O presidente norte-americano é acusado de abuso de poder e obstrução. Ele será o terceiro julgado da história
"Resolução 755 para o impeachment de Donald John Trump, presidente dos Estados Unidos, por crimes e ofensas graves". Um cabeçalho de 18 palavras convocou os 431 membros da Câmara dos Deputados a votar se julgariam o líder do país mais poderoso do mundo por pressionar o Governo de Kiev a iniciar investigações que o favoreciam para a reeleição em 2020. Por volta das três da tarde (cinco horas da tarde, horário de Brasília), o debate parlamentar havia se tornado um acidente de trem entre republicanos e democratas sobre a culpa ou inocência de Trump.
"Hoje estamos aqui para defender a democracia do povo", disse a presidente da Câmara, a veterana democrata Nancy Pelosi, ao abrir o debate. Pelosi, terceira autoridade da nação e líder dos democratas em Washington, apareceu de vestido escuro e falou em um tom calmo e sério, tentando transmitir uma ideia de solenidade institucional que contraria as críticas de Trump e dos republicanos, que acusam a oposição de agir de maneira partidária. Pelosi citou a Constituição e os pais fundadores e descreveu o presidente como "uma ameaça contínua à segurança nacional". Enquanto isso, Donald Trump escreveu em sua conta do Twitter, em letras maiúsculas e vários pontos de exclamação: “Que mentiras hediondas da esquerda radical! (...) Este é um ataque à América e ao Partido Republicano!”
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Foi um dia de frases grandiloquentes e frases rudes, de manifestações nas ruas e nas redes sociais. Os parlamentares recordaram seus antepassados e o presidente pediu aos cidadãos que rezassem. A política norte-americana estava a ponto de escrever um capítulo importante da sua história. E, apesar disso, a estranha sensação de calma que domina o processo desde que começou seguiu, a despeito das pataquadas habituais do mandatário. E isso se deve não só a que a absolvição de Trump no Senado é dada como certa, mas também a que sua presidência instalou uma tormenta perene na Casa Branca.
Somente um líder tão incomum quanto Trump pode fazer um impeachment parecer outro dia no escritório. Antes mesmo de tomar posse, o escândalo da conspiração russa estourou e começou-se a falar em iniciar um processo de demissão, algo muito incomum na história dos Estados Unidos. A investigação independente não encontrou evidências de seu conluio com o Kremlin, mas revelou suas tentativas de torpedear as investigações, lançando as bases para acusá-lo de obstrução. Ele também é suspeito de um crime de financiamento ilegal de campanhas para pagamentos a uma mulher para silenciar suas supostas relações sexuais algumas semanas antes das eleições de 2016 e está em destaque por aceitar dinheiro de governos estrangeiros por meio de seu império hoteleiro.
Todos esses conflitos abalaram três anos de administração que, por si só, quebraram todos os protocolos imagináveis e transformaram os ataques e insultos do presidente na tônica usual.
A crise ucraniana rapidamente entrou em combustão. Um informante anônimo, empregado no Governo dos EUA, denunciou no verão que Trump estava pressionando o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, inclusive bloqueando a ajuda militar comprometida, para fazê-lo anunciar duas investigações que o beneficiariam eleitoralmente nas eleições presidenciais de 2020. Especificamente, Trump exigiu inquérito sobre Joe Biden, um candidato democrata, e seu filho, Hunter, que foi pago por uma empresa de gás naquele país quando seu pai era vice-presidente. Ele também pediu que se investigasse uma teoria desacreditada de que havia uma campanha de interferência lançada da Ucrânia nas eleições presidenciais dos EUA em 2016 para favorecer os democratas. Trump agora é acusado de abuso de poder por essas manobras e de obstrução ao Congresso por boicotar esse processo, negando a entrega de documentos ou declaração de membros da Administração.
Doug Collins, um pastor da Geórgia, foi um dos primeiros a falar nesta quarta-feira e insistiu que os democratas tentam demitir Trump desde o primeiro dia e não se importassem com os fatos e as evidências. "Hoje é dia de impeachment, mas não é dia de verdade", enfatizou.
O que vem agora no Senado
No julgamento, que ocorrerá no Senado após o recesso de fim de ano após o sinal verde da Câmara, os legisladores deverão revisar os depoimentos, chamar novas testemunhas se acharem necessário, examinar os documentos, as evidências e decidir se, de fato, o presidente dos Estados Unidos cometeu algum "crime ou ofensa grave", como diz a Constituição, que torna necessária sua remoção.
Os senadores são obrigados a tomar suas decisões independentemente da cor política do presidente que julgam, mas a deliberação parece uma pantomima. A maioria dos legisladores democratas vê Trump culpado e todos os republicanos o consideram inocente. Nesta quarta-feira, com 233 dos 431 assentos ocupados pelos democratas, o julgamento do presidente já era dado como certo. No Senado, com 53 senadores republicanos em 100, a absolvição também parece decidida, já que um veredicto de culpado exige uma maioria de dois terços. À diferença do Brasil, nos EUA o presidente só deve ser afastado se for condenado na etapa final, não havendo a figura do afastamento temporário.
Uma das grandes conclusões desse processo é que o republicano continua sendo o partido de Donald Trump. A formação, pelo menos por enquanto, fechou fileiras com o presidente. No entanto, no impeachment de Bill Clinton, iniciado em 19 de dezembro de 1998 — quase 21 anos atrás — pelo escândalo de Lewinsky, pelo menos 31 democratas votaram para iniciar a investigação do democrata. Outro democrata, Andrew Johnson, que se submeteu ao julgamento político em 1868, o superou no Senado por um único voto.
O momento da verdade de Trump chegará em novembro de 2020. Sua base, por enquanto, não parece afetada por esse escândalo. Seu índice de aprovação, apesar do declínio, melhorou seis pontos desde setembro, chegando a 45%, segundo a Gallup.
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