Sérgio Raimundo - Militar
Samora mandou chamboquear o meu tio até enlouquecer...
O meu tio enlouqueceu depois de ter sido chamboqueado a mando de Samora Machel. Foram milhares de chambocos e uma chuva de granizo em forma de pontapés em sua cabeça. Machel fardado, como sempre, poisou o palco com seu refinado estilo no andar. Pegou no pescoço do microfone, como quem degola uma galinha, e começou a tecer um longo discurso que, de quando em quando, ganhava rendas brilhantes de metáforas nas pausas.
Samora gritou diversas vezes "Viva a Frelimo" e todos engordavam os punhos com os dedos, levantavam as mãos e gritavam "Viva". E no meio de toda a multidão havia um vazio criado pela mão do meu tio que não se erguia. Disse, na altura, que era Testemunha de Jeová e o único que merecia a sua honra era Cristo.
O meu pai contou-me que Samora varreu a barba com os dedos, cruzou a mão na cintura fazendo um pequeno triângulo e espetou a testa do meu tio com o seu indicador. A mesma testa do meu tio que hoje carrega uma cruz vermelha no álbum das fotografias.
Depois de Samora apontar ao meu tio, um grupo de sete homens imobilizou o seu corpo com cordas, tal como são amarrados em fila os peixes num talho; carregaram-no até ao meio da multidão que ainda tinha as mãos levantadas. E os chambocos começaram; foram tantos chambocos que até a carne fugiu das nádegas espalhando-se em outras partes do corpo. Os chambocos foram alastrando-se como água sobre a mesa, foram à coluna, às costas e restos de pontapés esmagaram as suas mãos que escondiam a cabeça.
Meu tio, Zacarias, só foi tirado da maquinaria de chambocos quando Samora terminou o seu discurso com o "a luta continua". E a luta continuou para o meu tio; perdeu os movimentos, os dentes saltaram e deixaram a boca um objecto oco, teve uma lista infinita de ossos partidos e o seu juízo deslocou-se: enlouqueceu.
Ficou colado o resto da sua vida numa esteira de caniço. Nas manhãs, antes do galo cantar, era ele que gritava "Viva a Frelimo". E chorava a cada grito, pois as pontas dos ossos partidos mordiam-no. Depois morreu. A campa do meu tio deixa-se comer pelo capim no quintal da sua casa. Sua esposa que envelhece no luto, que nunca mais tira, tem hoje os ossos todos quebrados pelo tempo. Ela não é Testemunha de Jeová, mas sim testemunha de um tempo que não vai esquecer que passou.
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