Partilho esse editorial retirado do mural de Paulo Bouene. Mas antes gostaria de dizer o seguinte:
Há uma dificuldade básica em ter uma boa discussão na Pérola do Índico. Ela prende-se com o privilégio que algumas pessoas dão à retórica (em detrimento da lógica) e ao supérfluo (em detrimento do essencial). Assim é muito difícil discutir e tirar proveito disso. Estamos, por exemplo, a discutir o baleamento fatal de supostos malfeitores por uma patrulha da polícia. Usam-se basicamente três truques para impedir uma discussão sã do assunto.
Gostaria de ilustrar isto com uma passagem do texto que partilho: “Alguns dos nossos iluminados analistas, os que nunca falham nas suas análises, os professores que sabem de tudo mais alguma coisa, condenam a polícia porque dizem que mesmo que seja bandito, o ser humano merece e tem direito à vida e à dignidade. Dizem que mesmo que aqueles sejam bandidos comprovados, eles deviam ter sido levados à justiça para um julgamento transparente e justo, pois estamos num Estado de Direito Democrático onde a lei é aplicada por via dos tribunais e a polícia não está autorizada a atirar contra a vida do cidadão”.
O primeiro truque consiste em pôr em causa as credenciais intelectuais do adversário com generalizações grosseiras. Assim, quem discorda é “iluminado analista”, “nunca falha” e “sabe tudo”. Pode ser. Pode não ser. O problema é que os atributos individuais de quem critica a acção policial não contam assim tanto para a avaliação dessa acção. A questão tem os seus próprios méritos e são eles que devem ser discutidos. Esses analistas até podem se ter enganado em muitas outras ocasiões, mas agora levantaram uma questão e é essa questão que precisa de ser discutida.
O segundo truque consiste em distorcer a posição dos adversários. Assim, quem critica a acção policial defende o bandido. Na verdade, na passagem acima o raciocínio do articulista não está bem exposto. Acho que ele queria escrever “...condenam a polícia porque dizem que mesmo que um ser humano seja bandido ele tem direito à vida e à dignidade”. É um truque que quer fazer aceitar o que está a ser contestado para que toda a discussão seja supérflua. Assim, a ideia aqui é de que bandido não tem direito à vida e à dignidade, logo, não faz sentido condenar a acção policial porque esta respeita o ser humano (só bandido é que não é ser humano), tipo morreram cinco pessoas e dois matxanganas. É um truque baixo que se opõe à discussão.
O terceiro truque está relacionado com este último e consiste em impor a conclusão a que alguém chegou como ponto de partida para a discussão. Ou por outra, para nós discutirmos este assunto tínhamos que aceitar a premissa enunciada pelo articulista segundo a qual bandidos comprovados não devem ser levados a tribunal. O problema é que é justamente isso que está em discussão. Segundo a nossa ordem jurídica quem determina que alguém é bandido é o tribunal. Isso não impede à polícia de supor que alguém seja bandido. Mas não é a ela que isso compete. Ela leva o suspeito ao tribunal e este determina isso. Uma coisa que os defensores da acção policial não entendem é que nenhuma das pessoas que critica a acção policial está a dizer que a polícia não se pode defender, nem que a polícia não tenha tido razões fortes para agir como agiu, muito menos está a dizer que os suspeitos tenham sido uns bonzinhos. O que se está a dizer é que não compete à polícia determinar isso e que o quadro jurídico dentro do qual o país funciona obriga a polícia a respeitar a presunção de inocência criando condições para que sejam os tribunais a fazerem isso.
Se, como parece ser o caso aqui, a polícia teve que agir como agiu, compete ainda às instituições relevantes averiguar os factos para determinar que, de facto, a polícia agiu em legítima defesa e, por isso, viu-se obrigada a violar a presunção de inocência.
Recapitulando: não importa se um analista é infalível ou não, se defende os bandidos ou não e se a polícia agiu em legítima defesa ou não. O que importa nesta discussão é se temos uma polícia que respeita a legalidade. Isso descobre-se discutindo as circunstâncias em que esses indivíduos foram mortalmente baleados pela polícia. Não importa se a criminalidade aumentou, se os criminosos se tornaram sádicos, nem mesmo se alguém defende a pena capital ou não. O que importa é se a polícia agiu dentro da legalidade. Essa é a questão em discussão.
Sobre a importância dessa discussão já ontem reflecti num outro post. Tenho em mim que o país só pode avançar se houver maior foco na discussão. A retórica não costuma ser boa companheira nestas coisas. O supérfluo muito menos.
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