Foram raptadas enquanto apanhavam o autocarro ou dormiam em casa. Ficaram dias e meses num campo fechado e receberam um hijab para cobrir o rosto. Foram escravizadas e forçadas a casar. No fim escaparam, mas como é que esta vitória se equilibra com o terror que a antecedeu?
Ruth McDowall estava em Jos, Nigéria, quando elementos do grupo extremista Boko Haram invadiram a cidade. Há cinco anos que Ruth, fotógrafa neozelandesa de 32 anos, se dedica à investigação e registo fotográfico de acções do grupo islamista, criado em 2002, como uma milícia anti-ocidental. “Havia rumores de que jovens, especialmente raparigas, eram raptadas e escravizadas, mas ninguém acreditava”, conta Ruth, em resposta por email ao PÚBLICO. “Um amigo meu investigador entrevistou uma rapariga que tinha sido raptada. A história foi mundialmente divulgada e despertou o meu interesse em saber mais”. Através de amigos e associações humanitárias, Ruth entrou em contacto com sobreviventes e pessoas que conseguiram escapar aos campos do Boko Haram, que em Março jurou fidelidade ao Estado Islâmico. Em 2013, começou o projecto “Malaiku (Angels) Survivors of Boko Haram Abduction”. Antes de fazer os retratos, Ruth ganhou a confiança das pessoas e criou uma relação com elas. Visitou-as de três em três meses e ensinou-as a fotografar. “Ainda estamos em contacto e é óptimo vê-las a progredir. Parecem cada vez mais felizes sempre que as vejo”, conta Ruth. “Já vi muitos rostos assombrados, mas estas raparigas parecem diferentes, assombradas, mas também desfeitas”. O objectivo de Ruth era captar uma imagem forte dos sobreviventes, mas o seu passado era demasiado pesado. Há já alguns anos que rapazes e raparigas têm sido raptados na rua, nas escolas, no trabalho ou até na própria casa e levados para campos organizados pelo grupo terrorista, que os obriga a seguir a sua ideologia, através de abusos físicos e psicológicos. Enquanto que os rapazes são utilizados como soldados, as mulheres são escravizadas, violadas, forçadas a casar e chegam a ser utilizadas como bombistas suicidas. O ataque de Chibok, no dia 14 de Abril de 2014, foi o maior sequestro até à data, onde quase 300 raparigas foram levadas do seu dormitório pelo Boko Haram. Algumas conseguiram escapar, mas o apoio que têm tido desde então não é suficiente. “Elas ainda lutam contra a sua experiência e não vão à escola com medo de serem raptadas outra vez”, diz Ruth. “Muitas das meninas que escaparam ficaram fortemente estigmatizadas nas suas comunidades, o que as obrigou a mudar de cidade”. Para os retratos, Ruth pediu que trouxessem a sua melhor roupa. Queria dar-lhes algum controlo e poder sobre a sua imagem. Sentadas numa cadeira, posaram sem mostrar o rosto e contaram a sua história. Onde estavam, quem as levou, como escaparam. Nomes de lugares, pessoas e datas. Das datas não se esquecem. Nunca vão esquecer.
Lydia
Lydia tem 21 anos. Estava no autocarro quando um membro do Boko Haram entrou. Tinha acabado de pagar as propinas da escola, no dia 7 de Maio de 2013. Todas as pessoas no autocarro lhe sussuraram para que mentisse sobre a sua religião. Ou dizia que era muçulmana ou seria morta. Foi levada para um campo na floresta de Sambisa, onde ficou durante três dias. Dormia debaixo das árvores com troncos largos e compridos. À sua volta, rapazes pequenos, muitos com menos de 10 anos, carregavam armas e eram ensinados a usá-las. Lydia não comeu durante os três dias receando que lhe fosse servida carne humana. “Há quem diga que o grupo Boko Haram come carne humana, então eu atirava a comida para o chão e fingia ter comido”, conta. “Um dia, perguntaram-me de que aldeia é que eu era e descobriram que conheciam o pai do meu irmão. Decidiram libertar-me”. Ficou no meio de uma estrada principal, com duas mil nairas (cerca de 9 euros) e um hijab (palavra árabe para véu), que foi obrigada a usar. A sua família fugiu para outra cidade, mas Lydia já não vive com ela. Queimou o hijab após ter escapado. À noite sonha que Shekau, líder do grupo extremista, aparece à sua frente e tenta matá-la.
Martha
No dia 7 de Setembro de 2014, Martha estava a caminho do casamento da sua irmã quando foi raptada pelo grupo extremista. Mataram o seu cunhado e o noivo e levaram-na juntamente com as suas duas irmãs para um campo em Gulak. Foram quatro meses de sofrimento e violência física e psicológica. Passava fome e raramente tomava banho. “Disseram-me para não andar fora do perímetro. Eu andava, eles batiam-me. Disseram-me para não falar. Eu falava, eles batiam-me. Disseram-me para não cantar. Eu cantava, eles batiam-me”, conta Martha. Com apenas 14 anos, ensinaram-na a usar uma arma. Foi forçada a acompanhar o grupo em duas operações, para que disparasse sobre os opositores. “Queriam que eu matasse alguém, mas nunca consegui”.
Blessing
Por volta das oito da manhã do dia 30 de Setembro de 2013, um membro do Boko Haram entrou na casa de Blessing. Mataram o seu irmão e exigiram que todas as mulheres saíssem da casa, com uma pistola apontada ao rosto de uma delas.“Levaram-me com a minha irmã e cunhada para o campo deles”, conta Blessing, de 19 anos, “e pediram-me para renunciar a Cristo e aceitar o Islamismo, caso contrário matavam-me”. Com medo, Blessing aceitou e recebeu um hijab.
Ladi
Ladi foi raptada da sua cidade natal, Gwoza, em 2013, quando trabalhava no campo. Ao tentar fugir, ameaçaram cortar-lhe garganta. “Um deles pediu-me para não resistir, então cedi e converti-me ao Islamismo”, conta. Leu o Corão e vestiu um hijab. Colocaram-na à venda por 15 mil nairas (cerca de 70 euros). Um dia fingiu estar com dores de estômago e foi levada para um hospital na companhia de uma mulher mais velha. Já na cidade, ao ameaçar denunciá-la à polícia, a mulher fugiu, deixando Ladi sozinha. “Já não vou à escola e ainda me lembro de tudo o que aconteceu...é horrível”.
Hannah
Hannah é filha de um pastor e tem 15 anos. No dia 28 de Setembro de 2013, membros do grupo Boko Haram entraram na sua casa. “Pediram a mim, à minha irmã e à minha mãe para irmos lá para fora. O meu pai não estava lá. Perguntaram os nossos nomes e quando perceberam que éramos cristãs, decidiram levar-me”, conta Hannah. Antes de saírem da cidade, o grupo incendiou uma igreja. Caminharam durante dois dias até chegarem ao campo em Gwoza, onde Hannah foi obrigada a converter-se ao Islamismo. Deram-lhe um novo nome e casaram-na com um desconhecido. Hannah conseguiu escapar numa noite com mais duas raparigas. “Ainda estou a debater-me com as memórias do que aconteceu, mas tento focar-me nos estudos, pois espero vir a ser uma mulher de negócios”.
Hauwa
Em 2009, para fugir à crise na cidade de Hadiza, Hauwa, de 15 anos, foi levada com mais uma rapariga para outra cidade por uma amiga da mãe. A mulher fazia parte do grupo extremista Boko Haram. “Trancaram-nos numa casa para que nos tornássemos nas suas filhas muçulmanas”, conta Hauwa. Foi obrigada a mudar de nome e a converter-se ao Islamismo. Quando recusava, era violentamente agredida. “Após uma semana, a minha amiga agarrou um tijolo e bateu na cabeça da mulher. Pegámos na chave de casa e trancámo-la lá dentro”. Hauwa voltou para casa, onde acabou por descobrir que o seu pai tinha sido morto.
Mairama
“O Boko Haram atacou a minha aldeia e entrou na minha casa no dia 30 de Setembro de 2013”, conta Mairama, de 16 anos. “Fui enviada para um campo em Gwoza onde fiquei durante três semanas”. No campo, Mairama ficou encarregue de ir buscar água e cozinhar para os militares. Passava o resto do tempo a chorar. Foi obrigada a casar com um homem e quando se recusou a dormir com ele, este ameaçou matá-la da próxima vez. Uma noite, uma mulher de um dos comandantes mostrou-lhe uma saída. Fugiu com mais duas raparigas até uma cidade segura. “Foi Deus que me salvou”, acredita. “Estou de novo na escola e espero vir a ser enfermeira, um dia".
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