“Novilíngua” é a “newspeak” de George Orwell, do seu livro “1984”. É a língua inventada pelos detentores do poder para controlar o pensamento naquela crença vã, segundo a qual aquilo que não se diz, ou não se pode dizer, deixa de existir. “Marracuene” é o nome do hospital psiquiátrico do Infulene, nos arredores de Maputo. Consta que um teste para determinar a lucidez dos inquilinos consistia em lhes pedir para encher uma bacia furada. Trabalho de Sísifo em linguagem civilizada.
Os que detêm o poder sobre os africanos hoje, nomeadamente o sindicato internacional do desenvolvimento, não dormem aí a trabalhar com afinco na redução do vocabulário para corresponder apenas à forma como eles apreendem o mundo e reduzir as nossas opções ao que eles acham correcto. “Duplipensar”, “crimideias” e “negrobranco” viraram o instrumento ideal de colonização da nossa mente. “bomdinheiro”, “crimidinheiro”... Muitos de nós submetemo-nos a essa disciplinarização mental convencidos de que por essa via nos tornamos melhores pessoas. Substituímos o pensamento original pelo emprego de palavras que pensam por nós e transformamos a integridade intelectual num artefacto da vontade de poder que outros exercem sobre nós.
Quem ainda não se apercebeu do que estou a falar: da corrupção, desse odioso vocábulo que promove a preguiça mental. Que os angolanos não me levem a mal, mas não tenho outra maneira de ilustrar o que me revolta neste discurso da corrupção. Consta que um dos filhos do presidente angolano comprou um relógio de luxo por 500.000 dólares num leilão em Cannes. Muita gente ficou indignada com isso (eu também), e condenou o acto (eu também condeno-o). A questão, contudo, é o tipo de ilações que tiramos disso. A tirania da razão que funciona como uma polícia de pensamento orwelliana indigna-se porque com aquele dinheiro Angola poderia ter apetrechado hospitais, escolas, melhorado a habitação, etc. É, no mais tardar, aqui onde eu perco interesse no assunto. O que tornou possível que um menino de 25 anos levasse tanto dinheiro para Cannes para ir participar num leilão de luxo é o mesmo que, em Angola, impediria que esse dinheiro fosse empregue em coisas mais úteis. Quando você grita “corrupção” você revela indignação legítima, mas revela perplexidade ao mesmo tempo. Você recusa-se a pensar os problemas do seu país usando a sua própria cabeça.
Você foi possuído pela “Novilíngua”. Ela meteu na sua cabeça que a única maneira de pensar os problemas do seu país é concentrar a sua atenção na maldade dos líderes e na mentalidade retrógrada do seu povo que não sabe agir no interesse colectivo. Vocês todos precisam de ser reeducados, aprender ética, aprender a amar a vossa terra e a respeitar o bem comum. Se vocês fizerem isso, todos os problemas vão ficar resolvidos. As condições estruturais dentro das quais o vosso país foi integrado na economia mundial vão deixar de ser um peso; a pobreza e as desigualidades que ela produz, põe a descoberto ou exarceba vai deixar de ser um peso; aquele tempo que é necessário para que instituições se consolidem através do processo natural de tentativa, erro e correcção vai se esfumar e cada um dos nossos países vai virar uma Suíça em ponto maior.
Eu até aceito, e compreendo, que activistas e indignados profissionais falem assim. Já não tenho muita compreensão quando académicos, ou pessoas que se julgam académicas, adoptam esta linguagem e procuram entender os seus países com recurso a ela. Não compreendo. Então vamos repetir juntos: o nosso maior problema em Moz não é e nunca foi a corrupção. O nosso problema é o subdesenvolvimento. E ele manifesta-se, entre outras coisas, através da corrupção. Como exactamente, ninguém sabe com certeza, mas se queremos acabar com o problema (não é proibido sonhar), temos que começar aí. Qual é o problema para o qual a corrupção é uma manifestação? Em que circunstâncias determinadas manifestações desse fenómeno constituem um problema?
Como sempre sou acusado por algumas pessoas de não propôr soluções concretas, aí vão algumas:
1. Encerrar com efeitos imediatos o Gabinete Central de Combate à Corrupção para libertar os seus funcionários para actividades mais úteis à sociedade (o FMI e o Banco Mundial não vão gostar, mas explicar que é uma questão de eficiência administrativa e contenção de custos); o dinheiro poupado pode ir para o fundo das tréguas sem prazo;
2. Criar (se é que ainda não existe) a Inspecção Geral do Estado (sob a alçada do Tribunal Administrativo) com a tarefa de controlar o funcionamento das instituições do Estado e simplificar os procedimentos administrativos;
3. Encerrar o Ministério da Administração Estatal (se é que existe) e integrar algumas das suas competências no ministério do interior, no da justiça e no do trabalho;
4. Reduzir drasticamente os poderes do Chefe de Estado (e colocar a Inspecção do Estado fora da sua alçada) para que se promova a cultura da concertação social e política e se diminuam oportunidades neo-patrimoniais; proibir visitas do chefe de estado aos ministérios e empresas públicas, deixar isso para a inspecção geral do estado ou para o primeiro ministro;
5. Reforçar o gabinete do Provedor de Justiça com competências especiais para proteger o cidadão da arbitrariedade dos agentes do Estado;
6. Realizar seminários de sensibilização de todos os governantes para aprenderem a rir às gargalhadas sempre que um engraçadinho qualquer de fora falar de corrupção como causa dos nossos problemas; se tiverem roubado (que é mau) aprenderem a fazer “poker face” até os doadores mbunharem.
E só uma palavrinha sobre a ética. Não há nada de extraordinário, em países como os nossos, num jovem de 25 anos gastar assim tanto dinheiro duma assentada e sem sensibilidade para os seus conterrâneos que sofrem. Se Angola for como Moz, e acho que é, não vejo mesmo. Ele faz ao seu nível aquilo que muitos fazem ao seu nível. Não quero impedir ninguém de usufruir do seu dinheiro como bem entender. Mas toda a vez que você compra um telefone sofisticado e caro, toda a vez que você compra mais uma camisola do Real ou do Barça, toda a vez que você tira aquelas férias merecidas, vai comer no restaurante, etc., sendo você dum país pobre com muita gente que nem sabe o que comer no dia seguinte, você também, quer queira, quer não, está a portar-se como o filho do Presidente angolano. Você pode justificar isso. Você pode dizer que não roubou, que não é filho de político, etc. E terá razão. Ele também vai dizer o mesmo. Ele e você são beneficiários a níveis diferentes das condições estruturais que colocam na fome milhões dos vossos compatriotas. Ética como não.
Comentários
Ricardo Santos Pior
do que a corrupção, só os corruptos, Pior do que os corruptos, só os
"homens bons" que se dedicam a denunciar a corrupção. É uma espécie de
hobby muito em voga mas não sei porquê, só me vem à memória o Charlie
Chaplin. Os pequenos corruptos a denunciar os grandes, com veemência.
Coitados, mal eles sabiam que o mundo já tinha mudado. Os mais descalços
nunca deixaram de saber!
Manuel Jossefa Esta
colocação do Professor remete-nos a uma espécie de reinventarmo-nos.
Mas as propostas que avança são passíveis de acontecer ou de ser
objectivamente debatidas como seria interessante debater (reinventar) a
nossa agricultura sem tabus nem preconceitos.
Juma Aiuba Na
verdade, eu não me indignei com a notícia do filho do presidente de
Angola. Eu só me indignaria se o dinheiro não fosse lícito. Até aqui
nada diz que o dinheiro do puto era ilegal. Se o dinheiro é/era dele por
direito não vejo problema nenhum. As pessoas
simplesmente compram o que lhes apetece, seja barato ou caro. Não caio
nessa de que os ricos devem deixar a mercê do Estado para usar para fins
públicos, como comprar medicamentos, carteiras, ou coisas tais. Não
gosto de ouvir isso. Eu não posso deixar de comprar um carro do meu
gosto só porque há crianças estudando ao relento no país. É muito
populismo. Daqui a pouco vão me dizer para eu deixar de comprar o meu
perfume Chanel (que tanto gosto) para usar o dinheiro para construir
estradas que o Estado não consegue construir. Nada! Para mim as coisas
não funcionam assim.
Xavier Jorge Uamba Acho que ainda queremos continuar no socialismo, esquecemos de que já estamos no capitalismo.
Isso de querer igualidade social foi no tempo de Machel.
Isso de querer igualidade social foi no tempo de Machel.
Xavier Jorge Uamba A
maior desgraca de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza,
produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Na verdade, melhor seria chama-los
não de ricos mas de endinheirados. Porque na realidade, o dinheiro é que
o tem a eles. Aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros.
Eles enriquecem gracas a essa desordem social. Mia Couto in livro
Pensatempos.
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