sábado, 30 de novembro de 2019

Dicas sobre o conhecimento nas ciências sociais


Elisio Macamo
15 hrs ·


O espaço público tem lugar para todos, mas nem sempre a convivência é boa. O que torna a convivência difícil é, por vezes, o entendimento diferente que se tem sobre o conhecimento. Eis algumas dicas para pelo menos clarificar o entendimento que as ciências sociais cultivam:

1. Dum modo geral, o conceito de conhecimento refere-se ao que as pessoas sabem. O que as pessoas sabem é, por regra, um certo número de factos. Estar em posse de factos, contudo, não define o conceito científico social de conhecimento;
2. Conhecimento, em ciências sociais, consiste na capacidade de articular conceitos para que estes nos elucidem sobre a natureza de fenómenos. Conhecimento, portanto, é mais do que decorar e reter factos. É saber como eles se reduzem a conceitos e como estes, por sua vez, se articulam;
3. Por exemplo, há pessoas que conhecem detalhes sobre as “dívidas ocultas”. Podem dizer, num abrir e fechar de olhos, quem recebeu o quê, quanto, quando e onde. Sabem quem são os principais intervenientes no processo e quais são as suas motivações para esse efeito. Pessoas que tratam informação, geralmente jornalistas, são profundos detentores deste tipo de conhecimento. É um conhecimento factual e, portanto, útil como base de informação;
4. Para o cientista social, contudo, estas informações não constituem conhecimento. O conhecimento no sentido das ciências sociais tem dois desdobramentos. O primeiro consiste na articulação do que tornou os factos relatados possíveis dentro dum determinado contexto. Por exemplo, que factores na arquitectura financeira internacional, na cultura de governação do País, na relação que o País mantém com parceiros estrangeiros, etc. tornaram as dívidas ocultas possíveis? É através da resposta a esta pergunta que as pessoas produzem uma narrativa que contextualiza os factos. O cientista social vai mais longe. Ele produz uma narrativa depois de descartar todas as outras possíveis;
5. O segundo desdobramento do conhecimento das ciências sociais consiste, por sua vez, na articulação da narrativa com conceitos e com o significado que a narrativa tem para algo maior. Assim, pode se articular os factos das dívidas ocultas com o conceito de “corrupção”, “governação”, “captura do Estado”, “desenvolvimento”, “ajustamento estrutural”, “cooperação”, etc. Utilizei, propositadamente, conceitos que, na verdade, não são conceitos em ciências sociais, mas dominam o nosso imaginário analítico pelo simples facto de se confundir o jargão da indústria do desenvolvimento com análise social. De qualquer maneira, a articulação conceitual é absolutamente importante;
6. Na verdade, é a partir desta articulação que se pode começar a produzir conhecimento no verdadeiro sentido do termo. Por exemplo, pode se articular a corrupção com o ajustamento estrutural, isto é, procurar saber que relação existe entre um e outro conceito. A resposta a esta pergunta pode permitir enquadrar melhor os factos das dívidas ocultas. Basicamente, a questão que se coloca é de saber que caso é representado pelos factos. São eles um caso de transparência governativa, por exemplo?;
7. Ainda no segundo desdobramento, procura-se saber o que os factos explicam. Explicar, em ciências sociais, não é estabelecer relações de causa e efeito. Explicar é expor o significado da narrativa que contextualiza os factos. Por exemplo, se alguém contextualiza a narrativa com base na articulação entre corrupção e ajustamento estrutural pode ser que as dívidas ocultas apontem para a maneira como a dependência força os governantes a agirem de forma intransparente e, desse modo, correm o risco de tomar decisões vulneráveis ao aproveitamento por algumas pessoas. Para mim, por exemplo, as dívidas ocultas revelam a vulnerabilidade de países em desenvolvimento perante o sistema financeiro internacional;
8. O conhecimento, contudo, não é final. Por essa razão, no conceito de conhecimento das ciências sociais não há lugar para as famosas recomendações como tem sido apanágio da pesquisa aplicada. Conhecimento é sempre a capacidade que adquirimos de, na base da contextualização de factos e depuração do seu significado, colocarmos perguntas mais importantes do que aquelas com as quais começamos quando recolhemos informações. Você não sabe uma coisa se você não é capaz de colocar uma pergunta maior a partir das informações que você tem agora;
9. Por exemplo, se partimos do princípio de que as dívidas ocultas revelam a vulnerabilidade de países em desenvolvimento no contexto do sistema financeiro internacional podemos daí derivar a seguinte pergunta: que instrumentos políticos seriam necessários para reduzir a vulnerabilidade destes países? Podíamos também ter concluído que as dívidas ocultas revelam a propensão ao erro quando a governação não é transparente. Nesse caso, a pergunta que se colocaria seria de saber como reduzir essa propensão em contextos de intransparência;
10. É sintomático que na abordagem do assunto das dívidas ocultas se fala mais da ganância e da necessidade de punir exemplarmente. Este é um claro sinal, para mim, de que não temos conhecimento neste caso, mas sim opiniões. Conhecimento, conforme tenho vindo a dizer, é algo muito mais complexo do que julgamentos normativos.

Escolhi o exemplo propositadamente para convidar os indignados a se interpelarem criticamente. Infelizmente, mesmo cientistas sociais fazem muita confusão a este nível. Com essa confusão, eles encorajam aqueles que têm menos preparação ainda a pensarem que podem opinar com profundidade sobre matérias complexas. Normalmente constitui sinal da perplexidade que isso manifesta o facto de leigos acharem que determinados assuntos considerados complexos por especialistas são, na verdade, simples. Uns até têm o atrevimento de escrever posts a explicar o que são ciências sociais ou o que os intelectuais deviam fazer.

Eu fico a olhar.


João Jorge Nguenha Uma verdadeira aula, de metodologia de pesquisa em ciências sociais. Sr. professor sinto na verdade, que as dificuldades na articulação dos conceitos estão intimamente ligados ao défice em matérias de natureza metodológica.

Elisio Macamo João Jorge Nguenha, sim, não estamos bem a esse nível.


Stelio Simoes Ilustre Prof. Elisio Macamo, julgo que pelo facto destas ciências estudarem um ser social, o Homem, todos nos sentimos "capazes" de explicar certos fenómenos, sem contudo, respeitar-mos estas dicas e isso acontece ou porque nunca as estudamos ou porque, se as estudamos, estuda-mo-las mal. Acontece todos os dias. Eu sou do grupo dos que estudaram mal e me atrevo a tentar falar um pouco a respeito de certos fenómenos e, em que depois, aparecem os do primeiro grupo.

Elisio Macamo Stelio Simoes, a nossa formação podia, de facto, ser melhor. não é apenas em moz. é um problema geral.


Mbuta Zawua Não se gosta muito de conceito, como a ideia de que o fim não é dar solução final. Mas o gerar um conhecimento, que represente da melhor forma possível o que faz do fato social, um fato/problema.

Dioclécio Ricardo David Professor Elisio, muito obrigado pelas dicas.
Impõe-se, efectivamente, uma visão holística do assunto tendo em conta a sua complexidade. Contudo, salvo melhor opinião, julgo que a responsabilização dos autores, latu sensu, das “dívidas ocultas”, não obstante a sua aparente natureza imediatista, é muito importante para não só aferirmos as motivações que governaram as suas condutas, mas também para, numa perspectiva pedagógica, enviarmos uma mensagem ao povo e a comunidade internacional de que ninguém está acima das instituições (e do quadro jurídico vigente), e estas devem fazer respeitar as normas (jurídicas) vigentes. A par da “responsabilização interna” creio que o Estado devia, se é que ainda não o fez, pois parece que neste aspecto não há informação abundante, enveredar por uma responsabilização das instituições de crédito estrangeiras que viabilizaram a consumação destas condutas ilícitas. É que se os Estados em vias de desenvolvimento não forçam mecanismos jurídicos internacionais de responsabilização, não estarão a contribuir para a melhoria dos mecanismos de compliance do sistema financeiro internacional. Portanto, a perspectiva normativa, não obstante a aparência imediatista, é importantíssima para a melhoria das relações de poder entre os autores da indústria desenvolvimentista.

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