quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Angola - Crendices do nosso preconceito linguístico – N. Talapaxi S.



Luanda – Tudo indica que o preconceito linguístico é o julgamento depreciativo, desrespeitoso, jocoso e, consequentemente, humilhante da fala do outro ou da própria fala. Historicamente, isso ocorre pelo sentimento e pelo comportamento de superioridade dos grupos vistos como mais privilegiados, económica e socialmente. A nossa realidade mostra que a prática esse mal é comum, está ligada às consequências da colonização portuguesa. Por essa razão, ainda nos mantemos, por vontade própria, sob o jugo linguístico de Portugal.

Fonte: SA
De acordo com a linguista Marta Scherre, «é por meio de uma língua que o ser humano se individualiza, num movimento contínuo de busca de identidade e de distinção». Ela acrescenta, conclusiva, que, «depreciando-se a língua, deprecia-se o indivíduo, a sua identidade e a sua forma de ver o mundo».

No nosso caso, com a introdução do português na nossa sociedade por meio da colonização, seguindo os meios pelos quais essa língua nos foi obrigada, acabamos por desenvolver uma série de mitos a favor da permanência do colonizador. Nessa senda, o dominador estabeleceu os seus conceitos e implantou os seus preconceitos.

E o próprio angolano, já embutido de um espírito europeu que tinha sido forçado a absorver, até hoje, acredita e mantém certas práticas linguísticas, que se caracterizam como preconceituosas, embora ele mesmo muitas vezes nem se dê conta desse facto. Eis como se revelam alguns dos nossos mais relevantes preconceitos linguísticos:

1. O colono ensinou-nos a língua portuguesa
Essa é a nossa grande maka! O cerne da nossa crença. O epicentro das nossas crendices. Pensamos que o aprendizado da língua portuguesa foi um favor que os colonizadores prestaram no processo da «civilização» dos povos indígenas. Daí que o nosso subconsciente nos leve a acreditar que «temos a obrigação» de «agradecer» esse gesto de «caridade», mantendo a nossa língua oficial fiel à língua que nos «foi ensinada» e assim nos sentimos «civilizados» e valorizados. Puro engano! Os angolanos não pediram para aprender o português. Ele não nos foi ensinado. Foi-nos – sim! – imposto, a duríssimas e dolorosas penas, que ficaram registadas, com suor e sangue, nos anais da história.

Se ela hoje é uma língua de unidade nacional, não é por mérito dos antigos colonizadores, mas por coragem e crédito dos próprios angolanos: «o feitiço virou contra o feiticeiro». Ademais: a língua – tal como as fronteiras e tudo mais – foi apossada pelos angolanos como despojo abandonado pelos colonizadores na sua retirada de Angola. E tornou-se assim propriedade dos nativos angolanos.

2. O angolano fala mal a língua portuguesa
Esta é praticamente uma conjectura unânime, porque a ideia que reina é um preconceito que nasce do nosso complexo de inferioridade, quando nos vemos a comparar a nossa fala com aquela «dos que nos ensinaram o português» e concluímos então, que nós não falamos como eles. Falamos errado.

Na verdade, não é nada disso. Não existe língua mal falada mesmo, sobretudo, quando se compara a mesma língua falada por dois países distintos. O angolano fala como o angolano a língua portuguesa que é da sua propriedade. Porque tem as suas particularidades estabelecidas pela sua própria vivência sociocultural, o angolano tem a sua maneira de falar a língua portuguesa.

3. O nosso português popular é feio e errado
São muitas as maneiras de se falar uma língua e, para a linguística, todas elas são consideráveis. O modo popular não se opõe ao normalizado, erudito ou culto. Eles complementam-se, já que o popular está fortemente abonado pela oralidade e reflecte o «ritmo cardíaco» da língua viva, enquanto a variante normalizada se revê no uso oficial, pela administração pública, imprensa, educação, e pelas práticas culturais letradas, em geral.

O nosso português popular é esse, com todas as suas influências, que continuam a se insuflar no modo de falar (sotaques), de escrever e até de pensar, quer por meio dos estrangeirismos (e isso inclui o lusitanismo) quer, principalmente, por meio das nossas línguas nativas (sem que essa prática seja um nativismo). No acareamento das variações, quando o falar de uns é errado, segundo as normas de outros, estamos perante um exercício de presunção. E nada mais preconceituoso do que isso!

4. Os termos vindos das línguas nativas não convêm
Se palavras em línguas estrangeiras integram e, em muitos casos, até enriquecem a língua portuguesa, de um modo geral, por que é que as palavras derivadas ou invertidas a partir das nossas próprias línguas nativas não convêm à nossa língua oficial, normalizada? Psicologicamente, a nossa conduta é influenciada por uma lembrança (do passado colonial), segundo a qual, as línguas nativas são inferiores em relação à língua do colonizador, esta que, por isso, alcançou o prestígio que se propôs conquistar.

E até hoje, isso prevalece. Mas, não há nada de inconveniente em incluir termos vindos das nossas línguas nacionais ao vocabulário do português culto, tendo-se como critério básico a escolha de palavras consagradas pelo uso popular. Embora as construções literárias já o façam, o uso oficial administrativo-académico está longe de credenciar essa prática.

5. A gramática portuguesa é (ou tem de ser) só uma
Para começar, o facto de existir oficialmente uma outra gramática portuguesa – no caso, a brasileira – já derruba, por si só, essa parede do edifício preconceituoso linguístico. Antes mesmo da existência da escrita, a oralidade de qualquer língua contém os seus princípios gramaticais, que, não obstante não se apresentarem descritos, são respeitados pela fala. A própria Gramática Portuguesa, de José Maria Relvas, usada no nosso ensino, ractifica que, «cada povo tem o seu modo de falar, isto é, a sua língua; portanto cada povo tem a sua gramática».

O nosso português também tem em si embutida a sua gramática manifestada na linguagem oral, porém, rechaçada de todas as formas pela língua oficial. Por isso mesmo, acredita-se que o «angolano fala mal o português», que «o nosso português popular é feio e errado» e que «os termos vindos das línguas nativas não convêm» à língua portuguesa.

6. A norma/padrão é a do português de Portugal
O actual português lusitano não deixou de registar mudanças nos últimos 35 anos, e de se actualizar, coadunando-se com uma nova realidade. O advento da independência angolana, em 1975, além de ter libertado o «pretuguês» (o modo afectado dos nativos falarem o português, com as suas corrupte-las e influências das línguas nacionais) veio, também, impulsionar mais ainda a vivacidade da língua e assim, o surgimento de novas expressões.

É lógico que o português lusitano, como referência, é o padrão, mas as suas normas, ainda hoje impostas pela oficialização, não são de todo as que servem para os angolanos. Ainda não se conseguiu agir no sentido de que o português angolano é uma língua que se desenvolve sob uma outra realidade sociocultural.

Amélia Mingas, renomada linguista angolana e decana da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto, há muito vem dizendo que há «uma nova realidade linguística em Angola, a que chamamos ‘português de Angola’ ou ‘angolano’, à semelhança do que aconteceu ao brasileiro ou ao crioulo». Para ela, «embora em estado embrionário, o angolano «apresenta já especificidades próprias» e «pensamos que, no nosso país, o ‘português de Angola’ sobrepor-se-á ao ‘português padrão’».

7. O melhor português é falado em Portugal


Que melhor português é esse que é falado em Portugal? Certamente que é o português de Portugal. Assim como o melhor do português brasileiro é falado no Brasil e o melhor do português cabo-verdiano, em Cabo Verde. E nós, por nossa vez, o melhor do português angolano claro que é falado em Angola.

Com a independência das ex-colónias, e consequentemente a sua suposta independência linguística (infelizmente ainda não assumida como tal), a língua falada na antiga metrópole é tanto uma variante do português, quanto o português falado nos demais países, vistos todos no âmbito da soberania de cada um.

No entanto, quando nos submetemos hoje ao aprendizado da língua portuguesa pelos portugueses (como no caso dos professores importados da tuga), sem levar em conta nada da nossa realidade sociolinguística, somos obrigados (ou nos obrigamos) a praticar o português de Portugal e afigurá-lo como o melhor.

Se nós consideramos «melhor» o que é dos outros, quem há de considerar «melhor» o que é nosso? E, para isso, quem e como o nosso se poderá tornar «o melhor» para nós? Seremos eternamente consumidores da língua de Portugal, quando podemos e devemos ser produtores da nossa própria língua portuguesa?

8. «Afinar» no modo de falar é falar bem e bonito


No seu livro Ensaboado & Enxaguado (apesar das críticas que ele me inspira quanto à falta de angolanidade da língua portuguesa defendida pela obra), o autor angolano, José Carlos de Almeida «Makisse», faz uma interrogação que assenta bem nesse ínterim: «por que é que muita gente, em lugar de estudar gramática para aprender a falar (…) se preocupa mais em requintar a voz? Sabias que isso é ridículo?».

Isso para explicar que, «afinar», não significa falar bem e grande parte dos angolanos só acha essa prática bonita porque procura reproduzir, o mais fielmente possível, a maneira típica da falar dos portugueses, imitando o sotaque lusitano em todas as suas nuances.

Essa é uma mas mais expressivas formas do nosso complexo de inferioridade, por causa, também, do seu grande uso pela média (rádio e TV): achamos que, «afinando», não só falamos «melhor», como parecemos «mais importantes», porque nos tornamos «mais portugueses», deixando armazenado no subconsciente o facto de que, assim, somos mais «civilizados» e não nos apercebemos das práticas preconceituosas que promovemos com esse princípio.

9. O português como língua oficial é angolano


Reza a Constituição da República de Angola (CRA), no artigo dedicado às línguas, que «a língua oficial da República de Angola é o português», e que «o Estado valoriza e promove o estudo, o ensino e a utilização das demais línguas de Angola». Segundo a interpretação atribuída por muitos cidadãos, pressupõe-se nesse ponto da Carta Magna, que o português, aqui como língua oficial da República de Angola, é uma língua angolana, estando a principal explicação dessa ilação na determinação seguinte da Lei, de acordo com a qual, «o Estado valoriza (…) a utilização das DEMAIS LÍNGUAS DE ANGOLA».

A partir daqui entende-se, perfeitamente que a língua oficial de Angola é o português, o português angolano. Mas não se tem conhecimento de qualquer outra legislação que expresse esse desígnio da existência de um português angolano.

A prática mostra que, como oficial, a língua praticada, exigida e utilizada em todos os actos oficiais do poder público, quer de direito externo (tratados e convenções internacionais) quer de direito interno (a própria Constituição, as leis ordinárias, actos políticos, sentenças judiciais, actos administrativos, discursos oficiais, educação, etc.) é o português normativo de Portugal. Isso apesar de se reconhecer a realidade dessa variante, que é o português angolano, uma vez que ela tem características próprias que a distinguem da matriz portuguesa e do Brasil.

Olhando bem, a manifestação mais preponderante do nosso preconceito linguístico vem justamente daqui: do exercício da norma portuguesa na língua oficial de Angola, facto que nos remete não somente à memória, mas igualmente a muitos extremos de vivência da discriminação linguística. Com isso, a nossa Constituição, no que à língua oficial diz respeito, não desfralda a nossa bandeira, mas a de Portugal.

10. O português não é uma língua angolana

Em Dezembro do ano passado, quando a Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto realizou, em Luanda, as primeiras jornadas científicas, sob o lema «O acto colonial e os mecanismos da imposição, apropriação, circulação e nacionalização da língua do colonizador», um dos professores, convidado a palestrar, apresentou o tema intitulado «o português em Angola: língua estrangeira ou nacional?». Logo que o preletor acabara de ler o título do que viria a ser uma discussão calorosa e saudável em torno da questão proposta, o auditório, quase que inteiro e unissonante, respondeu: língua estrangeira.

Se no primeiro aspecto desse rol de «crendices do nosso preconceito linguístico» se aponta como o «cerne da nossa crença» o facto de acreditarmos que «o colono ensinou-nos a língua portuguesa», e, por isso, nos fez um favor, certamente, no outro estremo da corrente dessa cren¬ça, o último elo que nos mantém presos ao passado é exactamente este: pensar que o português que nós falamos não é uma língua angolana. Ainda bem que o professor daquela palestra das jornadas científicas citadas acima, não corroborava a resposta do auditório e, ao fim da sua prelecção, uma legião de universitários já podia começar a pensar diferente.

Quando assumirmos o facto de que somos um povo diferente por termos as nossas especificidades e que a língua portuguesa que nós falamos é nossa efectivamente, sem dever nenhum favor a ninguém, por isso, poderemos, enfim, começar com a irradicação desse preconceito entre nós e seremos ca¬pazes de ser mais nós. De contrário, com o preconceito linguístico a prevalecer entre nós, teremos sempre a impressão (que não estará errada) de continuamos sob as rédeas de uma colonização e, com isso, nos sentiremos sempre assolados por um complexo de inferioridade.

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