Há dias, o presidente da República João Lourenço descreveu como “chocante e repugnante” o conteúdo do relatório sobre os investimentos públicos para enriquecimento particular de alguns “marimbondos”. No quotidiano de Angola, são inúmeros os casos chocantes e repugnantes de indivíduos que continuam a saquear o Estado – qual vício, como a presente investigação expõe –, fazendo ressurgir o sentimento de impunidade que já havia sido abalado após algumas detenções simbólicas.
Comecemos pelo ofício n.º 057/GGPCC/2017, dirigido ao ministro das Finanças, Archer Mangueira, pelo governador do Kuando-Kubango (KK), Pedro Mutindi, a 20 de Março de 2017.
Na missiva, o governador confirma a dívida da empresa Carlos Madalena S.A., no valor de 658,4 milhões de kwanzas, por serviços de construção de obras públicas, fiscalização e elaboração de projectos entre 2013 e 2015. Nessa altura, o governador provincial do KK era o general Higino Carneiro, e o secretário-geral do governo provincial era Carlos Baptista Gomes “Charles”. Na mesma carta, Pedro Mutindi declara ter liquidado já parte da dívida apresentada, no valor de 118 milhões de kwanzas.
Ora, Carlos Baptista Gomes é o dono e presidente do conselho de administração da Carlos Madalena S.A., conforme atestam inúmeros documentos na posse do Maka Angola. A realização de negócios de Carlos Baptista Gomes consigo próprio tem sido uma das maiores tradições de governação dos dirigentes do MPLA.
Portanto, tal negócio não chocaria, infelizmente, ninguém. Porém, o Maka Angola tem confirmação fidedigna de que a empresa Carlos Madalena S.A. nunca prestou tais serviços ao governo provincial, apesar da certificação e do pagamento parcial por parte do governador Mutindi. São nada mais nada menos do que facturas fictícias.
O Maka Angola tentou, sem sucesso, obter a versão de Carlos Baptista Gomes, tendo ligado de forma insistente para seis dos seus números de telefone. A única vez em que Carlos Baptista Gomes atendeu, desligou tão logo ouviu sobre a investigação do Maka Angola.
Para se encaixar as peças deste puzzle, temos de recuar à criação da Carlos Madalena (na altura denominada Transportes e Imobiliária Lda.), em 2006. Poucos meses depois de criada a empresa, o seu proprietário foi nomeado secretário-geral do Ministério das Obras Públicas, cujo ministro, adivinhe-se, era o general Higino Carneiro.
Um dos esquemas engendrados por Carlos Baptista Gomes com vista ao seu próprio enriquecimento era bastante simples: alegando “orientação superior” ou “determinação superior”, orientava o departamento de equipamentos do Instituto de Estradas de Angola (INEA) no sentido de entregar equipamentos novos e caros à empresa Carlos Madalena, supostamente destinados à reabilitação e construção de estradas.
Por exemplo, através do ofício DET/DEQUI/INEA/08, a 28 de Abril de 2008 o INEA entregou um camião cisterna com capacidade de 20 mil litros, três camiões basculantes (todos de marca Volkswagen, modelo Worker), um buldôzer Komatsu D65, uma moto niveladora, um tractor de esteira, um cilindro compactador Lebrero e um dumper.
A lista dos equipamentos saqueados ao INEA e ao Ministério das Obras Públicas é demasiado extensa, mas deixamos aqui um caso. A 15 de Julho do mesmo ano, Carlos Baptista Gomes emitiu uma declaração que confirmava, na prática, o desvio, do Ministério das Obras Públicas, de cinco camiões Volvo FM, um camião Man VW, três autocarros Nissan Civilian, uma viatura Volvo S40, uma carrinha Toyota Dyna, um Toyota Land Cruiser, uma carrinha Mitsubishi L200 e outra Toyota Hilux. Todos estes veículos passaram para o domínio privado da Carlos Madalena S.A.
Os equipamentos de construção civil do INEA serviram inicialmente para as obras do aeródromo privado de Carlos Baptista Gomes no Bairro Quifuaxi, em Sanza-Pombo, sua terra natal, que baptizou de Aeroporto de Carlos Burgos. Os mesmos equipamentos também serviram para consertar estradas de acesso à sua fazenda, bem como o hotel aí erguido (inacabado até à data) ou o seu stand de viaturas, entre outras iniciativas privadas.
Este caso é paradigmático, por duas razões, para a aferição do papel dos órgãos judiciais e políticos no combate à corrupção. Primeiro, o então director do INEA, Joaquim Sebastião, encontra-se detido desde 31 de Janeiro passado por suspeita de peculato, praticado na mesma altura em que Carlos Baptista Gomes se dedicava a desviar equipamentos da referida instituição. Segundo, Carlos Baptista Gomes ocupava uma posição superior à de Joaquim Sebastião. O desvio de equipamentos aqui revelado configura, segundo a legislação em vigor, crime de peculato. Estamos então perante um caso clássico de dois pesos e duas medidas. O então subordinado está detido, e o superior assobia livre que nem um canarinho.
Como negócio fácil, o antigo secretário-geral do Ministério das Obras Públicas passou a alugar os equipamentos roubados ao INEA a empresas contratadas pelo seu ministério para a realização de obras públicas, através da sua empresa privada Carlos Madalena S.A.
Saque no Kuando-Kubango
Quando Higino Carneiro assumiu o governo do Kuando-Kubango, em 2012, levou consigo o seu então fiel escudeiro Carlos Baptista Gomes, para, mais uma vez, ser seu secretário-geral. Este sentiu-se mais à vontade para ganhar com a dupla facturação. Alugava os equipamentos pilhados ao INEA às empresas a quem concedia contratos para a realização de obras públicas nesta província. Por outro lado, também emitia uma segunda factura, com os valores cobrados pelas referidas empresas, mas em nome da Carlos Madalena S.A., fazendo parecer que tinha sido esta empresa a realizar as obras, conforme atestam documentos em posse do Maka Angola.
Carlos Baptista Gomes saqueou o governo provincial sem quaisquer freios, e ainda tem a coragem de fazer cobranças por obras nunca prestadas. Já parece a relação entre Angola e Portugal. Quanto mais as empresas portuguesas facilitaram, participaram e enriqueceram com a pilhagem em Angola, mais dívidas passaram a cobrar, ficando o país cada vez mais endividado e à mercê das cobranças de Portugal.
Mas há um dado interessante nas manigâncias de Carlos Baptista Gomes. A 28 de Agosto de 2017, submeteu três facturas ao governo provincial de Luanda (n.º LA078, LA079, LA080/2017), no valor total de oito milhões e 610 mil kwanzas, pela “limpeza do terreno do acto de encerramento do MPLA”, respeitante ao encerramento da campanha eleitoral deste partido na Camama, antes das eleições de 2017.
Ou seja, durante a campanha eleitoral de 2017, o governo provincial de Luanda, sob comando do general Higino Carneiro, pagava facturas do MPLA.
A 28 de Junho de 2016, Carlos Baptista Gomes submeteu outras três facturas (n.º 155, 1836 e 1889), no valor total de 25,1 milhões de kwanzas, pelo aluguer dos mesmos equipamentos que foram subtraídos ao INEA. Idêntica quantia cobrava pela limpeza do perímetro presidencial do Futungo de Belas, pela limpeza do local para as futuras instalações da administração do Talatona, bem como por um campo de futebol nos Ramiros. Essas facturas, endereçadas à administração do Talatona por obras não realizadas, têm apenas uma explicação: o director do Gabinete de Estudos e Planeamento (GEPE) do Talatona era subordinado de Carlos Baptista Gomes no Kuando-Kubango.
O roubo dos carros
Outro caso gritante foi a criação de um stand de automóveis pela Carlos Madalena S.A., exclusivamente para venda de viaturas adquiridas pelo governo provincial do Kuando-Kubango, sob ordens de Carlos Baptista Gomes. Este desviava, a seguir, as viaturas para o seu stand privado, sedeado na sua terra natal, no município de Sanza-Pombo, província do Uíge.
O general Higino Carneiro também beneficiou dos esquemas, como ora se reporta. A 3 de Abril de 2013, o então secretário-geral Carlos Baptista Gomes emitiu a declaração n.º 005/SGGPCC/2013, autorizando o “funcionário” Eugénio Piedoso Coimbra da Costa a levantar 16 viaturas de cabine dupla, de marca e modelo Nissan Hardbody, adquiridas à empresa TDA.
Eugénio Piedoso Coimbra da Costa nunca foi funcionário do governo provincial do Kuando-Kubango. É amigo pessoal de Carlos Baptista Gomes, que passou a prestar serviços de segurança ao governo provincial, através da sua empresa Comaprest – Comércio Agro-pecuário e Prestação de Serviços Lda.
Os carros foram distribuídos da seguinte forma: cinco viaturas ficaram em Luanda, quatro ficou na posse de Carlos Baptista Gomes e uma foi agraciada ao médico pessoal do general Higino Carneiro, o cubano José Antonio Chibás Vinent.
Um breve levantamento feito pelo Maka Angola permite identificar, com provas documentais, a aquisição, pelo governo do KK, de 11 viaturas Toyota Hilux e uma ambulância Toyota Land Cruiser à empresa F. Lubamba, sedeada no Cunene, no valor de 595 mil dólares.
Ao grupo Imporáfrica, Carlos Baptista Gomes adquiriu, em nome do governo provincial do KK, dez Citroen C4, no valor de 279 mil dólares. À TDA, o então secretário-geral pagou 450 mil dólares por três viaturas Nissan Patrol. A estas acrescem um Ford Focus por 54 mil dólares e um Nissan Navara por 45 mil dólares. Arredondando, o antigo homem do general Higino Carneiro gastou mais de dois milhões de dólares do Estado em viaturas. Depois, vendeu a maior parte delas e guardou para si o lucro do negócio duplamente ilícito.
A 6 de Agosto de 2013, ofereceu algumas dessas viaturas, já como parte do património da Carlos Madalena S.A. Beneficiaram de veículos Citroen C4 o então vice-governador para os Assuntos Económicos do KK, Ernesto Kiteculo, a filha de “Charles”, Célia Gomes, e os amigos Eugénio da Costa e Rosimário, na altura falsamente credenciados como funcionários do governo provincial.
Um conhecido advogado, que prefere o anonimato, critica as práticas discriminatórias e duplicidade de critérios aplicados pelo sistema judicial conforme os ditames políticos e de distinção social. “Este é o mistério dos processos em Angola. Temos aqui situações claras de peculato. Mas só há medidas de coacção e cadeia para uns e para os outros a impunidade”, explica.
Como se justifica agora a prisão preventiva de Joaquim Sebastião? Quais são os critérios da luta contra a corrupção? Dura lex sed lex, ou política de faz-de-conta, ou jogo da cabra cega? João Lourenço conhece os contornos deste e de muitos outros casos. Ao presidente da República compete certificar, com medidas inequívocas e corajosas, que o combate à corrupção e ao saque do Estado não vai fraquejar, e que todos os culpados, independentemente da sua teia de ligações ao mais alto nível, serão investigados e punidos.
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