O Chefe de Estado aproveitou a visita ao ministério que tutela os assuntos religiosos para lançar recados às igrejas que têm assumido posicionamentos sobre assuntos políticos. E não faz duas semanas que os bispos católicos se posicionaram sobre as chamadas dívidas ocultas: “Não podemos permitir que ao povo moçambicano seja imputada a responsabilidade de pagar com a miséria, sangue e morte as dívidas contraídas em nome dele, de forma ilegal e inconstitucional”.
Ontem, Filipe Nyusi não disse que estava a reagir a este tipo de intervenções, mas questionou a fronteira entre a religião e a política. E fê-lo usando uma linguagem polida: “Não gostaria que a religião do meu país se confundisse com a política. Mas se a nova forma de fazer a religião é essa, teremos dificuldades, como país, de chegar a uma conclusão”.
Como que a propor uma saída, o Chefe de Estado fez questão de instruir o Ministério a prestar mais atenção no relacionamento que tem com o sector religioso. “Eles precisam de saber que há uma área de tutela, uma área que resolve as suas preocupações. Não todas, mas aquelas que são possíveis e legais”.
Outro assunto que tira sono ao Presidente da República é a falta de patriotismo. E, antes de ser mal interpretado, fez questão de esclarecer que ser patriota não significa ser partidário. “Como é que vocês trabalham para ter a certeza de que não estão a formar pessoas que pensam erradamente que ser apartidário significa não ser patriota”, questionou à directora o Centro de Formação Jurídica e Judiciária. Juíza de profissão, Elisa Samuel circunscreveu a sua resposta na Constituição da República: “Nós (juízes) temos a missão de respeitar e de fazer respeitar a Constituição. O modelo de formação de juízes é ditado pela Constituição. A própria Constituição estabelece que o magistrado judicial deve ser independente, imparcial, humano e altamente responsável”.
Depois de ouvir a resposta, Nyusi desabafou que sente inveja de outros povos que se orgulham dos seus países. “São povos de todos os sistemas possíveis do mundo que se sentem orgulhosos por aquilo que são. Nós ainda não conseguimos ter esse sentimento. Falamos da unidade nacional, mas só pode falar da unidade nacional aquele que se acha patriota, aquela pessoa que luta para que possa existir um Moçambique sem corrupção, sem doença, um país com transparência, com escolaridade, água, energia e liberdade de expressão”, detalhou.
Sobre o ministério
O Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos conta com mais de 8 360 funcionários, dos quais mais de metade pertencem ao serviço penitenciário. Sobre as instituições tuteladas, o serviço de registos tem 170 conservatórias, 13 cartórios, uma repartição de registo criminal e 341 postos de registo civil. Os serviços de registo e notariado estão em quase todos os distritos, à excepção dos nove recentemente criados nas províncias de Gaza e Zambézia.
Já o IPAJ conta com mais de 137 delegações, das quais seis funcionam em regime ambulatório. O SERNAP conta com 34 estabelecimentos prisionais, com capacidade para 8 188 reclusos. Porém, a actual população prisional é de 19 108 reclusos. O ministro Isac Chande informou que, devido aos cortes orçamentais, as obras de construção da sede do IPAJ estão paralisadas. E reclamou que o edifício sede do ministério é tão pequeno que nele só funciona uma direcção nacional, sendo que as outras direcções estão espalhadas pela cidade.
“Ministério da Justiça devia ser o último a ser julgado por falta de transparência”
Filipe Nyusi retomou as visitas aos ministérios e, ontem, foi ao Ministério da Justiça, um dos poucos onde efectuou mudança de ministro antes de fechar a metade do mandato. Foi em Março de 2016 que o Chefe de Estado trocou Abdurremane Lino de Almeida por Isac Chande. Um ano depois, Lino de Almeida foi condenado a dois anos de prisão, por pagamento de remunerações indevidas e abuso de funções, quando exercia o cargo no edifício 33 da Julius Nyerere. Nyusi não chegou a mencionar o caso, mas deixou uma indirecta, quando falou da transparência: “O vosso ministério devia ser o último a ser julgado por falta de transparência, porque vocês são os guardiões da transparência deste país”.
Mas os discursos foram antecedidos de uma correria pelas instituições tuteladas pelo Ministério da Justiça, a começar pela 1ª Conservatória, da Cidade de Maputo. Aqui, a novidade foi a informatização dos registos e notariado e a introdução de um sistema electrónico de pagamento de serviços. Trata-se de uma iniciativa piloto que poderá flexibilizar o atendimento e melhorar a gestão de receitas.
A visita continuou no Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ) e na Imprensa Nacional, única instituição tutelada com sustentabilidade financeira. O Chefe de Estado passou por diversos departamentos de impressão e acabamento de boletins da República e outros documentos oficiais, antes de seguir para o Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP). A sobrelotação das cadeias continua a ser o grande desafio do sistema prisional.
Já na Matola, Nyusi visitou o Centro de Formação Jurídico e Judiciário (CFJJ), local onde são formados os juízes e procuradores, depois de graduarem em Direito. Os cortes nos orçamentos foram a principal queixa das instituições. Em jeito de balanço, o Presidente da República disse que gostou do que viu, mas deixou algumas recomendações.
Cobranças ilícitas
“Insisto que a inspecção do ministério precisa de verificar a tabela de preços de serviços cobrados nas instituições tuteladas. Eu ando pelo país e oiço muita coisa. E não me parece que aquilo que falamos com muita propriedade seja o que se passa no terreno. Se calhar, há pessoas que inventam serviços urgentes, expressos e/ou qualquer outra coisa para fazer cobranças ilícitas ou a mais. Os serviços cujos preços estão definidos na tabela não deviam criar dúvidas aos cidadãos. As pessoas que têm bilhetes de identidade falsos significa que conseguiram tratar certidões de nascimento falsos neste ministério. Eu conheci uma pessoa e fiz questão que saísse de Moçambique: não nasceu em Moçambique, não tinha nacionalidade moçambicana, mas tinha certidão de nascimento de Mecúfi (Cabo Delgado). Como é que isso acontece? Esta questão de estrangeiros que se tornam moçambicanos com tanta facilidade é muito preocupante. Até vimos isso nos clubes de futebol.”
Gestão de receitas
“Queria aconselhar-vos a olhar com mais atenção para a gestão de receitas. Não tenho muitos elementos que me possam sugerir a revisão dos vossos métodos de gestão, mas penso que, pela quantidade das auditorias e inspecções, há muita receita perdida nos vossos sectores. Há muitas pequenas despesas que, com a vossa receita, poderiam ajudar a pagar. Se isso não acontece, significa má gestão. Aconselharia, também, a melhorar a gestão os fundos doados pelos doadores. Uma das formas simples e que pode merecer a vossa confiança é prestação de contas, com toda a transparência. Quando recebe o valor, tem de provar que fizeram esta e aquela actividade, mostrar as facturas e o dinheiro que restou. Mostrar o dono que vos deu o dinheiro. Mas quando é a instituição internacional que financiou um projecto ou programa a pedir-nos para justificar, significa que não temos a cultura de prestação de contas. Por isso é que, muitas vezes, não somos credíveis nesse aspecto.”
Sobrelotação de cadeias
“Nos serviços prisionais, senti que a qualquer momento vão concluir o sistema de informatização. E devem terminar, para facilitar o registo, o controlo, o acompanhamento, incluindo a gestão da população reclusória. Preocupa-me muito a questão da sobrelotação das cadeias, não só porque as pessoas vivem mal, mas porque muitas não deviam estar presas. Eu tenho conversado com alguns e sei que muitos reclusos são pessoas que já cumpriram as penas a que foram condenados e outras estão fora dos prazos. Uma das soluções passa pela construção de mais infra-estruturas prisionais, mas, para mim, é mais a questão de celeridade dos processos. Por isso que estava a perguntar sobre o relacionamento que o ministério tem com as instituições de administração da justiça, para ver se influenciamos, não as conclusões, mas o curso dos processos. Isso iria permitir que as decisões definitivas fossem tomadas em tempo útil, para que as pessoas cumpram penas dentro dos prazos ou sejam devolvidas ao convívio social.”
Funcionários turbos
“Tenho tido algum sentimento, porque cruzo com pessoas deste ministério que são turbos, para recorrer à linguagem usada para designar professores que dão aulas em várias instituições de ensino. Tenho sentimento de que aqui há funcionários turbos. São pessoas seniores que querem fazer tudo. Mas a prioridade deve ser aqui. Se você só trabalha aqui duas ou três horas e depois vai fazer outras coisas fora do ministério, por que é que não nos pedem para poderem ficar lá. Nós temos muitos jovens que estão a formar-se, estão à procura de pleno emprego, ocupação total para explorar todas as suas capacidades. Mas há quem trabalha aqui meia hora e sai para fazer outras coisas. E isso cria corrupção, porque se está a assistir um assunto fora, aqui dentro pode manipular a lei a seu favor.”
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