• Contextualização:
Circula nas redes sociais, desde o fim da tarde ontem (14), o retrato de Isildo Bule, agente da Polícia de Trânsito da República de Moçambique, que a meio de uma chuva torrencial e com ventos fortes, esteve a regular o trânsito na Avenida Eduardo Mondlane, na Cidade de Maputo.
Um acto, por muitos, visto como de heroicidade pela entrega e abnegação do jovem agente, que mesmo exposto ao perigo tanto pela circulação de viaturas como pelo volume de água turva que descia em velocidade do Bairro de Alto-Maé, passando por ele, até à Baixa da Cidade.
Sensibilizados com o acto, que não obstante se circunscrevesse nas obrigações/funções próprias do agente da polícia, muitos, e cada um a sua maneira, começaram a render homenagem a Bule, até que empresas, na manhã de hoje (15), lançassem campanha de oferta de brindes ao agente.
Foi a campanha referida acima que, de algum modo, fez surgir, em oposição aos que exaltam Bule qualificando-o herói, os que contestam a heroicidade do agente, considerando a campanha de tais empresas absurda e, por isso, desnecessária já que Bule estava a cumprir o seu dever.
Dentre vários críticos houve quem: (i) colocou em causa a partilha, sem autorização da imagem do agente, qualificando-a como criminosa; (ii) considerou as ofertas como contrárias ao princípio da probidade pública; (iii) falou que Bule, por não estar devidamente trajado e poder, por conta disso, colocar em causa a sua saúde, merece abertura de procedimento disciplinar.
- VAMOS POR PARTES:
1. Quanto à partilha da fotografia de Bule:
O direito à imagem é havido como direito de personalidade (arts. 70.º e 79.º do CC) que, perante a sua essencialidade, goza até de protecção constitucional (art. 41.º CRM). Regra geral, nos termos postos do n.º 1 do art. 79.º do CC, «O retrato (ou, simplesmente, a imagem) de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela».
Porém, a regra acima apresenta uma excepção no n.º 2 do mesmo artigo, ao referir que: «Não é necessário consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o CARGO QUE DESEMPENHE (…) ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que haja decorrido publicamente».
Portanto, sobre a publicação e partilha da imagem/retrato do agente Bule sem o seu consentimento não representa qualquer problema jurídico, até porque nos termos do n.º 3 do mesmo artigo (interpretado a contrário senso), da reprodução do retrato de Bule, não resultou em prejuízo para a sua honra, reputação e decoro. Pelo contrário, o acto honrou-lhe bastante.
2. Quanto à violabilidade(?) da Lei da probidade pública:
Foi também referido que Bule, caso aceitasse os presentes, estaria na condição de violação do art. 9.º Lei n.º 16/2012, de 14 de Agosto – Lei da Probidade Pública (LPP), pois viola o dever de integridade pública, nos termos do qual o servidor público não pode aceitar ofertas que ponham em causa a sua liberdade de acção, credibilidade, autoridade da Administração Pública, etc.
Do exposto acima não se conclui que, caso Bule aceite as ofertas viola o dever de probidade pública. Entretanto, a LPP no n.º 1 do art. 41.º estabelece, imperativamente, que Bule enquanto servidor público, «(…) não deve, pelo exercício das suas funções, (…) receber benefícios e ofertas, (…) de entidades singulares ou colectivas, de direito moçambicano ou estrangeiro».
Todavia, nos termos do art. 42.º da LPP, a Bule seria lícito receber tais presentes se: (i) os mesmos fossem para se integrar no património do Estado, não sendo superiores a 200 salários mínimos; (ii) se enquadrassem na prática protocolar que não lese à boa imagem do Estado; (iii) tivessem sido dados a Bule em uma sua data festiva, como aniversário, casamento, baptismo, contanto que não ultrapassem a um 1/3 do salário pago a si pelo Estado (n.º 2, art. 41.º LPP).
3. Quanto ao possível procedimento disciplinar:
A CRM estabelece, nos termos do n.º 2 do art. 84.º, que «O trabalhador tem direito à protecção, segurança e higiene no trabalho». Sendo Bule agente da polícia é, por isso, funcionário público é regulado pelas normas aplicáveis àqueles que estejam numa relação de emprego público.
É nas als. g) e x) do n.º 1 do art. 43.º da Lei n.º 10/2017, de 1 de Agosto – Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE) que encontramos como deveres especiais do funcionário e agente do Estado «apresentar-se ao serviço (…) com aprumo (…) que permitam desempenhar correctamente as tarefas» e «usar com correcção o uniforme previsto na lei».
Ora, a violação de um dever profissional equivale a uma infracção disciplinar. O EGFAE, nas als. g) e h) do art. 97.º refere que: é aplicável a sanção de multa ao funcionário ou agente do Estado que: «Não use com correcção o uniforme prescrito na lei» e «Não se apresente ao serviço limpo, asseado e aprumado», apontando isso, no n.º 1 desse artigo, como negligência ou falta de zelo.
Entretanto, a Bule, assumindo-se que não se apresentou com aprumo, não aplicar-se-ia multa, uma vez que não havia intenção dolosa, estava na prestação de serviços relevantes ao Estado e falta não produziu qualquer efeito, o que lhe faz gozar de uma atenuante nos termos das als. d), e) e g) do n.º 1 do art. 102.º do EGFAE, aplicando-se, assim, a sanção imediatamente mais branda, no caso, a repreensão pública (art. 96.º), o equivalente à crítica (al. b), n.º 1, art. 94.º).
Notas finais:
Ainda que assumamos que Bule estava no exercício de suas obrigações, a sua entrega e abnegação devem ser congratuladas, pois, faltam-nos exemplos como os de Bule no nosso país. Ele foi incontestavelmente um herói, convenhamos. Os presentes orientados para Bule, podendo colidir com a LPP, podem ser canalizados à família ou esperar que ele se case, baptize ou realize outra festa, já que a LPP realiza uma enunciação exemplificativa de datas festivas.
Att.,
Ivan Maússe.
Ivan Maússe.
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