11/02/2008
Nunca se falou tanto de literatura pós-colonial, nem nunca se tentou tanto ultrapassar o que ficou das guerras de África. O tema está na moda, os livros sucedem-se e as reflexões também
Há uma mágoa que está na moda, a mágoa na literatura pós-colonial. Quem a sente fala de saudade, memória, exílio, violência, perda de identidade, catarse, dupla pertença, desenraizamento, preocupação com o outro, racismo e preconceito. É uma mágoa com muitas definições e que se agrupa em duas categorias que espelham gerações diferentes: a mágoa que parou no tempo e a mágoa que se adaptou ao presente e tem uma visão "descomplexada" do mundo.
Nunca se falou tanto de literatura pós-colonial, nem nunca se tentou tanto ultrapassar o que ficou da guerra. A mágoa está na moda "devido à publicação de várias obras dedicadas ao tema nos últimos dois anos", diz Sheila Khan, investigadora no âmbito do pós-doutoramento na Universidade de Manchester e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É tempo de sair dos "caixilhos e das molduras", "é preciso aceitar a mágoa, contextualizar a História e aprender a olhar o passado", diz.
Escritores e académicos, que assistiram à independência das colónias, falaram da mágoa no colóquio "Para Além da Mágoa: Novos diálogos Coloniais", no fim de Janeiro, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa e tentaram explicar por que razão o tema aparece agora nas livrarias, acompanhado de debates e palestras, vindo não se sabe bem de onde, nem porquê.
Neste encontro organizado por Sheila Khan, todos tentaram encontrar uma resposta para o porquê de estar tão em voga. Para Joaquim Arena, escritor nascido em Cabo-Verde em 1964, que deixou África no final dos anos sessenta para começar uma nova vida em Portugal, a razão tem origem numa maior consciencialização das pessoas relativamente ao mundo e no respeito que há pela História. "Está na moda escrever sobre o pós-colonialismo e o tema não se cinge só à literatura, passa também pelo cinema e pela música" e acrescenta que "a globalização é a grande responsável" pela explosão do tema também no resto do mundo.
"Há duas categorias de mágoas", diz Carlos Gil, autor de Xicuembo, contando que deixou Moçambique para trás, aos 20 anos, quando o país se tornou independente. "Há a mágoa residente e a mágoa da diáspora", distingue. A primeira está liberta do passado colonial. É uma literatura sem mágoa, onde se encontra apenas o passado mais recente. Já na literatura de diáspora pode incluir-se uma "literatura de guerra", profícua entre os ex-combatentes das guerras coloniais.
São duas gerações que escrevem de formas diferentes sobre os mesmos temas. Joaquim Arena está entre os autores que relatam mágoas residentes. Não escreve sobre a guerra, mas diz escrever sobre os africanos que nasceram em Portugal, sobre as suas comunidades e sobre os retornados que cá ficaram. O autor de A Verdade de Chindo Luz fala de uma dupla pertença, de um desenraizamento, de uma mágoa do eu, fala também dos jovens que nasceram nas periferias das grandes cidades portuguesas e não se sentem cidadãos de "pleno direito" porque não são daqui, e porque nunca voltaram à terra onde nasceram.
"Gostaria muito de ler algo escrito por um jovem que tenha vivido na Cova da Moura, ler os relatos de delinquência e decadência", diz acrescentando que esta geração não viveu a guerra de perto mas está marcada por ela. "Chamaria esta nova corrente de "multiculturalidade" pois já não é pós-colonialista apesar de os seus escritores serem, muitas vezes, filhos de retornados", propõe Arena.
Com o passar do tempo as perspectivas tornam-se diferentes e a mágoa esvai-se. José Eduardo Agualusa, nascido em Angola em 1960 diz que a abordagem do período colonial pela nova vaga de escritores é feita de uma forma menos magoada, "sem recalcamentos". "Os escritores mais jovens, nascidos depois da Guerra Colonial, vão a África descobrir novos países", diz o escritor de As Mulheres de Meu Pai. "É um olhar diferente, mais descomplexado, de maior preocupação com o outro. Como não há memória directa, o olhar é sempre diferente", diz. Acrescenta que os novos autores não estão ligados à guerra colonial como António Lobo Antunes ou Lídia Jorge que a viveram de perto.
Racismo?
Mas as opiniões dividem-se e para Margarida Paredes, ideóloga do evento, há mágoa e chama-se racismo. "Acho que há um grande incómodo relativamente ao período colonial. As pessoas não sabem lidar com o passado. As pessoas dizem que não são, mas são racistas", diz. A autora de Tibete de África, nascida em 1953 e que aos 20 anos aderiu ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), questiona como é que não há quase nenhum escritor negro português quando existe uma cultura colonial tão grande. "No desporto tudo corre bem, mas no ensino e na literatura as asas são cortadas". Ainda se sente a mágoa na voz da poetisa e historiadora Ana Paula Tavares, que nasceu em Angola em 1952. "A minha mágoa é a mágoa das mulheres que sofreram de maus tratos e violência, é a mágoa dos casamentos arranjados, da luta pela sobrevivência", diz.
"Nos últimos anos temos assistido a uma libertação de ideias, testemunhos e de obras ficcionais sobre o colonialismo. O público está a receber muito bem este tipo de literatura", diz Carlos Gil. São as vivências dos chamados retornados, as dificuldades pelas quais passaram, o sucesso ou o insucesso na vida que atraí os leitores. Joaquim Arena diz que o público português tem sempre espaço para ler e ouvir falar sobre África e que "os portugueses têm uma costela saudosista".
Mas nem todos pensam da mesma forma. Manuela Ribeiro Sanches, especialista em Estudos Pós-Coloniais e docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, diz que os portugueses ainda não estão preparados para receber este género de literatura e que existe uma relação muito ambivalente. "Se por um lado se rejeita o passado e não se quer ver o que está para trás, por outro, há sempre um interesse e uma nostalgia do império", afirma. Talvez tenha sido por isso que a tradução do livro de Edward Said, Orientalismo, sobre colonialismo moderno, só chegou às bancas em 2004, um ano após a morte do ensaísta e 20 anos após a primeira edição.
Agualusa diz que o mundo editorial já percebeu que existe mercado para a literatura africana e Inocência Mata, professora universitária e estudiosa de literaturas africanas, explica o fascínio que envolve o continente negro. "África ocupa um lugar de grande importância na literatura portuguesa, é um locus afectivo e não imperial, ou seja, não há contextos políticos, nem ideológicos". Diz que vê a mágoa como uma necessidade de catarse tanto da literatura portuguesa, como da literatura africana e sublinha que através da escrita se rememoram tempos antigos. "Há um tempo histórico pejado de memórias e, escrevendo sobre ele, as pessoas libertam-se das suas angústias colectivas", conta.
Está na moda porque é uma mágoa recente, a opinião é comum.
Mariana Pinheiro - Público - 11.02.2008
Há uma mágoa que está na moda, a mágoa na literatura pós-colonial. Quem a sente fala de saudade, memória, exílio, violência, perda de identidade, catarse, dupla pertença, desenraizamento, preocupação com o outro, racismo e preconceito. É uma mágoa com muitas definições e que se agrupa em duas categorias que espelham gerações diferentes: a mágoa que parou no tempo e a mágoa que se adaptou ao presente e tem uma visão "descomplexada" do mundo.
Nunca se falou tanto de literatura pós-colonial, nem nunca se tentou tanto ultrapassar o que ficou da guerra. A mágoa está na moda "devido à publicação de várias obras dedicadas ao tema nos últimos dois anos", diz Sheila Khan, investigadora no âmbito do pós-doutoramento na Universidade de Manchester e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É tempo de sair dos "caixilhos e das molduras", "é preciso aceitar a mágoa, contextualizar a História e aprender a olhar o passado", diz.
Escritores e académicos, que assistiram à independência das colónias, falaram da mágoa no colóquio "Para Além da Mágoa: Novos diálogos Coloniais", no fim de Janeiro, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa e tentaram explicar por que razão o tema aparece agora nas livrarias, acompanhado de debates e palestras, vindo não se sabe bem de onde, nem porquê.
Neste encontro organizado por Sheila Khan, todos tentaram encontrar uma resposta para o porquê de estar tão em voga. Para Joaquim Arena, escritor nascido em Cabo-Verde em 1964, que deixou África no final dos anos sessenta para começar uma nova vida em Portugal, a razão tem origem numa maior consciencialização das pessoas relativamente ao mundo e no respeito que há pela História. "Está na moda escrever sobre o pós-colonialismo e o tema não se cinge só à literatura, passa também pelo cinema e pela música" e acrescenta que "a globalização é a grande responsável" pela explosão do tema também no resto do mundo.
"Há duas categorias de mágoas", diz Carlos Gil, autor de Xicuembo, contando que deixou Moçambique para trás, aos 20 anos, quando o país se tornou independente. "Há a mágoa residente e a mágoa da diáspora", distingue. A primeira está liberta do passado colonial. É uma literatura sem mágoa, onde se encontra apenas o passado mais recente. Já na literatura de diáspora pode incluir-se uma "literatura de guerra", profícua entre os ex-combatentes das guerras coloniais.
São duas gerações que escrevem de formas diferentes sobre os mesmos temas. Joaquim Arena está entre os autores que relatam mágoas residentes. Não escreve sobre a guerra, mas diz escrever sobre os africanos que nasceram em Portugal, sobre as suas comunidades e sobre os retornados que cá ficaram. O autor de A Verdade de Chindo Luz fala de uma dupla pertença, de um desenraizamento, de uma mágoa do eu, fala também dos jovens que nasceram nas periferias das grandes cidades portuguesas e não se sentem cidadãos de "pleno direito" porque não são daqui, e porque nunca voltaram à terra onde nasceram.
"Gostaria muito de ler algo escrito por um jovem que tenha vivido na Cova da Moura, ler os relatos de delinquência e decadência", diz acrescentando que esta geração não viveu a guerra de perto mas está marcada por ela. "Chamaria esta nova corrente de "multiculturalidade" pois já não é pós-colonialista apesar de os seus escritores serem, muitas vezes, filhos de retornados", propõe Arena.
Com o passar do tempo as perspectivas tornam-se diferentes e a mágoa esvai-se. José Eduardo Agualusa, nascido em Angola em 1960 diz que a abordagem do período colonial pela nova vaga de escritores é feita de uma forma menos magoada, "sem recalcamentos". "Os escritores mais jovens, nascidos depois da Guerra Colonial, vão a África descobrir novos países", diz o escritor de As Mulheres de Meu Pai. "É um olhar diferente, mais descomplexado, de maior preocupação com o outro. Como não há memória directa, o olhar é sempre diferente", diz. Acrescenta que os novos autores não estão ligados à guerra colonial como António Lobo Antunes ou Lídia Jorge que a viveram de perto.
Racismo?
Mas as opiniões dividem-se e para Margarida Paredes, ideóloga do evento, há mágoa e chama-se racismo. "Acho que há um grande incómodo relativamente ao período colonial. As pessoas não sabem lidar com o passado. As pessoas dizem que não são, mas são racistas", diz. A autora de Tibete de África, nascida em 1953 e que aos 20 anos aderiu ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), questiona como é que não há quase nenhum escritor negro português quando existe uma cultura colonial tão grande. "No desporto tudo corre bem, mas no ensino e na literatura as asas são cortadas". Ainda se sente a mágoa na voz da poetisa e historiadora Ana Paula Tavares, que nasceu em Angola em 1952. "A minha mágoa é a mágoa das mulheres que sofreram de maus tratos e violência, é a mágoa dos casamentos arranjados, da luta pela sobrevivência", diz.
"Nos últimos anos temos assistido a uma libertação de ideias, testemunhos e de obras ficcionais sobre o colonialismo. O público está a receber muito bem este tipo de literatura", diz Carlos Gil. São as vivências dos chamados retornados, as dificuldades pelas quais passaram, o sucesso ou o insucesso na vida que atraí os leitores. Joaquim Arena diz que o público português tem sempre espaço para ler e ouvir falar sobre África e que "os portugueses têm uma costela saudosista".
Mas nem todos pensam da mesma forma. Manuela Ribeiro Sanches, especialista em Estudos Pós-Coloniais e docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, diz que os portugueses ainda não estão preparados para receber este género de literatura e que existe uma relação muito ambivalente. "Se por um lado se rejeita o passado e não se quer ver o que está para trás, por outro, há sempre um interesse e uma nostalgia do império", afirma. Talvez tenha sido por isso que a tradução do livro de Edward Said, Orientalismo, sobre colonialismo moderno, só chegou às bancas em 2004, um ano após a morte do ensaísta e 20 anos após a primeira edição.
Agualusa diz que o mundo editorial já percebeu que existe mercado para a literatura africana e Inocência Mata, professora universitária e estudiosa de literaturas africanas, explica o fascínio que envolve o continente negro. "África ocupa um lugar de grande importância na literatura portuguesa, é um locus afectivo e não imperial, ou seja, não há contextos políticos, nem ideológicos". Diz que vê a mágoa como uma necessidade de catarse tanto da literatura portuguesa, como da literatura africana e sublinha que através da escrita se rememoram tempos antigos. "Há um tempo histórico pejado de memórias e, escrevendo sobre ele, as pessoas libertam-se das suas angústias colectivas", conta.
Está na moda porque é uma mágoa recente, a opinião é comum.
Mariana Pinheiro - Público - 11.02.2008
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