De onde vem a influência de Vítor Melícias, o padre “malandreco” que manda no Montepio /premium
23 Março 20191.801
Domina como poucos os corredores do poder político, social e económico. O franciscano que se insurgiu contra "secretariozecos e ministros" está há 36 anos no Montepio. E continua a mandar na sombra.
O plano era chegar a Madrid, jantar bem e, depois, ir para o bar do hotel tomar alguns digestivos. Mas dois dos três convivas tinham conspirado. Discretamente, iam fazer com que o outro abusasse da bebida para, depois, lhe pregar uma partida: levá-lo ao bar de alterne que existia no mesmo quarteirão do hotel, na capital espanhola. O desfecho acabou por ser o inverso: apesar de ter bebido bem mais, foi o amigo de ambos que acabou por levar os outros dois à sua cama. Esse terceiro homem era o padre Vítor Melícias, que nas últimas semanas esteve em foco, depois de o Observador ter revelado o que o presidente da mesa da assembleia-geral da mutualista Montepio disse, na reunião do conselho geral da associação: “Não é um secretariozeco ou um qualquer ministro que vai afastar uns órgãos sociais democraticamente eleitos“.
Nessa viagem a Madrid, que terá acontecido na viragem da década de 80 para os anos 90, Vítor Melícias era acompanhado por um empresário influente e um ex-presidente da câmara (e, também, empresário). Os três tinham ido a Madrid para assistir a um congresso relacionado com a economia social e as cooperativas. A história, contada ao Observador por fonte que conhece Vítor Melícias há várias décadas, faz alusão ao famoso bom fígado do padre franciscano que dirige as assembleias-gerais do Montepio. E que, como ainda recentemente escreveu o Público, tem nas suas mãos o futuro de Tomás Correia à frente da instituição.
As suas ligações ao poder (chegou a ser confessor de António Guterres e também de Marcelo Rebelo de Sousa, dois devotos) tornaram-no numa figura sobejamente conhecida dos portugueses. Desde a revolução de abril de 1974, ocupou dezenas de posições de destaque e chefia nas mais diversas organizações: Liga dos Bombeiros Portugueses, Deco (associação de defesa do consumidor), Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, União das Mutualistas, Conselho Económico e Social, Banco Português de Gestão, Mutualista Montepio, Caixa Económica Montepio Geral. A lista é demasiado longa para aqui constar na íntegra.
“Ai Lopes, Lopes… Se não fosse o Melícias…”
A presença constante do padre Vítor Melícias na vida pública portuguesa até lhe valeu a “distinção” de ser convertido num dos famosos bonecos do Contra-Informação, ao lado de Toneca Guterres, Jorge Coelhone, Mário Só Ares ou Acabado Silva. O trocadilho com o nome do padre era óbvio: Vítor Malícias. E não sem razão. O padre franciscano diz de si próprio que tem a “alegria” como característica mais marcante. É conhecido pelo bom humor, mas também pela forma “malandreca” como se ri da sua própria notoriedade, sobretudo quando esta o livra de pequenos embaraços. “É um malandreco, é”, admite o amigo Bagão Félix, que conta ao Observador esta história que já ouviu várias vezes do próprio franciscano.
Uma noite, quando Vítor Melícias conduzia por uma estrada nacional, as autoridades mandaram-no parar numa operação STOP. O padre vinha em excesso de velocidade. Nada de especial, mas acima do limite. O agente pediu-lhe a carta de condução, documentos da viatura, bilhete de identidade (a história já tem uns bons anos). O condutor, de seu nome Vítor José Melícias Lopes, entregou-os. O agente iniciou a descompostura habitual.
“O senhor Lopes para aqui, senhor Lopes para lá. O senhor Lopes sabe que vinha em excesso de velocidade e tal”, conta Bagão Félix. “Isto era de noite, mas de repente olhou melhor para ele e reconheceu-o — ‘Olha, é o padre Melícias. Muito bem. Então veja lá tenha cuidado [com a velocidade] e vá andando, então. Siga lá'”.
“E ele a contar esta parte tem muita piada: já de volta ao caminho, livre da multa, o padre diz para si mesmo: ‘Ai Lopes, Lopes… se não fosse o Melícias estavas lixado…’“. Mesmo já depois de o ter contado muitas vezes, Bagão Félix ri-se sempre com gosto ao recordar o episódio. Conhecem-se há quase 40 anos. Foi em 1980, quando Bagão Félix era secretário de Estado da Segurança Social no (curto) governo de Francisco Sá Carneiro e o padre franciscano era presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, após uma passagem de quatro anos pela presidência do conselho de administração da Caixa dos Trabalhadores Migrantes.
“Encontrámo-nos no âmbito da relação profissional, mas depois disso fomos mantendo uma relação, não direi muito próxima, mas de estima pessoal. Cruzámo-nos depois na União das Misericórdias. Ele como presidente [de 1990 a 2006] e eu na mesa da Assembleia Geral, onde estive dois mandatos (seis anos, entre 1995 e 2000)”, recorda o antigo ministro.
Bagão Félix e Vítor Melícias ainda hoje almoçam regularmente, integrados num grupo de outros amigos. Em Lisboa, o restaurante Manuel Caçador, no Areeiro, é um dos prediletos do grupo — aliás, foi o local escolhido para o encontro deste mês — mas também fazem a patuscada em Torres Vedras, de onde Melícias é natural. “É uma pessoa bem-disposta, com sentido de humor e agitada, no bom sentido. Sempre foi e ainda continua a ser. Sabe preservar a amizade das pessoas de quem gosta”, assegura Bagão Félix. E como lida o padre Melícias com os adversários?
“Isso não sei dizer. Ou melhor, dou um exemplo”, revela o antigo ministro das Finanças. “Eu e ele nem sempre estamos de acordo, do ponto de vista político e, no Montepio, até estivemos em listas diferentes. Nas últimas eleições não fui candidato a nada na lista do António Godinho [apesar de ter apoiado], mas há três anos fui candidato a presidente do Conselho Fiscal, contra a lista em que ele era presidente da mesa da Assembleia-Geral”.
As diferenças vão além disso. Melícias está conotado mais com o PS, e com um enorme grupo de personalidades socialistas, de quem é amigo; Bagão Félix mais com a direita [integrou vários governos PSD/CDS-PP]. Félix é benfiquista ferrenho, Melícias torce pelo Sporting. E há o enorme elefante à mesa: A Mutualista Montepio Geral, na qual estão em campos opostos. Bagão Félix opõe-se a Tomás Correia. Já Melícias integra listas em conjunto com Tomás Correia desde 2003.
Nos almoços mensais nem trocam palavra sobre o tema. “Nunca falámos sobre isso. Nem ele comigo nem eu com ele. Respeitamos as posições um do outro. Eu não tenho de fazer perguntas — era só o que faltava — e ele respeita-me a mim”, conta Bagão Félix.
Há quem recorde que nem sempre foi ou é assim. Um dos associados veteranos da Mutualista refere ao Observador que ao padre Melícias “lhe foge o pé para a chinela quando está sob pressão” nas assembleias-gerais, a que atualmente preside. Até mais do que a Tomás Correia, outro responsável do Montepio com fama de irascível. Várias fontes presentes nas AG — todas ligadas às listas não institucionais — falam em discricionariedade do presidente da mesa na hora de dar a palavra aos associados e há mesmo quem o acuse de cortar a palavra a elementos conotados com a oposição.
Ao Observador, Vítor Melícias rejeita estas acusações: “Nego isso. Em absoluto. Nós temos uma limitação estatutária em que cada um só pode falar ‘x’ tempo. Quando alguém está a ultrapassar, por entusiasmo — isso é comum —, o presidente da assembleia tem a obrigação de dar uns toques e depois, chegado o momento, dizer que não pode ser mais”. “Agora cortar a palavra a alguém — sobretudo por questões de posição — isso é difamatório. Nunca cortei a palavra a ninguém por ser desta lista ou daquela outra lista”, assegura.
“De banca eu não sabia nada”
Vítor Melícias entra na mutualista Montepio em 1983, numa fase de estabilização depois de a instituição ter estado à beira de entrar na vaga de nacionalizações da banca no período pós-revolução. A caixa económica terá chegado, mesmo, a estar referida numa versão preliminar do decreto das nacionalizações, mas acabou por sair.
E foi pela mão de um homem que terá tido um papel importante para evitar essa nacionalização que Vítor Melícias ingressou no Montepio. Esse homem era Manuel Pina, marido da ex-ministra socialista Maria de Belém Roseira (apoiante da lista “institucional” de Tomás Correia e Vítor Melícias nas últimas eleições, em dezembro).
"De banca não sabia nada. Estava atento, graças a Deus, e ia aprendendo com os outros. A minha função era, sobretudo, de dinamizador e de coordenador, não era propriamente um especialista de execução", diz Melícias sobre a sua presidência do Montepio.
Melícias entrou como administrador e, pouco depois, foi nomeado presidente da Caixa Económica do Montepio. Quem lidou com ele nessa altura recorda como o padre se insurgia, frequentemente, contra o grande volume de documentação que os organismos de supervisão do Banco de Portugal enviavam. Para Melícias, que tinha pouca disponibilidade (de tempo e de paciência) para ler toda aquela documentação densa, o ideal era que o Banco de Portugal resumisse esses relatórios complexos a uma página.
“O doutor Vítor Ruivo [na altura administrador] é que percebia de banca. Eu estudei Direito e Teologia, e ensinei Teologia. De banca não sabia nada. Estava atento, graças a Deus, e ia aprendendo com os outros. A minha função era, sobretudo, de dinamizador e de coordenador, não era propriamente um especialista de execução. Ainda hoje, termos técnicos da banca eu não sei, não conheço nem tenho de conhecer”, confirma o padre Melícias ao Observador, ao recordar esses tempos.
Terá sido também Vítor Ruivo o “pivô”, o homem-chave do lançamento da seguradora Lusitânia em 1986, outro dos destaques na vida do Montepio nos anos de gestão Melícias. Mas o padre também puxa dos galões quanto ao que alcançou naquela passagem pela presidência. “A vitória mais marcante foi a recuperação do Montepio como instituição mutualista, a recuperação da consciência mutualista da instituição. Estava a virar muito para uma instituição bancária, ou de crédito, e nós na altura conseguimos fazer essa viragem”, conta Melícias.
E com inovação, acrescenta: “Fomos a primeira instituição em Portugal a abrir as caixas automáticas, os ATM. A primeira que abriu em Portugal foi a do Montepio. Aliás, até foi à revelia do Banco de Portugal que fizemos isso”. Na verdade, não foi bem um ATM no sentido moderno da designação. O Montepio Geral foi, de facto, a primeira instituição financeira a instalar uma rede interna de caixas automáticas, oferecendo aos seus clientes — e só aos seus clientes — um serviço bancário 24 horas por dia. Foi em 1984. O Multibanco (com caixas passíveis de serem utilizadas por qualquer cliente bancário) só nasceria no ano seguinte. O primeiro em Lisboa foi instalado num Banco Nacional Ultramarino (BNU), segundo a SIBS, não num Montepio.
Entre as pessoas que trabalharam ao lado de Vítor Melícias nesses anos, há quem recorde que o padre brilhou mais a organizar o movimento das mutualidades a nível nacional e, ao mesmo tempo, a pô-lo no mapa internacionalmente do que a fazer crescer a atividade interna do Montepio. “A parte mutualista [do Montepio] estava num crescendo, de movimento, de admissões. Havia uma dinâmica interna. Estava em crescendo e com ele na presidência aquilo voltou a declinar”, conta um colaborador da época.
O livro “História do Montepio Geral – Sob o Signo do Pelicano 1840-2015” dá força a esta versão. Na página 444 surge um gráfico que tem como fonte os Relatórios e Contas da mutualista e o diagnóstico é claro: o crescimento anual (em percentagem) do número de associados diminuiu sempre entre 1983 e 1987. Só no final de 1988 (Melícias saiu da presidência em abril desse ano) é que o ritmo de crescimento voltou ao do início do mandato. Ao Observador, o padre responde com números absolutos e não em percentagem: “Demos uma grande abertura para o número de associados, e estes passaram de 80 mil para umas centenas de milhar!”, contrapõe.
Até os críticos lhe reconhecem uma “informalidade, um trato, um dom da palavra e um domínio das línguas” que “quebra barreiras” em qualquer lado. Sobretudo no estrangeiro, nos encontros de mutualistas a nível europeu. “Ele dispensava os tradutores. Contava anedotas aos franceses, em francês, sobre os espanhóis. E contava anedotas aos espanhóis, em espanhol, sobre os franceses. E anedotas contra os padres, nas duas línguas. Era um superstar”, recorda ao Observador um colaborador próximo de Melícias.
Quando Vítor Melícias assumiu a presidência da caixa económica, houve um funcionário do banco, em particular, que ficou satisfeitíssimo, mesmo conhecendo o sacerdote de forma apenas superficial. Católico devoto, o funcionário pediu uma reunião com o novo presidente, para desabafar — afinal de contas, era um padre — e partilhar com ele algumas preocupações que tinha em relação a alguns aspetos da organização do trabalho. O homem teve a reunião com Melícias e saiu de lá radiante: o presidente tinha reagido muito positivamente às suas reivindicações e sugestões — “O homem, tem toda a razão, vou tratar disso, fique descansado!”.
Vítor Melícias encheu o coração deste funcionário mas, à medida que os meses foram passando, nada mudou. E só alguns anos depois, quando Melícias saiu do cargo, é que o funcionário percebeu que nenhum dos seus pedidos tinha sido acatado, “não porque Melícias não tivesse conseguido fazer as mudanças que garantiu que ia fazer, mas porque nunca sequer tentou”, recorda ao Observador uma fonte que acompanhou esse episódio.
“Mais de sete anos numa função só excecionalmente”. Montepio é exceção
Quando passou para a provedoria da Santa Casa da Misericórdia, nomeado pelo governo de Aníbal Cavaco Silva [mais concretamente por Silva Peneda e Leonor Beleza], o padrão repetiu-se. Muitos quadros da Santa Casa receberam uma injeção de confiança semelhante à dada a alguns funcionários da Caixa Económica, anos antes. Quem falava com alguns deles na altura em que o padre Melícias foi para lá percebia que, na cabeça destes, todos os seus problemas iam ser solucionados com a nova liderança.
“Passado dois anos [Melícias só lá esteve dois anos], as pessoas tinham pouco a que se agarrar em termos de promessas cumpridas”, recorda uma fonte que falou com o Observador. Mas, mesmo aí, “havendo alguns dececionados, muitos outros ficaram a acreditar que o padre Melícias não cumpriu com o que tinha prometido porque não tinha tido tempo, saiu ao fim de dois anos. Se calhar é estratégico, não ficar muito tempo nos cargos permite deixar no ar a ideia de que as promessas seriam cumpridas se tivesse estado lá mais tempo”, admite a mesma fonte.
Ao Observador, o padre Vítor Melícias recorre a São Francisco e à doutrina dos franciscanos para responder à crítica de que saltita entre cargos, passando pouco tempo em cada um: “São Francisco dizia: ‘Os irmãos trabalhem fiel e devotamente e quando virem que a obra em que estão a trabalhar pode ser entregue com utilidade a outro, retirem-se discretamente e vão para outro lado’. Eu sempre disse isto e a minha orientação foi sempre esta”.
Por isso mesmo, conclui: “Mais do que sete anos numa função só excecionalmente. E excecionalmente só ultrapassei isso na União das Misericórdias, onde estive 15 anos, e no Montepio. Não na administração, onde só estive cinco anos, mas nos vários cargos que se sucederam”.
"Se me perguntar acerca dos cargos todos que desempenhou até hoje, fora da Igreja, aquele que pode parecer mais surpreendente foi ter estado à frente da Caixa Económica Montepio Geral, do Banco propriamente dito. É surpreendente um padre franciscano a presidir a um banco", diz Bagão Félix.
Bagão Félix não estranha a profusão de funções que Melícias acumulou ao longo de anos. Apenas um caso lhe causa surpresa. “Se me perguntar acerca dos cargos todos que desempenhou até hoje, fora da Igreja, aquele que pode parecer mais surpreendente foi ter estado à frente da Caixa Económica Montepio Geral, do banco propriamente dito. É evidente que era um banco mutualista, lá está, portanto segue a mesma lógica” de outros cargos que teve. “Mas um padre franciscano como presidente de um banco…”
“Obviamente que às vezes há determinadas situações em que para resolver um problema é mais fácil falar com o ministro do que com o porteiro... “
Reforma gorda? “Vai quase tudo para os franciscanos”
O valor da reforma de Vítor Melícias é outro dos temas que o levam às primeiras páginas. Já em 2008, o extinto jornal 24 horas punha na manchete: “Melícias ganha reforma gorda, mas não tem nada”. A notícia dizia que, em 2007, Vítor Melícias tinha declarado rendimentos anuais de 104 mil euros, a que acresceram, na altura, mais de 7 mil euros (também anuais) por ser vogal no conselho coordenador do Conselho Económico Social (CES).
Mas o padre Melícias ficaria apenas com o suficiente para pagar os impostos e pequenas despesas do quotidiano. “Eu acho que é uma reforma baixinha porque não fica nada para mim, vai tudo para os meus frades, para a Ordem”. Porquê? “Fiz um voto de pobreza aos 21 anos, renunciando para sempre ao direito de propriedade. Um franciscano tem direito de uso, mas não tem direito de propriedade”.
“O voto significa uma maior liberdade para estar ao serviço dos outros, sem preocupações de ganância”. A reforma é o resultado de “vinte e poucos anos de descontos”, por ter exercido a presidência do Serviço Nacional de Bombeiros, a presidência do Montepio Geral, a provedoria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a presidência da Caixa dos Trabalhadores Migrantes e a função de Comissário Nacional para Apoio à Transição em Timor-Leste”. ‘Eu tenho uma pensão aceitável, mas não sou rico’, diz o sacerdote.
Alguns anos depois, Melícias insistia: “Eu não tenho uma reforma de 7.000 euros. No meu caso, fiz sobretudo trabalho como voluntário, nos bombeiros, misericórdias — tive algumas situações em que tive remuneração, caso dos migrantes, de Timor, da presidência do Montepio…”. Em 2010, numa entrevista televisiva ao humorista Bruno Nogueira, o padre Melícias ripostava: “O que se devia perguntar era ‘do que se recebe, em que é que se aplica?’ No meu caso, tudo o que recebo vai automaticamente para a conta do convento dos franciscanos, nem passa pela minha mão. Uma parte é-me disponibilizada pelos meus frades para as coisas do dia-a-dia”. E rematava: “Não tenho nem quero ter coisas materiais, não sinto a mínima atração. Não tenho filhos para criar, para que é que preciso do dinheiro?”
Se fosse de alguma outra forma, os irmãos franciscanos poderiam censurá-lo. Mas Vítor Melícias goza, entre os franciscanos, de enorme popularidade e aceitação, tendo sido eleito (sim, é por votação) Superior da Ordem (responsável máximo em Portugal) em várias ocasiões. Atualmente vive no Convento do Varatojo, ou Mosteiro de Santo António do Varatojo, espaço ao cuidado da Ordem dos Franciscanos, próximo de Torres Vedras.
“Duas ou três pessoas ter-me-iam levado o coração…”
Vítor José Melícias Lopes nasceu a 25 de julho de 1938, em Ramalhal, Torres Vedras. Filho de um trabalhador rural e de mãe doméstica, cresceu com mais oito irmãos — numa infância “pobre mas feliz”, disse numa entrevista ao Correio da Manhã, em 2007. Por influência de um tio, que foi “um grande franciscano”, decidiu tornar-se pároco. “A melhor coisa que me podia ter acontecido é ser franciscano”, comentou.
Já o padre Melícias que todos conhecem “nasceu” a 29 de julho de 1962, quando foi ordenado sacerdote franciscano. Graças a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian foi para Roma estudar Direito Canónico, licenciando-se três anos mais tarde. A sua tese de licenciatura — “De Status Potestate” — obteve a mais alta classificação: “summa cum laude”.
Por ser sacerdote, “é mais difícil dizer”, mas reconhece: “Com algum esforço de memória, talvez pudesse nomear duas, três pessoas que eventualmente ter-me-iam levado o coração”. “As pessoas não são insensíveis. É bom até que tenham coração, sentimentos e amor”, continuou Melícias, na mesma linha do que viria a dizer alguns anos mais tarde, noutra entrevista: “Atração por mulher? Se não tivesse sentido, não era um homem completo. E digo: antes atração por mulher do que por homem — eu por homens não estaria lá muito interessado”.
O poder suave dentro do Montepio
Ao longo de quase quarenta anos Vítor Melícias tornou-se numa figura incontornável na mutualista Montepio, embora tenha estado quase sempre em órgãos não-executivos. Esteve, por exemplo, no conselho fiscal. Na altura existia a perceção junto dos trabalhadores que Melícias tinha um revisor oficial de contas e um vogal que cumpriam com o grosso do trabalho, incluindo a elaboração de pareceres.
Depois, passou para a mesa da assembleia-geral, um cargo em que foi acusado de não agir com a imparcialidade que se lhe exigia, mesmo pertencendo a uma das listas. “Está permanentemente a dar opiniões e a desvalorizar as opiniões contrárias à dele”, comenta outra fonte, um veterano da mutualista, ao Observador. “Às vezes é simpático mas também faz graçolas com as características físicas de alguns opositores — se é alto se é baixo (um dos alvos recentes terá sido o candidato de uma lista às últimas eleições, Fernando Ribeiro Mendes, que se opôs à lista institucional depois de vários anos a trabalhar sob Tomás Correia)”.
De uma coisa, porém, ninguém tem dúvidas. “Ele aqui tem uma aura que leva a que ninguém se queira meter com ele, por este poder que ele tem”, acrescenta a fonte. Isto apesar de, muito ao contrário do que é a imagem de Tomás Correia, o padre Vítor Melícias não ser uma pessoa conflituosa.
Já Maria de Belém Roseira, que é muito próxima de Melícias (de quem foi, aliás, vice-provedora no tempo da Santa Casa de Lisboa, nos anos 80), considera-o uma “pessoa fantástica, com uma vida dedicada a causas, que sempre esteve para servir e não para se servir”. A ex-ministra da Saúde foi colega de Melícias na Faculdade de Direito e foi o sacerdote que a apresentou a António Guterres.
Em termos pessoais, em conversa com o Observador, Maria de Belém acrescenta: “Ao longo dos mais de 40 anos que o conheço, ensinou-me coisas extraordinárias, no que diz respeito à postura, ao desprendimento, além de ser uma pessoa alegre e muito positiva”. Fica claro que a principal razão para o apoio de Maria de Belém à lista A — a chamada “lista institucional” — se deve ao padre Vitor Melícias, não tanto a qualquer outra pessoa (designadamente Tomás Correia).
Nem sempre foi assim. No que toca ao Montepio, Maria de Belém e Vítor Melícias já apoiaram candidatos diferentes. Foi em 2003, numa eleição destinada a substituir a liderança de António Costa Leal, então com 82 anos e 15 de presidência da mutualista. Costa Leal tinha vindo substituir precisamente o padre Melícias na presidência, em 1988.
Na altura, a “lista institucional” (apoiada pela anterior gestão) era liderada pelo economista José Silva Lopes e integrava nomes de peso, dois deles ainda a marcar a atualidade do Montepio: Tomás Correia para um lugar na administração (acabado de sair da Caixa Geral e que viria a suceder a Silva Lopes) e Vítor Melícias, para o Conselho Fiscal. Entre os apoiantes desta lista, segundo escrevia na altura o Público, estavam nomes como Ramalho Eanes, António Romão, Sousa Franco, Correia de Campos, César das Neves, Valente de Oliveira, Correia de Campos ou Torres Campos.
A lista B era liderada por António Maldonado Gonelha, ex-ministro da Saúde socialista, que apresentava Jorge Coelho para presidente da mesa da Assembleia geral e nomes como Maria de Belém, Campos e Cunha, Garcia dos Santos, Carlos Santos Ferreira, Honorato Ferreira, Luís Queiró e Rui Reininho na sua comissão de honra. Silva Lopes acabaria por ganhar e dar início ao atual ciclo no Montepio, com duas figuras em destaque e sempre presentes há mais de 15 anos: Tomás Correia e Vítor Melícias.
“Eu utilizei sempre a minha convivência com políticos, não como atitude de influenciar, mas de ajudar”, comentou o padre, numa entrevista ao Correio da Manhã. Rejeitando que algum dia tenha se tenha dedicado a fazer “influência política”, Vítor Melícias lá admitiu: “Obviamente que, às vezes, há determinadas situações em que, para resolver um problema, é mais fácil falar com o ministro do que com o porteiro.”
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