Comparações despropositadas
Em Moz, e no continente africano, é costume ver partilha de notícias dando conta da vida simples, por vezes até austera, de políticos (ou mesmo de gente rica) do mundo desenvolvido. Essa simplicidade é contrastada com os níveis muitas vezes ridículos de ostentação dos nossos políticos (ou dos nossos ricos). Dá que pensar, de facto, ver o primeiro ministro dum país europeu de bicicleta com um homólogo qualquer, ou a fazer as suas próprias compras no mercado. É uma diferença abismal que nos dá, quiçá, uma medida mais ou menos exacta das diferenças entre os nossos países pobres e os países deles ricos. Quem sabe, se calhar reside aí a explicação.
Não, não reside! O que me parece certo é que este tipo de comparação documenta, e muito bem, a nossa indignação. Num país que vive de ajuda externa como o nosso, é sempre confrangedor ver líderes políticos a ostentarem riqueza ou a insistirem em regalias das quais podiam facilmente prescindir sem afectar o seu desempenho e, quem sabe, poupando algo que poderia aliviar a pobreza de pelo menos umas 10 pessoas. A indignação é uma manifestação legítima de anseio por justiça social. Só que a comparação não tem outra utilidade senão mesmo como desabafo. Acima de tudo, ela não tem o valor pedagógico que muita gente que partilha esse tipo de notícias pode se sentir tentada a pensar que tenha.
Nós não somos, nem continuamos, mais pobres porque os nossos dirigentes vivem à grande. Eles não são mais ricos porque os seus líderes são modestos. Não há nenhuma relação entre as duas condições. Na verdade, não são as regalias dos políticos que explicam a pobreza dos outros. São, quando muito, as diferenças que existem entre nós mesmos que fazem isso. O pouco mais que você tem para além das suas necessidades básicas é mais relevante para entender a pobreza dos outros (da maioria) do que as regalias dos chefes. Não são boa coisa, mas não explicam muito. E essa é a questão.
A modéstia deles (dos dos países desenvolvidos) manifesta apenas o seu bem-estar. Só isso. Quando você está bem e não tem preocupações de maior na vida, quando você sabe que mesmo perdendo o cargo vai continuar a viver bem e em segurança, você dá pouca importância a esse tipo de coisas. Você deixa de ser o cargo para ser você mesmo. Você relaxa, portanto. Sei isso de mim próprio. Não tenho cargo político, claro, mas tenho um emprego que me permite satisfazer uma boa parte das minhas necessidades materiais. Não tenho carro (já tive e sempre posso adquirir um se achar que preciso), ando a pé, de bicicleta ou de transporte público, vivo num apartamento arrendado, tenho seguro de saúde que me permite cuidar da minha saúde e no fim de mês sempre sobra algum dinheiro para eu satisfazer caprichos como comer fora, ir ver um jogo de futebol, ir a concerto, viajar de férias, etc. Não sinto a pressão de viver demonstrativamente bem porque aqui onde estou isso não impressiona a ninguém. Estar visivelmente bem não é condição para eu ser tratado de forma melhor nos serviços públicos ou em seja o que for.
A ostentação dos nossos dirigentes – e de muita gente que não está na política, mas está mais ou menos bem na nossa sociedade (e eu vejo isso todos os dias no Facebook) – é ela também manifestação do estado em que o País se encontra. Há um livro antigo de Erich Fromm (Ter e ser) que ajuda a perceber isto. Onde o acesso às condições de melhor vida é difícil, o ter sobrepõe-se ao ser. O consumo passa a ser o motor da nossa vida. Quanto mais escassos forem os bens materiais, mais queremos acumula-los e mais escravos nos tornamos deles. Quando saí de Moçambique nos anos oitenta só queria comer maçã até doer a barriga. Quando comparo as minhas condições materiais com as de algumas pessoas da minha geração (ou mais novas) em Moz vejo diferenças abismais a seu favor. Viver para manter isso é a razão de existência de muitas delas, algo que é completamente diferente comigo porque no meu bem-estar não me sinto ameaçado pela pobreza de ninguém, nem estou privado de acesso ao que preciso para levar uma vida digna. Eu sou. De novo, é verdade que os nossos políticos exageram (assim como muitos de nós exageramos), mas não é isso que explica porque nós somos pobres e os outros são ricos.
O nosso comportamento documenta apenas o estado actual da nossa sociedade. Quem tem, alimenta-se melhor com menos. Consome qualidade em tudo, não quantidade. Pode se permitir a modéstia e frugalidade. Não há dia que o Facebook não tenha fotos de vários tipos de ostentação: culinária, turística e até profissional. Não critico isso. Constato apenas. Vejo menos disso com os amigos de países em situação económica melhor. O Lyndo A. Mondlane, por exemplo, mostra quase sempre fotos do seu hobby de ciclismo. Vive na Espanha. Não tem que mostrar a ninguém que tem tudo o que precisa para viver. O simples torna-se interessante. Não sofre essa pressão de sobressair, a qual muitos sucumbem com facilidade porque o ambiente em que vivem torna isso funcional à reprodução da sua afluência.
Os nossos dirigentes podiam andar a pé, viver em palhotas e comer apenas “tseke”, mas isso não faria nenhuma diferença para a pobreza da maioria dos moçambicanos. Isto por uma razão muito simples: essa pobreza tem razões estruturais que não explicam o bem-estar dos dirigentes. Seria mera demagogia. Abordar essas razões estruturais parece-me mais importante do que comparar alhos com bugalhos. O foco tem que ser esse. Onde são todos iguais, mas a gente não vê isso, é nas vantagens que lhes são conferidas pelos cargos. Só por opção pessoal é que filho de dirigente por aqui não estuda, nem tem emprego. E esses cargos são um tranpolim para outros cargos e regalias como se sabe, por exemplo, aqui na Suíça. Os deputados não têm salário, mas há muitos que são membros de conselhos de direcção de grandes empresas (principalmente seguradoras na área da saúde) e chegam a receber (só para participarem em 4 reuniões por ano) mais de 100 mil dólares por ano! De dia discutem leis que afectam essas empresas...
Eu percebo a atracção que estas comparações superficiais podem exercer no imaginário de quem tem na classe política a única referência para avaliar o País. Só que é um grande equívoco. Simplifica demais os nossos problemas. E muitas vezes é incoerente, pois poucas das pessoas que fazem essas comparações “partilham” o pouco que têm com aquele que nada tem. Só reclamam o que os outros não partilham. Para a indignação ser eticamente genuína, essas pessoas deviam, como recomenda o filósofo Peter Singer, também só viver do básico enquanto houver pessoas no mundo que passam privações. Essa ética que é só vincada quando são os outros a usufruirem parece-me hipócrita.
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