O caminho para Inhassone
Na semana passada o jornal Notícias publicou uma série de artigos da autoria de Gustavo Mavie, Lazaro Mauricio Bamo e Armindo Chavana, todos eles críticos em relação ao líder da oposição e dois deles em forma de carta aberta a apelar ao seu regresso à razão. Achei os textos bem como a sua publicação estranhos. No conteúdo não posso dizer que não concorde com muito do que neles vem contido. Já na oportunidade e no objectivo não tenho a certeza se concordo. Fiquei com a impressão de se tratar de intervenções que prejudicam o processo de paz – se é que existe – do que realmente o ajudam, sobretudo por terem sido publicados no jornal Notícias. Mostram a complexidade deste assunto extremamente fragilizado pelas muitas vozes que nele intervêm com a capacidade de contribuir para a escalada na qual os actores principais parecem apostar.
A oportunidade e o objectivo destes textos incomodam-me por duas razões. Primeiro, parecem dirigir-se ao líder da oposição, mas isso é improvável por várias razões, uma das quais é que ele não vai ler, e se ler, não vai perceber ou nem vai se importar. Aquilo é água em cima do pato, como a gente diz em xangan. O pato simplesmente não liga. Portanto, se há algum receptor para aqueles textos só pode se encontrar no seio daqueles que estão já convertidos ao evangelho que torna o conteúdo inteligível, nomeadamente a diabolização do líder da Renamo. Dito doutro modo, é uma conversa entre amigos à custa da ridicularização dum terceiro. É no mínimo contraproducente, pois o único que textos desta natureza conseguem alcançar é a intransigência ou mesmo radicalização daqueles com quem pretensamente se pretende falar. Eles verão esses textos como mais uma afronta.
Segundo, para além da forma como o líder da oposição faz as suas reivindicações existe o conteúdo do que ele reclama: a partidarização do Estado e as irregularidades eleitorais. Estes dois assuntos são importantes, e isso não é porque a Renamo diz que são. É porque são mesmo para o próprio sucesso da Frelimo. Os desafios que o país enfrenta são enormes e o pior que um governo pode fazer é criar um ambiente que não eleva a sua credibilidade e faz com que tudo quanto faça seja visto com desconfiança e suspeita. A forma como a Renamo faz as suas reivindicações não só é ridícula e criminosa, como também a curto e médio prazo pode significar o seu próprio fim como força política. Num ambiente assim a prioridade na discussão da crise devia ir para a reflexão sobre o que precisa de ser feito para que essas reivindicações deixem de ter sustento.
Para que isso aconteça era necessário que houvesse um plano claro e consequente de abordagem desta crise. À medida que o tempo passa parece ficar claro que não se trata exactamente de crise política e militar que opõe o governo e a Renamo, mas sim duma crise política no seio de quem tem apesar de tudo o mandato do eleitorado para dirigir o país. Estamos no caminho para Inhassone, essa lendária marcha dos Nguni rumo a Mussurizi passando pelos desertos de onde vem a minha própria linhagem, os Nhlavi – “Munhlavi wa ku vengwa, wa rigwe leli lalikulu, wa xiwisa vawundhli”, grupo que inclui os Macamo, Zimba, Machava, Chongo, Ngomane, Cuinica e muitos outros. Na minha língua essa expressão ficou como a descrição duma pessoa que se perdeu e já nem sabe para onde vai.
Dá para usar esta metáfora para dizer que o caminho que leva à paz, seja lá o que for que isso significa, não vai à Serra da Gorongosa. Nem passa por Pretoria. Para dizer isto de forma clara e directa, Dhlakama não é a chave para a paz. A solução da crise há muito que deixou de depender dele, se é que alguma vez dependeu. O curso aparentemente errático do novo governo – com apelos patéticos à paz a partir de igrejas, que logo a seguir são desmentidos por membros do governo, e ultimatos sem consequência que só dão corda à campanha de desinformação dos Unay Cambumbas da nossa terra – é que insiste em fazer do líder da oposição figura central do processo. Não é. Contribui para isso, naturalmente, a fascinação pública pelo guerreiro valente que uma imprensa crédula e com contas a ajustar com a Frelimo do passado não se farta de difundir à mistura com imagens confusas do Robin dos Bosques que desafia a lei em nome dos injustiçados. O facto também de vivermos num contexto de dependência do auxílio externo faz com que a voz dos doadores tenha peso e estes, infelizmente, para terem protagonismo precisam da ideia dum interlocutor que até – em certa medida – ajuda os doadores a manifestarem o seu desconforto em relação a tudo o resto que na sua óptica não vai bem, sonegando o apoio incondicional ao governo.
O governo precisa dum plano claro de paz. Esse plano, daqui do meu computador, parece simples: Ignorar a Renamo activamente ao mesmo tempo que se procura o diálogo com outras forças da sociedade, incluindo a hipótese duma espécie de conferência nacional a qual a Renamo se pode juntar – se quiser – para discutir questões fundamentais que possam exigir a revisão pontual da constituição, se esse for o desejo expresso dos que participam nesse diálogo. Essa conferência não teria como objectivo “corrigir” o resultado das eleições e uma potencial revisão da constituição também não teria como objectivo acomodar a rejeição do desfecho eleitoral, mas sim produzir consensos que permitam marginalizar todo aquele que não aceita a actual constituição como base para a convivência comum. O momento para tal é particularmente auspicioso, pois o líder da Renamo já não tem mais o apetite pelos banhos de multidão, o que é bom, pois o potencial de desestabilização que isso continha já não faz parte da equação. O medo da guerra que leva muita gente a desistir de pensar e estar disposta a fazer tudo para dar protagonismo a alguém que se marginalizou voluntariamente é simplesmente ingênuo. O único que as forças de defesa e segurança precisam de fazer é de garantir segurança onde seja necessário fazer isso, mas evitar todas as acções ofensivas que só dão aos poucos que andam por aí armados espaço para se aproveitarem e envolverem em actos de vandalismo, sobretudo contra a população. Acções armadas num estado frágil como o nosso são o campo ideal para o aproveitamento de todo o tipo, incluindo das próprias forças de defesa e segurança.
Há vezes em que tudo quanto se precisa para fazer bem as coisas é simplificar. Neste momento, tudo o que tem sido feito não conduz a esta simplificação. Torna o problema mais complexo ainda. Uma abordagem racional, fria e calculada deste pesadelo é possível. Ignorar, dialogar com quem se pode dialogar (e esse não inclui a Renamo) e garantir a segurança. Existem floreados, naturalmente, como por exemplo, uma postura mais consequente em relação aos que representam a Renamo oficialmente. Eles vivem uma contradição séria entre, por um lado, terem o estatuto de representantes duma formação política e, por outro lado, não reconhecerem (ou respeitarem) o Estado que reconhece o seu estatuto político. Ao invés de se fazerem emboscadas por aí – se é que são mandatadas – era só libertar esses representantes dessa contradição. No fundo, a situação é esquizofrénica para eles próprios, pois na medida em que eles são representantes políticos reconhecidos por um Estado eles próprios são esse Estado. Se não reconhecem o Estado – e não o fazem porque violam constantemente o artigo da constituição que proíbe a alteração da ordem política e social do país por via armada – não se reconhecem a si próprios. Parece-me uma situação clara.
Mas é preciso ser consequente. Isso havia de libertar quem está realmente interessado na paz da necessidade de escrever mais um artigo contra o líder da Renamo que só o ajuda a ganhar o protagonismo que ele próprio constantemente compromete. Era preciso ter coragem para reconhecer que Dhlakama não é nem o problema, nem a solução. Pensar que ele é as duas coisas é que torna esta crise difícil de gerir. Aí a caminhada fica mais longa ainda. Não se faz nenhuma paz com medo da guerra porque os que mais querem a paz até estão preparados para fazer guerra por isso. É só ver como a gente discute este assunto aqui no Facebook. Fechados num quartinho qualquer aí era só pancadaria sem fim. Da parte dos amantes da paz.
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