Da central nuclear ao esconderijo no armário: as suspeitas que puseram Michel Temer na prisão /premium
Temer é acusado de liderar uma "gigantesca organização criminosa" durante quase 40 anos. Em causa estão contratos conseguidos para um grande amigo. Uma pista fundamental estava escondida num armário.
Esta quinta-feira, no conforto da sua casa em São Paulo, Michel Temer olhou para a rua e não percebeu muito bem o que estava a acontecer. “Porque é que estão tantos jornalistas na porta da minha casa?”, perguntou, pelo telefone, a um dos seus assessores.
Afinal de contas, Temer — homem que foi vice-Presidente do Brasil entre 2011 e 2016, passando depois para o cargo de Presidente até ao final de 2018 — é, desde o início do ano, um cidadão comum. Um homem que, depois de uma longa vida de trabalho, se entregou aos prazeres do repouso na avançada idade de 78 anos, a caminho dos 79, já no próximo mês de setembro.
Tudo isso, porém, ruiu em pouco tempo. Do outro lado da linha, conta a jornalista Daniela Lima, da Folha de S. Paulo, o assessor disse-lhe que corria “um boato na imprensa” de que pendia um mandado de prisão preventiva contra ele.
“Uma brutalidade”, respondeu Michel Temer.
Não se sabe ao certo o que se passou nos momentos seguintes. Apenas que, minutos depois, já Temer estava no banco de trás de um carro descaracterizado da Polícia Federal. Vestido de fato cinzento e gravata lilás, o ex-Presidente foi encaminhado para o Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, para dali voar para o Rio de Janeiro.
Será naquele estado que Michel Temer ficará em prisão preventiva nos próximos tempos — possivelmente, será ali que soprará as velas do bolo do seu 79º aniversário.
Mas porquê? Porque, de acordo com o juiz Marcelo da Costa Bretas, da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro, Michel Temer foi durante vários anos “o líder [de uma] organização criminosa” e principal beneficiário de uma alegada rede de corrupção que remonta à década de 1980 e que terá tido o pico da sua atividade quando ele vice-Presidente e Presidente.
Uma grande amizade com grandes lucros
Da mesma forma que quem precisa de ser operado ao coração não chama um massagista, quem quer fazer uma obra numa central nuclear não chama uma empresa de construção sem qualquer experiência no ramo para ajudar na obra. Mas, de acordo com o despacho do juiz Marcelo da Costa Bretas, foi precisamente isso que Michel Temer terá conseguido para a empresa de engenharia civil e arquitetura Argeplan, do seu amigo e colaborador de longa data João Baptista Lima Filho — mais conhecido por Coronel Lima.
Para chegar à central nuclear de Angra 3, situada na cidade de Angra dos Reis, é preciso, porém, passar primeiro pelo estado de São Paulo e rodar a máquina do tempo quase 40 anos para trás.
A relação entre os dois homens, que o juiz — que baseia as suas conclusões na delação premiada do construtor José Antunes Sobrinho, dono da empreiteira Engevix e anteriormente condenado a 21 anos e 10 meses de prisão — descreve como sendo de “amizade” e “proximidade”, remonta à década de 1980. Em 1984, Michel Temer assumiu um dos seus primeiros cargos políticos, três anos depois de se ter filiado no PMDB: secretário de Segurança Pública de São Paulo. Foi nessa altura que chamou o Coronel Lima para o seu lado, nomeando-o seu assessor militar. A partir de então, os dois homens terão passado a ser inseparáveis.
Até porque, aponta o juiz Marcelo da Costa Bretas, os interesses de um serviam o outro. Naquela altura, já o Coronel Lima era administrador da Argeplan. E, da parte de Michel Temer, havia obras a fazer. O ex-Presidente do Brasil teve duas passagens por aquele cargo em São Paulo: primeiro entre 1984 e 1986; depois entre 1992 e 1993. Terá sido no segundo período que os dois homens começaram a estreitar laços, aponta o juiz. Afinal, aponta no seu despacho, o número de contratos da Polícia Militar paulista com a Argeplan quadriplicou naqueles dois anos.
Dali, Michel Temer saltou para o cargo de deputado federal por São Paulo. Entrou na Congresso dos Deputados em 1994 e só saiu de lá em 2010, quando subiu ao cargo de vice-Presidente, ao lado da Presidente Dilma Rousseff, em 2011. Nesses anos, a relação entre o político em ascensão e o Coronel Lima voltou a estreitar-se.
"As robustas provas de corroboração apresentadas pelo colaborador, bem como as diligências realizadas pela Polícia Federal a partir delas, demonstram que os representados, ocupando os mais altos cargos da República, atuaram de forma sofisticada e sistemática para obter vantagens indevidas em benefício próprio, em detrimento dos cofres públicos, em complexos esquemas de lavagem de dinheiro."
A conclusão do magistrado aponta a dados desta investigação e de outras passadas. Nelas, foi encontrada na sede da Argeplan uma folha de pagamentos mensais, que recuavam até 1998, ao “escritório político MT”. Também foi encontrada, na casa do Coronel Lima, uma agenda telefónica de 2005, onde se lia, a páginas tantas, um número que remetia para o “Escritório Político Deputado Michel Temer”.
Nesses anos, Michel Temer não recorria ao Coronel Lima apenas para fazer as obras. De acordo com a acusação, o ex-Presidente via no seu amigo uma pessoa “apta a tratar de qualquer tema”. O amigo teria, inclusivamente, o cargo oficioso de “responsável financeiro pelo escritório político” de Michel Temer, tendo “carta branca para atuar em nome de Temer nas negociações ilícitas”.
No final, conclui o juiz, essa alegada parceria tinha o “único propósito” de “recolher parte dos valores pagos em contratos públicos e dividi-los entre os participantes do esquema”.
Ora, de acordo com o que está a investigar a Justiça brasileira, terá sido no negócio da concessão para uma obra na central nuclear Angra 3 que os dois homens levantaram a fasquia daquilo a que o juiz chamou de “gigantesca organização criminosa”.
Da estação de metro para a central nuclear
A Argeplan não tinha unhas para aquela guitarra. Foi essa a garantia do delator José Antunes Sobrinho, o dono da construtora Engevix, que foi, ele próprio, condenado a quase 22 anos de prisão após outra sentença da Operação Lava Jato.
Eis o que se lê no despacho divulgado esta quinta-feira: “Como afirma o colaborador José Antunes Sobrinho, a Argeplan não possuía qualificação técnica suficiente para participar do referido processo de licitação, pois a sua atuação empresarial limitava-se a obras de arquitetura em geral, como estações de metro, e não tinha em seu quadro de pessoal nenhum profissional com expertise em projetos da área nuclear”. E não era apenas uma questão de expertise — era também de dimensão.
Com um capital social de apenas 230 mil euros e só 30 funcionários a cargo (entre os quais dez motoristas), a Argeplan não parecia ser a empresa indicada para aquela obra. Entre quem teria mais vontade de que assim fosse, estariam Michel Temer e o Coronel Lima.
Tudo começou com o concurso internacional para um projeto de construção na central nuclear Angra 3 e com um terceiro elemento com semelhante vontade. Era ele Othon Pinheiro, então presidente da Eletronuclear, a empresa pública brasileira para a energia nuclear. Quando chegou a altura de saber o vencedor do concurso, em 2012, figurava apenas um nome no edital: AF Consult. Trata-se de uma empresa especializada na construção especializada no setor nuclear, com origem na Finlândia, mas representação no Brasil. O projeto eletromecânico em mãos foi orçamentado em 163 milhões de reais — o que, ao câmbio atual, equivale a quase 38 milhões de euros.
Quando se viu com o projeto em mãos, a AF Consult tomou a decisão de subcontratar: 64,71% do negócio à Engevix (a tal construtora de José Antunes Sobrinho, o delator) e 15,29% à AF Consult do Brasil. E é aqui que, para o que interessa neste caso, as contas começam a entortar.
Isto porque a AF Consult Brasil tinha, àquela data, a mesma morada de uma outra empresa do Coronel Lima. Além disso, não possuía qualquer funcionário em 2013, um ano depois do fim do concurso internacional. E, cereja no topo do bolo, pouco antes de o concurso ter sido decidido, a AF Consult passou a contar com a Argeplan como parte da sua estrutura de sócios.
A equipa da Operação Lava Jato do Rio de Janeiro acredita que o Coronel Lima tinha carta branca de Michel Temer para liderar todos os negócios ilícitos em que terão estado envolvidos durante várias décadas.
Com isto tudo, o que fez a AF Consult com os seus 15,29% do negócio? Destinou metade deles à Argeplan. Feitas as contas, a Argeplan não chegou a ter sequer com 8% do negócio. O problema, porém, é que não consta que tenha alguma vez passado dos 0% no que tocou ao trabalho.
De acordo com o delator, tudo isto só foi possível com a intervenção do Coronel Lima, que terá agido com o conhecimento de Michel Temer. De acordo com a delação de José Antunes Sobrinho, “as contratações na Eletronuclear com o favorecimento da pessoa jurídica da Argeplan, somente ocorreram porque [o Coronel] Lima possuía influência junto a Othon [Pinheiro, presidente da Eletronuclear]”. Esta influência terá passado até por chantagem, com o Coronel Lima a ameaçar, segundo a delação de José Antunes Sobrinho, Othon Pinheiro com a possibilidade de o seu amigo Michel Temer o afastar do cargo — ou, pelo menos, arranjar maneira para que isso acontecesse.
Aqueles 8% seriam, afinal, a forma de receber as alegadas luvas. Não é por acaso que o juiz titular do processo escreve que o esquema que o ex-presidente do Brasil é suspeito de ter montado, é “muito mais sofisticado que os esquemas anteriores”, detetados na Lava Jato. O magistrado não tem dúvidas: os alvos da operação desta quinta-feira, “ocupando os mais altos cargos da República, atuaram de forma sofisticada e sistemática para obter vantagens indevidas em benefício próprio, em detrimento dos cofres públicos, em complexos esquemas de lavagem de dinheiro”.
As obras na casa da filha e o esconderijo no armário
O juiz Marcelo da Costa Bretas e a equipa de procuradores da Operação Lava Jato do Rio de Janeiro acreditam que o dinheiro obtido no alegado esquema da central nuclear foi “dissimulado por meio de dois principais atos de lavagem”.
O primeiro, terá sido através de obras de renovação de uma casa de Maristela Temer, filha do ex-Presidente do Brasil. Para este esquema terão participado: o próprio Coronel Lima; o seu sócio na Argeplan, Carlos Alberto Costa; o filho deste, identificado como Carlos Alberto Costa Lima; e Maria Rita Fratezi, mulher do coronel.
Terá sido esta última a assumir a responsabilidade da suposta obra na casa da filha de Michel Temer. E é aqui que começa o “senão” deste capítulo, como explica o juiz. “O que gera curiosidade é a afirmação feita por ela em seu depoimento prestado à polícia, em 30 de março de 2018, ocasião em que afirmou não participar da gestão das empresas do marido João Baptista [Lima], ‘uma vez que se dedica exclusivamente às atividades do lar'”, lê-se no despacho.
Numa troca de mensagens entre as duas mulheres, obtida pela investigação, as duas deixaram claro que tanto Michel Temer como o Coronel Lima estariam a par do que ali se passavam.
Maria Rita Fratezi: “Olá Maristela te enviei por mail, os descontos da indusparquet. Bj. Rita.”
Maristela Temer: “Ok. Passo para o papai?”
Maria Rita Fratezi: “Passei os preços para João, que disse que vai aprovar com ele. Fica bem assim?”
Maristela Temer: “Claro! Obrigada.”
Maristela Temer: “Ok. Passo para o papai?”
Maria Rita Fratezi: “Passei os preços para João, que disse que vai aprovar com ele. Fica bem assim?”
Maristela Temer: “Claro! Obrigada.”
No final, foram entregues notas fiscais e recibos no valor de 1,27 milhões de reais — praticamente 295 mil euros, ao câmbio atual.
Mais elevados ainda são os valores das 58 transferências que foram feitas entre a conta da Construbase Engenharia e da PDA Projeto e Direção Arquitetônica. No total, foram transferidos, por meio de 58 transações, mais de 17 milhões de reais (quase 4 milhões de euros) entre 2010 e 2015 para as contas daquelas duas empresas.
Mas o que faziam estas empresas? Nada, pensa a investigação da Operação Lava Jato, que acredita tratarem-se somente de empresas fantasma utilizadas por Michel Temer e pelo Coronel Lima para lavarem o dinheiro da sua “gigantesca organização criminosa”.
A investigação chegou a este elemento em 2018, quando fez buscas à casa do Coronel Lima, onde os procuradores da Lava Jato procuraram em todos os cantos. E acabaram por encontrar uma série de documentos que detalhavam várias transferências ocorridas entre as duas empresas, entre 2002 e 2015, ultrapassando o valor de 8 milhões de reais (1,85 milhões de euros, hoje). Cada um desses papéis estava num esconderijo de difícil acesso na casa do Coronel Lima. Ou, mais precisamente, no seu armário.
Sem comentários:
Enviar um comentário