sábado, 10 de novembro de 2012

Angola - O Parlamento é Soberano? - Mihaela Webba

 Em: http://club-k.net/index.php?option=com_content&view=article&id=13538:o-parlamento-e-soberano-mihaela-webba&catid=17:opiniao&Itemid=124

Luanda - Citei há dias os artigos 4º e 6º da Constituição e o Acórdão nº 224/2012 do Tribunal Constitucional, relativo ao processo nº 295-B/2012, para sustentar que nós somos deputados faz de conta e o Presidente é presidente faz de conta, porque Angola não tem deputados eleitos nem tem presidente eleito.

Fonte: Club-k.net
Muitos eleitores, e alguns dos meus alunos, pediram-me para elaborar um pouco mais a doutrina subjacente a esta conclusão, o que tentarei fazer nesse breve artigo. Vamos demonstrar que o deputado pode ser considerado “faz de conta”, quer pela ilegitimidade da sua designação, quer pela sua inacção como titular de um órgão de soberania.

A legitimidade de título dos deputados ao Parlamento advém da conformidade da sua eleição às regras jurídicas que a governam. Se o deputado é eleito em conformidade com as regras estabelecidas pela Constituição e pela Lei nº 36/11, de 21 de Dezembro, então ele ou ela é mesmo um(a) deputado (a) legítimo (a). Se não, é um (a) deputado (a) faz de conta. Foi o que pretendemos dizer.
No passado e no presente, os modos de designação dos titulares dos órgãos de Estado são variadíssimos, podendo ser divididos em dois grupos: 1) designação por mero efeito do Direito; e 2) designação por efeito do Direito e da Vontade.

No primeiro grupo, destaca-se a designação por sucessão hereditária (própria dos sistemas monárquicos e aristocráticos), a rotação, a antiguidade e a inerência. No segundo grupo, destaca-se a cooptação (simultânea e sucessiva), a adopção, a nomeção, a eleição, a aclamação e a aquisição revolucionária.

A cada uma destas modalidades correspondem determinadas regras jurídicas. Da sua observância, ensina Jorge Miranda, dependem, em concreto, a investidura no cargo e a legitimidade de título dos governantes (contraposta, após Bártolo, à legitimidade de exercício).

Nós, os deputados da actual legislatura, devíamos ter sido designados por eleição, e não fomos. Não se observou o Direito nem se apurou a Vontade do povo.

As Comissões Provinciais Eleitorais não abriram os envelopes lacrados contendo as actas das operações eleitorais que receberam, para, a partir delas, e só com base nelas, apurar o número total de votos obtidos por cada lista, procedendo assim ao apuramento provincial definitivo, como estabelecem o nº 1 do art. 126º e o art. 128º da Lei Orgânica Sobre as Eleições Gerais (LOSEG).

Não tendo sido computadas as actas de operações eleitorais individualizadas de cada mesa de voto, então, não houve apuramento definitivo da vontade dos eleitores.

Esta vontade tinha de ser apurada pelos Plenários das Comissões Provinciais Eleitorais, em cada uma das 18 Províncias do país, e não foi. Não pode ser apurada pelas “assembleias de voto”, porque estas não são órgãos da CNE; não são, portanto, expressões do poder público; as assembleias de voto, “não se elevam a centros institucionalizados de criação e manifestação de uma vontade jurídica imediata” (Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra editora, 2002, pg. 394). São meros centros de recolha e tratamento parcial de informação, como define o nº 5 do artº 9º da Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento da CNE.

Já os Plenários das Comissões Provinciais Eleitorais, funcionam como assembleias representativas proprio sensu, constituídas como centros representativos de fracções da comunidade política, órgãos institucionalizados de criação e manifestação de uma vontade jurídica imediata.

É a esses órgãos, e só a eles, que a Constituição conferiu por remissão (Artº 107º) a competência para apurar a vontade do povo.

De acordo com as provas submetidas pela UNITA ao Tribunal Constitucional, não houve apuramento provincial em nenhum dos dezoito círculos provinciais eleitorais, realizado pelos membros das Comissões Provinciais Eleitorais, nos termos da lei, tal como já interpretada pelo Tribunal Constitucional.
Vou transcrever aqui o depoimento submetido ao Tribunal relativo ao círculo eleitoral de Cabinda como exemplo ilustrativo do que se passou:

“Não houve apuramento provincial dos resultados eleitorais em Cabinda... Não houve a verificação do número total de votos obtidos por cada lista, através da leitura das actas das mesas de voto, pelos comissários, como mandam a alínea b) do art. 128º e o nº 1 do art.º 126º da LOSEG... Houve de facto uma reunião convocada para o efeito. Essa reunião, porém, teve pouca duração. Começou por volta das 20H00 do dia 4/9/12 e terminou 30 minutos depois.

A reunião foi convocada para aquela hora porque havia chegado de Luanda um técnico que trazia a acta de apuramento provincial já elaborada. Os resultados relativos a Cabinda já lá estavam inseridos. Não foram, por isso, produzidos durante aquela reunião de 30 minutos...Antes daquela reunião terminar, foi-nos projectada numa tela, pelo técnico vindo de Luanda, a acta de apuramento provincial para Cabinda, elaborada pela Comissão Nacional Eleitoral, em Luanda....Depois de ver a acta projectada na tela, solicitei que dessem a cada um dos Mandatários dos Partidos políticos ou coligações de Partidos políticos uma cópia da referida acta para efeitos de análise e de reclamação. O meu pedido foi negado pelo presidente da CPE, após o técnico vindo de Luanda ter afirmado que não podia imprimir a acta porque esta estava num sistema codificado, e o sistema não lhe permitia imprimir. Invoquei, então, o artigo 118º da LOSEG, que foi lido pelo comissário António Sunda.

Esta disposição legal estabelece que os partidos políticos concorrentes, através dos seus mandatários designados, têm o direito de receber cópias das actas produzidas no apuramento. Não valeu de nada. O presidente deu por terminada a reunião. A acta não foi impressa, nem aprovada nem assinada naquela reunião. Soube depois que o Presidente da CPE começou a recolher as assinaturas dos comissários no dia 5 de Setembro, tendo terminado apenas no dia 6 de Setembro, quando o comissário Simão Paulo Lembe foi chamado do Buco Zau, onde estava, para vir ao município de Cabinda assinar a referida acta. Também foi nesse dia que o comissário Pedro Mateus Cardoso Sambo assinou a referida acta.

Soube ainda que o Presidente da CPE deslocou-se à CNE, em Luanda, no dia 6 de Setembro, onde teria entregue a acta de apuramento provincial assinada por todos os comissários. O que o senhor presidente da CPE não explicou aos comissários nem aos mandatários foi como e quando obteve a acta impressa para poder ser assinada. Vindo de Luanda, o senhor presidente da CPE, convocou uma conferência de imprensa, que teve lugar às 20H00 do mesmo dia 6 de Setembro. Foi nessa conferência que anunciou os resultados definitivos para a província de Cabinda, que não foram apurados pela CPE da província de Cabinda”.

Consequentemente, a inconstitucionalidade do apuramento provincial e do apuramento nacional que nele se baseia é indiscutível por imperativo dos artigos 6º nº 3 e 226º, nº 2 da CRA. Não houve eleição no sentido jurídico do termo, porque não se observou o Direito nem se apurou a Vontade do povo.

Não apurar a vontade do povo angolano de acordo com as regras da democracia estabelecidas pela Constituição e pela lei, e ainda assim, “distribuir mandatos”, “determinar os candidatos eleitos”, ou proclamar alguém “Presidente” ou “Vice-Presidente da República”, é um acto inconstitucional. Os actos inconstitucionais são nulos.

O Deputado também pode ser considerado faz de conta se se colocar na situação de dependente de outros órgãos de soberania, no caso o Executivo.

Em sentido estrito, verdadeiro e próprio, só é Parlamento a assembleia política representativa ordinária que seja “órgão de soberania” (na ordem interna) e colocada em interdependência, e não em dependência, frente aos restantes órgãos: Parlamento implica separação de poderes – pois não há Parlamento em sistemas de concentração de poderes, como a monarquia constitucional alemã ou o governo representativo simples; nem tão pouco há em sistemas de concentração na assembleia como o sistema convencional francês de 1793-1795 ou o soviético.

É como órgão soberano que o Parlamento deve decidir sobre os termos e a data para a realização das eleições autárquicas, as instalações físicas onde os deputados devem trabalhar; o regime de trabalho e de férias que devem adoptar; ou sobre os carros que devem utilizar.

Os badalados Jaguares não servem as necessidades do Parlamento. Não podem chegar no Ebo, Dirico, Quimbele ou Luquembo, nem servem para o trabalho no Kikolo, Camabatela ou no Kuemba. Só podem ser utilizados como carros protocolares. E para tal, qualquer análise custo-benefício (incluindo o custo de oportunidade) revela ser imoral Angola esbanjar $100 ou $200 mil dólares para comprar carros protocolares para governantes.

Quem decidiu comprar esses luxos de miséria quis ganhar explorando o ego de outros. E não só. Quis explorar também a cultura da ostentação para encobrir a ilegitimidade política e entorpecer os sentidos dos fiscais da despesa pública.

O Parlamento, como órgão soberano, não deve andar a reboque de negociatas privadas nem aceitar passivamente ser cúmplice delas. Se o fizer, criará mais um motivo para os seus deputados serem doutrinariamente considerados deputados faz de conta

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