drama, nem integrar-se na sociedade e nunca foram ressarcidas. Uma forma de ressarcimento é contabilizar o trabalho em África para a reforma.

- Inspirou-se em factos reais no episódio do resgate do corpo do militar morto?

- É baseado na história de António Teixeira da Mota, de Vila Real, que não foi ele próprio buscar o corpo do pai mas lutou, durante 30 ou 40 anos, para sepultá-lo em Portugal e conseguiu. Escreveu um livro com o título ‘Luta Incessante’. O que acontecia com a maioria dos que morriam lá é que os corpos não eram trasladados para Portugal porque as famílias tinham de pagar dez contos. Há muitos portugueses que têm em África familiares sepultados e gostavam de os trazer. Isso é possível, desde que saibam onde está o corpo.

- De onde vêm as fotos do livro?

- De um colega, Marques Rocha, jornalista da RTP, hoje reformado, que trabalhou no ‘Província de Angola’. Temos um projecto de fazer um livro fotográfico só com as fotografias dele. Outras foram obtidas na Torre do Tombo.

- Por que é que no livro há tantas referência ao cinema – ‘Um Amor Inevitável’, ‘Casablanca’...?

- Em África não havia televisão, só jornais... O cinema era um dos principais pontos de contacto com Mundo, não só por causa do filme mas das imagens documentais que passavam antes. No cinema ‘Arco-Íris’, os filmes só ficavam três dias.

- Passou-lhe pela cabeça que o seu futuro passava pela imagem – no caso, pela televisão?

- Não. Eu era viciado em jornais. Ao meio-dia ia para a praça principal de Sá da Bandeira esperar pelo jornal do dia anterior que vinha da ‘metrópole’. Aos 16 anos fui para ‘O Comércio do Porto’, aos 18 era profissional. Só vi televisão quando cheguei cá. Tínhamos Coca-Cola mas não televisão. Trabalhar na televisão foi uma coisa completamente inesperada na minha vida.

- Mas não preenche, pois não?

- Não me preenche o facto de sermos pivôs de informação e não fazermos mais nada. Ou somos chamados só para fazer os grandes acontecimentos. A TV é um meio violento e obsessivo. Outras actividades permitem-me ter uma visão e um poder diferentes sobre ela. E preparar-me para um dia perder o palco da televisão. Não sou um jornalista de primeira linha, vivo no Porto, tenho a noção de que em Lisboa as coisas funcionam noutra dimensão. Podia ter vindo para Lisboa, mas não faz parte dos meus planos. Estou satisfeito com aquilo que tenho.

- Pondera imitar o seu protagonista, que regressa a África?

- Gostava de fazer uma vida dividida entre África e Portugal, de voltar à minha terra, Sá da Bandeira, onde nunca mais fui. Fui a Luanda há um ano e meio mas Luanda diz-me pouco.

PERFIL

Júlio Magalhães é jornalista da TVI e responsável pela delegação da estação no Porto. Nasceu em 1963. Foi ainda bebé, com 17 meses, para Luanda. Depois a família rumou a Sá da Bandeira, actual Lubango. Júlio era rapazinho de 13 anos, assíduo espectador do cinema ‘Arco-Íris’, quando regressou ao que chamava ‘a metrópole’. O Porto era uma cidade fria e conservadora. Aos 16 anos já trabalhava nos jornais.

PRÉ-PUBLICAÇÃO DE 'OS RETORNADOS': O LIVRO DE JÚLIO MAGALHÃES

PRÓLOGO

“Nasci em 1963. Nesse ano, em Dezembro o meu pai resolveu dar um novo rumo à nossa família: partirmos para Angola onde já estavam alguns familiares nossos. Técnico de contas, na altura designado como ‘guarda-livros’, respondeu afirmativamente aos desafios que lhe eram lançados de Angola pelos meus tios e rumou para África.

Com emprego garantido na empresa ‘Cafés Moura’, em Luanda, alugou uma casa no bairro da CUCA, na altura, uma das poucas casas existentes numa zona onde estava localizada a fábrica da conhecida cerveja angolana. O meu pai foi à frente, em Dezembro desse ano. Eu cheguei um mês depois nos braços da minha mãe. O meu irmão e a minha irmã só em Abril deixaram o Porto, onde morávamos, para se juntarem a nós.

Durou apenas um ano a nossa estadia em Luanda. Diz a minha mãe que o meu pai era tratado pelas pessoas ali daquela zona como o ‘Juca da Cuca’. Em 1964, estávamos a fazer nova viagem e a cumprir novo destino. Um tio disse ao meu pai que uma empresa de Sá da Bandeira, hoje Lubango, designada por ‘Urbano Tavares de Sousa’ estava a precisar de um ‘guarda-livros’. Partimos.

Nesse ano de 64 passámos a residir em Sá da Bandeira onde nos mantivemos até 1975. Quando a editora A Esfera dos Livros me lançou um desafio de escrever um livro sobre uma época ou figura da História de Portugal, de imediato, ocorreu-me escrever algo sobre África, mais precisamente, Angola. (...) Este é apenas um livro, romanceado, que parte de alguns factos e testemunhos verídicos. (...)

Recordo a minha professora Catarina, que me ofereceu umas boas reguadas. Como gostaria de revê-la... Os caminhos para casa, ora pela rua do cinema Arco-Íris, ora pela Missão, até à rotunda da Mitcha onde morava. Os jogos aos domingos do FC Lubango, clube do qual o meu pai foi presidente, as boas lagostas da Royal, um bar-restaurante mesmo em frente ao Rádio Clube da Huíla, os passeios ao domingo no picadeiro, desde a Florida até à Praça da Câmara, e da Igreja, da Senhora do Monte, das quedas de água da Ungéria, do Cristo Rei ou da paisagem esmagadora da Tundavala, onde um eco parecia chegar ao fim do mundo, ou das nossas incursões de bicicleta e a pé pelo rio das Pedras. Os nossos dias na Chíbia, onde o meu pai tinha uma fazenda.”

PRIMEIRO CAPÍTULO

“Pela frente um longo corredor com filas de três lugares de cada lado, repletas. Joana nem sequer conseguia olhar para os passageiros que enchiam aquele Jumbo 747. Firme, de olhar pregado no fundo do corredor, esperou que a voz do comandante a salvasse daquele prolongado silêncio:

‘Bem-vindos ao voo 233 da TAP. A nossa viagem com destino a Lisboa tem uma duração de 7 horas e 35 minutos. O tempo previsto em rota é bom. Peço a vossa atenção para as instruções de segurança que a seguir apresentamos.’

O comandante Afonso Rosa sabia que não podia alongar-se muito mais, nem sequer deixar transparecer um sorriso. Dizer a todos aqueles passageiros ‘Bem-vindos ao voo 233 da TAP’ já era demasiado doloroso. Ninguém naquele avião desejava fazer aquela viagem.” (...)

 

Isabel Ramos – CORREIO DA MANHÃ(LISBOA) – 24.02.2008

1 comentário:

Filomena G. Camacho disse...

Li "OS RETORNADOS - UM AMOR NUNCA SE ESQUECE), por Júlio S. Magalhães com um misto de enlevo, paixão, nostalgia... Júlio Magalhães, de uma maneira incrível, "desenha" cada lugar! Faz exalar todo o perfume que África esparge! Consegue deixar-nos captar toda a magia: dos sons, das cores das madrugadas...madrugadas fulvas do imparável nascer do sol Africano!...