O Mecanismo de Apoio à Sociedade Civil (MASC) e a s organizações da sociedade civil
(OSCs) assinantes deste comunicado, estudaram atentamente o discurso do Sr. PrimeiroMinistro
Carlos Agostinho do Rosário do passado dia 28 de Abril, sobre a situação da dívida
externa de Moçambique.
As OSCs citadas apreciaram o discurso e enaltecem o Governo pela iniciativa. Espera-se que o
Governo mantenha este procedimento com regularidade para os assuntos que mais afectam a
vida dos moçambicanos, a economia nacional e o nome de Moçambique. Isto pressupõe, num
exercício de benefício da dúvida, que o Governo não fez da Comunicação um acto de contrição,
por imposição externa, no quadro de um caminho de procedimentos que conduzam à facilitação
de futuras negociações com as instituições financeiras internacionais e com os parceiros da
comunidade internacional. A sociedade civil exige que, no futuro, o Governo use regularmente
usando os mecanismos constitucionalmente estabelecidos para prestar contas à sociedade
moçambicana.
Em todo o processo da dívida e de outros assuntos, existe a triste tradição dos governantes não
respeitarem as competências da Assembleia da República, nem esta faz valer o seu poder de
exigir ao Governo a submissão e a prestação de contas em relação aos assuntos fundamentais
para o país e conforme o previsto na Constituição da República.
As OSCs assinantes deste comunicado receberam com surpresa e apreensão a declaração do Sr.
Primeiro-Ministro segundo a qual o Governo de Armando Guebuza, deu a conhecer "cada
dossiê aos bocadinhos" ao Governo do Presidente Filipe Nyusi e ao Banco de Moçambique. A
este propósito o Sr. Primeiro-Ministro afirma no seu discurso; O momento sensível
caracterizado pela instabilidade aliado ao processo da transição de um Governo anterior para
o novo ciclo de Governação que iniciou em 2015, fez com que tivéssemos conhecimento e
contacto gradual com os dossiers destas dívidas à medida que fossemos aprofundando o já
conhecido. Justamente a instabilidade deveria ter conduzido a uma “passagem de pastas” mais
atempada. Em qualquer circunstância, o período superior a mais de um ano, é tempo mais que
suficiente para estes processos estarem concluídos.
Por outro lado, não se pode fazer tábua rasa ao conhecimento que o Governo de Filipe Nyusi
tem que ter destes e de outros dossiers, quanto mais não seja porque ele próprio, Filipe Nyusi,
era então Ministro da Defesa. As OSCs questionam-se ainda sobre o desconhecimento que o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e alguns Parceiros de Cooperação alegaram ter sobre os
assuntos em questão. O FMI tem acesso a toda a informação nacional e do sistema financeiro
internacional. Alguns países estiveram envolvidos, ao mais alto nível, nos negócios que agora
dizem não terem conhecimento. Neste contexto, é necessário ter fé em algo mais além, para se
aceitar de ânimo leve o alegado desconhecimento generalizado dos dossiers.
O discurso do Sr. Primeiro-Ministro revela claramente a continuidade de compromissos e de
alianças de várias forças de interesses políticos e económicos instalados no seio do Estado e de
outras instituições do poder, que inibem o Governo de tomar medidas de ruptura e
esclarecedoras dos processos e procure alterar o percurso da economia. Parece existir mais de
um Estado dentro do Estado.
A revelação que esteja a emergir um Estado dentro do actual Estado Moçambicano foi das
revelações mais surpreendentes e chocantes no discurso do Primeiro-Ministro, reforçada pelos
dois Ministros (de Economia e Finanças e do Mar, Águas Interiores e Pescas) que o
acompanharam na conferência de imprensa de 28 de Abril. Pelo que se ficou a saber, em apenas
dois anos, foram realizadas dívidas ocultas, no valor de quase dois mil milhões de dólares
americanos, em nome de entidades alegadamente empresariais (público-privadas?), todas elas
dependentes ou pertencentes aos Serviços de Segurança do Estado (SISE). Não menos
importante é o Sr. Primeiro-Ministro, por um lado, ter feito vista-grossa às ilegalidades
cometidas, em torno da criação das referidas empresas (EMATUM, PROÍNDICUS,
Mozambique Asset Management (MAM) e Ministério do Interior); por outro lado, ter
considerado aceitável e normal enveredar-se pela criação de empresas supostamente para
produzir bens e serviços pertencentes aos serviços de “inteligência” (SISE) do Estado.
O elemento comum no conjunto de causas da actual crise económico-financeira, enumeradas
pelo Sr. Primeiro-Ministro, é remeterem ou atribuírem responsabilidade a terceiros,
nomeadamente: às calamidades naturais, à instabilidade militar atribuídas unicamente à
Renamo, ao contexto de crise e dos mercados internacionais (o Sr. Primeiro-Ministro não se
referiu, por exemplo, aos ganhos da queda dos preços do petróleo), a atrasos nos desembolsos
dos Parceiros de Cooperação externa e ao balanço entre exportações e importações da
economia moçambicana. Acontece que a maioria destes factores não são conjunturais, mas sim
estruturais e têm-se repetido ciclicamente ao longo dos anos.
As OSCs assinantes deste comunicado lamentam que factores, sem dúvida determinantes e
condicionantes da dinâmica económica recente, tenham sido usados mais para ocultar e baralhar
do que esclarecer a opinião pública e os cidadãos em geral. Esta é uma postura recorrente e
coerente com o antigo estratagema de externalizar e tentar irresponsabilizar-se pelo seu papel
central na sociedade e na economia. Certamente não foi inocente, muito menos mero
esquecimento, que o Sr. Primeiro-Ministro tenha perdido esta oportunidade crítica para admitir
que as políticas económicas governamentais possam estar erradas, ou não menos importante,
estejam a ter efeitos negativos, não intencionais.
Numa altura em que era preciso dar passos claros visando reconquistar a confiança da sociedade
moçambicana e da comunidade internacional, o problema da abordagem do Governo,
manifestada pelo Sr. Primeiro-Ministro, é sentirmos que os valores da meritocracia, da ética e
do profissionalismo continuam a ser preteridos e violados. No seu lugar, percebemos prevalecer
práticas de “desenrasque”, não-transparência ou transparência parcial e a conta-gotas,
encobrimento de graves violações da Lei e, em alguns casos, da própria Constituição da
República.
Constata-se que as causas da dívida apresentadas são surpreendentemente parciais, vagas e
incompletas. A este propósito, destacam-se os seguintes aspectos:
A análise da estrutura económica do país não refere acerca do padrão de acumulação
dominante concentrado, socialmente discriminante e, sobretudo, refém do exterior pelo
facto de grande parte do investimento ser financiado pela poupança externa e
principalmente virado para a exportação assegurando a transferência de recursos para o
estrangeiro.
O discurso não faz referência à secundarização sistemática da agricultura e da indústria
assente em pequenas e médias empresas, e na configuração de um tecido empresarial
articulado, gerador de emprego e de acumulação interna para que as poupanças internas
sejam a fonte principal do capital para o crescimento económico mais endógeno.
O Sr. Primeiro-Ministro, mais uma vez e em continuidade com os discursos das
governações anteriores, não faz referência ao sector familiar da agricultura, aquele que
ocupa mais de 70% da população e do emprego e que produz mais de 95% dos
alimentos, revelando claramente, que não está assumido que a pobreza e as
desigualdades sociais e espaciais só serão ultrapassadas com o aumento da renda das
famílias e uma maior e melhor acessibilidade aos serviços básicos da população.
Surpreende que, no discurso, a educação e a saúde não surjam como sectores
prioritários da governação.
Não foi reconhecida a necessidade imprescindível de uma profunda reforma
modernizadora do Estado, a começar pelo seu papel na economia e na sociedade, no
combate à corrupção a todos os níveis, incluindo a corrupção de alto nível, a
imperatividade da descentralização e da despartidarização da Administração Pública.
Estes são elementos sem os quais não haverá reformas económicas eficazes e
eficientes, nem tão pouco se pode esperar que as instituições públicas contribuam de
forma mais efectiva para a harmonia e coesão social.
Um dos grandes cancros da economia moçambicana, as empresas públicas, devido à
generalizada ineficiência, protecção e partidarização, maus e caros serviços às empresas
e aos cidadãos, foi, mais uma vez, completamente ignorado no discurso do Governo.
O discurso não contém uma única palavra acerca da gestão da política monetária
comprovadamente desajustada e inoportuna, e não questiona as intervenções
desacertadas do Banco de Moçambique, nem este foi, em algum momento, chamado
para prestar informações à Assembleia da República.
Não existe qualquer referência aos raptos que certamente provocaram a saída,
temporária ou definitiva, de muitos empresários e a fuga de capitais não conhecidos mas
certamente em grandes volumes, o que é comprovado por súbitos e inúmeros
investimentos de moçambicanos no exterior.
O discurso do Sr. Primeiro-Ministro retoma as expectativas aparentemente positivas ao afirmar
que a economia continua a crescer, esquecendo que, o fenómeno da economia real e de validade
analítica é o facto da economia estar em desaceleração. Certamente que o Governo está longe do
pulsar da actividade económica onde é generalizada a percepção e a realidade que os negócios e
as empresas atravessam crises produtivas. Disso se depreende de que as exportações e as
importações não baixam, a construção civil não está em queda, afinal as calamidades parece que
não fizeram baixar a produção agrária, os transportes não desaceleram o acelerador apesar das
estradas cortadas e atacadas, o crédito bancário mal parado não está a aumentar, etc. O discurso
é exactamente o contrário das constatações empíricas da evolução recente da economia.
Apesar do Metical estar hoje no mercado oficial a mais de 50% comparando com o câmbio de
há seis meses, os bens alimentares nas cidades (onde se recolhem as informações de preços para
o cálculo da inflação) estão muito superiores à taxa da inflação artificialmente sustentada e de
cálculo duvidoso. A sociedade civil apela para que a governação deixe de escamotear a
realidade com discursos falaciosos e com indicadores económicos e sociais de validade mais
que duvidosa, não sendo novidade, que muitas estatísticas oficiais não correspondem à
realidade.
Finalmente as OSCs assinantes deste comunicado lamentam e estão preocupadas pelo facto do
discurso do Sr. Primeiro-Ministro não ter oferecido qualquer motivo para acreditar que o
Governo esteja a fazer algo concreto no sentido de encontrar uma solução para o conflito
armado de elevada intensidade no centro do país. O enorme black out informativo não evita o
conhecimento do desenrolar de grandes situações de conflito e de consequências sobre a vida de
muitos milhares de moçambicanos e sobre a economia. As OSCs estão muito preocupadas com
os discursos belicistas das partes em confronto e as manifestações desproporcionadas e
intimidatórias do poder repressivo nas cidades.
A sociedade civil apela ao Governo que, de uma vez por todas, comece a fazer discursos
realistas e declarações inequivocamente transparentes. Já nos basta a escassez e as deficiências
dos sistemas de informação oficiais disponíveis. Precisamos de governantes com sentido de
realismo e honestos, que prestigiem e dignifiquem o exercício da política, algo que não é
possível alcançar por via da alavancagem e manipulação de expectativas irrealistas. A sociedade
está cada vez mais informada e formada para não tolerar discursos de meias verdades e
escamoteadores, muitas vezes de caráter mais grave que a mentira.
As organizações da sociedade civil, cientes de que são conhecedoras da realidade em bases
científicas e assente em estudos e evidências, manifestam a disponibilidade para contribuírem
activamente para as negociações do Governo com o FMI e os parceiros internacionais. As suas
pesquisas trabalhos de reflexão e publicações, têm-se revelado mais acertadas do que várias
entidades governamentais admitem. O seu elevado grau previsional e capacidade de análise das
realidades, merecem maior consideração da parte do Governo, pelo seu potencial contributo
para o acumular de conhecimento mais adequado e, sobretudo, deve ser utilizado em defesa dos
interesses de Moçambique, principalmente dos mais pobres e em prol de um desenvolvimento
mais equitativo e inclusivo.
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