Sobre a corrupção
Dei-me hoje ao trabalho de reunir muitos dos textos que escrevi sobre a corrupção. São 122 páginas. Não são todos! Até daria para publicar um livro de crónicas só sobre o assunto. Entretanto, vezes sem conta sou interpelado por algumas pessoas que me pedem para esclarecer a minha posição.
Recentemente, foi o Dioclécio Ricardo David que fez isso. Reproduzo aqui um texto que já havia publicado aqui no Facebook que, atipicamente, traz propostas concretas que reflectem a forma como vejo este assunto. Ei-lo:
Combater a corrupção
Vou tentar ser constructivo sem relaxar a minha percepção de que a corrupção não é nem o principal problema do país, nem a causa da nossa desgraça. Repito: insistir nisto não quer dizer que ela seja boa coisa, que tenha de ser promovida ou ignorada. Significa apenas que devemos fazer aquilo que o Presidente nos aconselha a fazer, nomeadamente saber distinguir o que é urgente do que é importante.
A luta contra a corrupção não é importante, mas é urgente. Não é importante porque a corrupção é apenas a manifestação de problemas estruturais que a tornam possível. É urgente porque transforma o aparelho do estado numa organização marcada pela arbitrariedade dos seus funcionários. Isto tem como efeito privar os moçambicanos dos seus direitos de cidadania. A distinção que se faz entre pequena e grande corrupção é importante. O que atenta contra os direitos dos moçambicanos é principalmente a pequena corrupção, isto é a vulnerabilidade de cada um de nós à arbitrariedade de quem detém o poder do estado.
É a pequena corrupção que precisa de ser combatida com urgência através duma estratégia que procure identificar a melhor maneira de reforçar os moçambicanos nos seus direitos. Neste sentido, a pergunta estratégica não é: como vamos acabar com a corrupção, mas sim: como podemos reforçar os moçambicanos nos seus direitos?
É a pequena corrupção que precisa de ser combatida com urgência através duma estratégia que procure identificar a melhor maneira de reforçar os moçambicanos nos seus direitos. Neste sentido, a pergunta estratégica não é: como vamos acabar com a corrupção, mas sim: como podemos reforçar os moçambicanos nos seus direitos?
A grande corrupção tem duas dimensões que sempre são confundidas. Uma é de altos funcionários públicos que usam os seus lugares para tirar benefício de transações que dizem respeito ao país, muitas vezes prejudicando o país. Isto é corrupção mesmo. A outra é a do desvio de fundos públicos. Isto não é corrupção, apesar de todo o alarido que se faz por aí em torno de gente como Setina.
Na grande corrupção, incluindo desvios de fundos, só num sentido indirecto é que se violam os direitos dos moçambicanos como cidadãos. A questão estratégica aqui não pode ser: como acabar com a grande corrupção, mas sim como proteger o estado destes actos? É uma questão administrativa que requer outro tipo de reflexão, imaginação e acção. É porque aqui se põe em causa o próprio funcionamento do aparelho de Estado que a corrupção, neste sentido, é um problema importante. Reparem que o problema aqui não é a corrupção em si, mas o que a torna possível. Todo o problema importante precisa de medidas de longo prazo, todas elas de natureza estrutural. Posto isto, parece-me fácil elaborar uma estratégia de combate à corrupção. São necessários diferentes conjuntos de medidas, um para a pequena corrupção e outro para a grande corrupção.
Para a pequena corrupção precisa-se de se identificar os principais pontos de contacto entre o cidadão e o estado. São eles, por exemplo, a polícia, os tribunais, os serviços de identificação e a saúde e educação públicas. Como reforçar os moçambicanos nos seus direitos? A primeira e principal medida devia consistir em simplificar toda a tramitação. Quanto mais complicada a tramitação for, mais vulneráveis ficam as pessoas. A segunda medida consistiria em colocar representantes de consumidores em todas as instituições públicas que lidam directamente com o público para reverem numa base regular o tratamento dispensado às pessoas. Parece complicado, mas não é tanto mais que ainda contribui para elevar a participação política e cívica das pessoas. Esses representantes estariam ligados institucionalmente a um provedor de justiça que teria competências para sancionar as instituições públicas. A terceira medida consistiria em dar ao público a possibilidade de exigir compensação por todo o trabalho mal feito pela instituição (o que significa que as próprias instituições teriam, por sua vez, de ter mecanismos próprios de disciplinarização dos seus funcionários).
Para a grande corrupção o principal meio de combate é a transparência. Institua-se a obrigatoriedade de todos os contractos públicos e sua adjudicação serem do domínio público. Crie-se uma comissão parlamentar que envolva todos os partidos com a função de regularmente rever todos (ou aleatoriamente) os contractos públicos. Vai ser muito trabalho para eles, mas a Assembleia paga bem. Revejam-se e diminuam-se as regalias que os funcionários públicos séniores têm e que incentivam neles a mentalidade rapinosa. Crie-se uma inspecção geral do estado ligada ao tribunal administrativo (cujas competências deveriam ser revistas e reforçadas) com a função de não só verificar que as coisas andem bem, mas também de simplificar os processos burocráticos. Diminua-se o número de cargos por confiança política, pois esses promovem a lealdade política em detrimento da lealdade à constituição; lugares como a chefia da Autoridade Tributária deviam ser ocupados por concurso público e abertos a estrangeiros.
Moçambique não vai ficar desenvolvido com esse tipo de medidas, mas pelo menos isto faria mais sentido do que andar a incomodar as pessoas com esse palavreado todo de combate à corrupção sem propostas concretas. Na verdade, o que se precisa é duma concepção clara da natureza do Estado. Não creio que ela exista. Que tipo de estado, de que tamanho e com que tipo de pessoal? Um dos indicadores disso seria o próprio executivo que é tudo menos reflexo duma ideia clara do tipo de Estado que se pretende. A existência de ministérios como dos combatentes, da juventude e do gênero é sinal de pouca clarividência. O primeiro assunto precisa doutro tipo de fórum e os outros dois são transversais, portanto, deviam estar presentes em todos os ministérios. Depois há toda uma sobreposição de tarefas que não faz sentido. Por exemplo, porque o ministério do interior não pode lidar com questões da função pública? Porque a questão do ambiente não pode estar na agricultura? Etc. Ademais, acho que a médio prazo devia-se abolir o gabinete central de combate a corrupção para que se libertem os juristas que andam por lá para coisas mais úteis ou, por mim, sua integração no CIP.
É claro que tudo isto deveria ser objecto dum estudo profundo e da elaboração duma estratégia clara com metas e tudo... (o resto não interessa).
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